Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!
Por Igor Alexandre Capelatto, psicanalista - linktr.ee/igorcapelatto
Quando Freud nos presenteou com a sua obra Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), ele trouxe a humanidade um olhar importante sobre o instinto gregário (instinto de rebanho). Não apenas tratou sobre as pessoas que seguem um líder perverso e sobre o narcisismo e a baixa autoestima de quem cede ao narcísico, mas trouxe à tona a questão do pertencimento.
Esse é o tema que ressalvo aqui. Pertencer. Para entendermos essa necessidade de fazer parte de uma relação, de uma instituição ou grupo, trago um pensamento de Vilém Flusser, filósofo tcheco-brasileiro. Em Pós-história (1983), Flusser traz uma ilustração sobre o pertencimento: “É apenas um complexo sistema de uniformes, nos quais reconhecemos a qual grupo a pessoa pertence pela roupa que está vestindo. Pois as pessoas apenas se recusam a andar iguais a todos, mas não iguais a seu grupo” (p.90). Mas por que temos a necessidade de sermos diferentes, individuais, subjetivos mas a mesmo tempo queremos ser iguais ao grupo? Em Natural:mente (1979), o filósofo já trazia a ideia que “estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o domina tragicamente: não se integra”. Nos mostra como os seres humanos são estrangeiros no mundo. A particularidade de cada pessoa faz com que não se integre ao grupo mesmo com elementos comuns. Isso é cultura – um conjunto de códigos, narrativas, signos, língua, linguagem, gestos, história, que moldam a identidade de cada sujeito – e, ainda que esses códigos pertençam a um grupo, uma tribo, cada sujeito adquire uma maneira distinta de absorvê-los, isto é a experiência de cada um. E o mal-estar da cultura talvez esteja aí – na necessidade de que as experiências sejam integradas.
E isso se dá porque nosso ego, nossa autoestima é construída a partir da ideia de que precisamos do outro para existir. É talvez o que a psicanálise chamou de objeção do desvinculo. Não conseguir romper o laço simbionte entre o bebê e a mãe. Gosto de pensar que o que acontece é a pessoa projetar a autoestima no outro, é como se sua identidade fosse sempre no ‘eu + Outro’.
Quando não temos quem se interesse por nós, não construímos uma coisa complicada que se chama autoestima e sim a ausência do sentimento de pertinência, que significa pertencer a algo, pertencera alguém, ou mesmo ser cuidado. - Ivan Capelatto (Rev. TST, Brasília, vol. 81, nº1, jan/mar 2015)
Vamos pensar por que precisamos do grupo?
Importante ressaltar que o ser humano nasceu para estar em grupo: somos frágeis até que na adolescência ou vida adulta possamos ser autônomos no cuidado de nós mesmos. Quando nascemos precisamos da mãe para alimentar, proteger. Não fazemos nada sozinhos, senão respirar, transformar o leite materno em nutrientes corpóreos, fazer xixi e cocô (mesmo que ainda sem controle). Viver em bando, em grupo, é uma necessidade de sobrevivência, um protege o outro contra os perigos externos. Na caverna um sujeito fica em vigília protegendo os que estão em repouso e assim vão revezando.
A demanda de bando, de viver em grupo se dá pelo instinto de sobrevivência e pela segurança que o(s) outro(s) traz(em): o homem é um ser social. Mas não é um ser social na relação de acolhimento ao outro, de compartilhamento. É social da ideia de que precisa do outro para sobreviver. Na tribo primitiva nem todo mundo tinha a capacidade de caçar. E sem o sujeito com a habilidade de caçar, aqueles que estavam lá na caverna, geralmente as fêmeas cuidando dos bebês, morreriam de fome.
Hoje, na sociedade contemporânea, o instinto de grupo vem se transformando numa necessidade de alimentar, não somente o estômago, o corpo, mas o ego. E no dito do outro, do acolhimento, que sentimos que somos pertencentes. É a ideia de que o outro nos deseja. Mesmo que esse sentimento não seja de um desejo real, mas de um interesse perverso. As pessoas se unem por interesse comum, muitas vezes por uma ideologia, uma necessidade: política, social, religiosa. E todo grupo precisa de um líder. A função do líder surge para guiar o grupo, dar ordem aos caos. O sujeito empático, com boa autoestima, com um superego saudável, consegue se tornar um herói, alguém que inspira o grupo. O sujeito com superego fragilizado vai ‘adquirir um gosto’ pelo poder, pela liderança e vai usar o grupo a seu favor, manipulando-os.
O superego é apreendido através dos pais que ensinam as regras, as normas, a moral, e principalmente a suportar frustrações (saber que não se pode tudo, compreender os limites). A escola, as instituições de modo geral, os grupos, a sociedade, são regidos por regras, leis que devem ser seguidas. Quando falta limite e suporte das frustrações, o sujeito molda o superego colocando que a moral é aquela que o Ego decide: o sujeito faz e exige (manipula os outros) aquilo que vai satisfazer apenas a si mesmo, não pensa nas consequências para os outros, para o bando, para o grupo. Em 2001: uma odisseia no espaço, filme de Stanley Kubrick (1968), em meio a luta pela sobrevivência, um primata descobre a potência de um osso como ferramenta de poder. Ele percebe que se tornou ameaça aos demais e assim pode dominá-los. Esse prazer perverso traz a ideia de “eu posso tudo”. É como o bebê que percebe que o choro pode ser manipulador: ele chora quando está com fome, quando está com dor ou apenas para controlar a mãe: choro e ela vem na hora (Freud, Introdução ao Narcisismo, 1914). No entanto, se os pais impõem o limite através do desejo, o bebê percebe que não pode controlar tudo e todos o tempo todo. É um aprender do ego, diria.
Por que os adolescentes precisam do grupo?
Ao mesmo tempo em que anseiam pela identidade própria, eles percebem que ser igual a todo mundo é a saída mais segura para não se expor e perder a aprovação. - Francisco Assumpção, psiquiatra e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Atendo adolescentes e me dediquei a estudar essa fase do desenvolvimento, que é considerada por muitas pessoas como a fase mais difícil de compreensão. Os adolescentes estão na fase em que mais precisam do pertencimento. Eles estão em constante mudanças fisiológicas, sociais, estruturais. Deixando de ser criança para seguirem rumo a uma vida adulta. São muitas perdas (o brincar, a mãe e o pai que tudo fazem a eles, etc.). Ainda estão com a identidade fragilizada (pois aquela identidade primária da infância está em transformação, são novas escolhas, novas necessidades, novos prazeres, novos desejos). Para dar conta de toda essa angústia e terem uma identidade a se firmarem, demandam pertencer a um grupo. No grupo alguém me dá a autenticação do pertencer e encontro iguais com os quais ‘me identifico’. Não é somente a ausência de ser desejado (pela família, por amigos saudáveis, pelos colegas e professores da escola etc.) que leva o adolescente a busca de um grupo onde o líder ao acolhê-lo, dá esse ‘sentir-se desejado’, mas também a busca pela identidade: no grupo alguém diz quem eles são (dá uma função social e identitária). Por isso, muitas vezes acabam, até mesmo, entrando em grupos que depois percebem que o interesse dito comum é algo que eles não se identificam, não gostam. Irei abordar mais sobre na terceira parte (O Eu e o Outro). Por ora, retomo ao líder narcísico.
O líder narcísico nos grupos que os adolescentes se incluem, tem um poder extra em suas mãos: o adolescente que precisa de uma identidade. Quando o sujeito decide quem o outro é, é ele que dita as regras, ou seja, ele domina o outro, decidindo o que o outro deve ou não fazer. Costumo chamar o tal líder de “substituto do pai e da mãe”. Se esse líder é perverso, ele vai criar uma falsa imagem paterna e materna e vai apoderar-se do outro. A maneira de ajudar à esses adolescentes a saírem desta dominação é fazê-los perceberem que a escolha do grupo não se deu pelo objeto cultural comum, mas pelo lugar de pertencimento. E dar a eles os lugares saudáveis de pertencimento – assim poderão escolher os seus grupos adequados. Mostrar que o que as mídias e redes sociais trazem como ideal de gosto e de grupo é algo tão genérico, e que destituem muitas vezes, a individualidade. “Se gosto de rock, por que eu estava fazendo parte do grupo que vai a balada funk?” diz uma adolescente, durante a sessão, percebendo sua angústia de ter de pertencer a um grupo, mas estar sendo manipulada. Outro traz que para fazer parte do grupo ele tinha que beber vodka (tipo um ritual de integração). Por ter apenas 13 anos, foi pego comprando a bebida e parou na delegacia (e até Conselho Tutelar foi chamado).
A constituição da identidade, da personalidade, do ego e superego é fundamental para que não se siga o líder ou os ideias do grupo apenas para “fazer parte”.
* este artigo faz parte de uma série da qual intitulei “A necessidade de pertencimento”. Iniciando com “O líder narcísico e o grupo”, passando por “Ser desejado mesmo que na dor” e fechando com “O Eu e o Outro”.