
Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Por Melissa Gomes, psicanalista, mestre em comunicação e informação pela UFRGS - @psi.melissagomes
Eu estava no quarto mês de gravidez quando num atendimento online, em que a câmera enquadrava apenas dos meus ombros para cima, um paciente me disse ao final da sessão: “você está com uma carinha de grávida”. Logo me peguei pensando em como essa notícia poderia ter chegado do outro lado da tela sem que nem eu me sentisse mesmo grávida. A notícia era relativamente nova e eu ainda me questionava o que seria gestar uma criança e como meu trabalho seria impactado por isso. Não sabia sequer o que seria essa tal cara de grávida, mas respondi com um “será? Falaremos mais sobre isso depois…”, que foi o que saiu até que eu pudesse processar essa experiência.
Um tempo depois a barriga apontou para frente e, nos atendimentos presenciais, alguns analisandos perceberam, mas nada comentaram até que eu desse a notícia de que estava esperando um bebê (e por isso passaria os atendimentos para a modalidade 100% online). Algumas das falas foram “Vi que sua barriga estava crescendo, mas fiquei com vergonha de falar..” e “Até percebi antes, mas não se pergunta se uma mulher está grávida”. Também recebi os parabéns de alguns pela notícia, em tom de comemoração, e indiferença de outros, que disseram que a novidade não deveria impactar no processo. O passar dos meses me levou a buscar suporte e relatos de outras colegas sobre a gravidez na clínica psicanalítica. Qual seria o momento certo de retomar ou abordar o assunto com cada um? E se o tema não partisse dos pacientes? Quando eu deveria interromper os atendimentos? Quanto tempo eu tiraria de licença?
Além de falar muito em supervisão e entre colegas da turma de formação permanente, encontrei boas discussões compartilhadas, como o episódio do podcast “Isso te diz alguma coisa?” da psicanalista Larissa Lima, que traz uma conversa com Beatriz Lourenção, também analista, sobre como ela conduziu o assunto da gestação no dia a dia do consultório. Essas discussões me levaram a concluir que não haveria um modo de agir padronizado, que eu pudesse adotar com todos os pacientes. A máxima de levar em conta a subjetividade de cada paciente foi seguida também em relação à gestação, e foi surgindo como parte de cada atendimento, em alguns como anúncio, em outros como tema trazido pelo analisante, em tempos diferentes e com reações diversas.
O livro A analista grávida (2020) também me apareceu como uma boa surpresa, tanto por reunir autoras que se dispuseram a falar de suas experiências pessoais quanto por alertar para o fato de que pouco se produziu na teoria psicanalítica sobre o tema da gravidez da analista. O corpo e a sexualidade feminina se mostram mais uma vez como terrenos de areia movediça, a serem evitados na maioria das vezes.
Embora em qualquer ofício a gestação seja um ponto delicado e que envolve questões de gênero e direitos trabalhistas, a psicanálise traz consigo um referencial de neutralidade, ou abstinência, para usar um termo freudiano, que torna ainda mais complexo dividir um momento tão íntimo. O esperado é que o analista se coloque como objeto e não como sujeito no setting, ocupando cada vez menos espaço para que o inconsciente do analisante apareça por meio da associação livre.
E muito do que se passa despercebido a respeito da pessoa da analista, para que uma análise aconteça, acaba se tornando muito visível quando uma gestação se desenrola no cotidiano da clínica. “Como fazer silêncio em si quando a analista se vê tomada por uma novidade tão exuberante, que é a sua gravidez?” (p.17), provoca a analista Mariana Pinto Camargo em seu artigo do livro A analista grávida. O corpo vai se transformando, o cansaço pode bater com facilidade e acabar interferindo na escuta, mas, muito além disso, o manejo da transferência pode exigir mais da analista a partir dos efeitos que a notícia da gravidez vai gerar em cada caso.
Outro ponto fundamental é que toda analista trabalha com o não-saber. Inicia cada sessão com a curiosidade de escutar o que não se sabe, sem tentar presumir ou deduzir o que o paciente pensa sobre um ou outro tema, sem planejar qualquer tipo de intervenção. A gravidez, nesse contexto, aflora o não-saber ao escancarar a necessidade constante de manejar a transferência e a comunicação de inconsciente para inconsciente, que são aspectos válidos para pensar a prática da psicanálise como um todo. Em outras palavras, as particularidades da gravidez da analista nos servem para refletir sobre o fazer da clínica e suas inúmeras possibilidades.
Nesse sentido, outra pergunta possível é: e não seriam todos os efeitos em análise percebidos só depois do que é dito? O a posteriori vale então para tirar o peso que a gravidez da analista poderia ter no caminho analítico. O crescer da barriga poderia se integrar à trajetória de atendimento e seus efeitos serem abraçados como material, assim como ocorre com as outras situações enfrentadas. No entanto, como nos lembra Juliana Lang Lima (2020), a gravidez é uma experiência regressiva, que retorna o narcisismo ao seu ápice “(...)- o que traria consigo riscos de uma escuta enclausurada, menos flutuantemente atenta ou mesmo autorreferente”(p.45). Já para o analisante, essa regressão pode aparecer ligada à ideia de um terceiro participante da cena analítica. O bebê que se anuncia pode ser entendido como um irmão mais novo que vem chegando e que ameaça roubar a atenção e o protagonismo do analisante, como bem relatou Nara Amália Carón (2020) no artigo publicado no mesmo livro. Muito se sente por parte da analista e dos analisandos, o que, visto aqui nas referências compiladas, aparece como oportunidades ricas em sentidos para o desenrolar da análise.
Até porque, não enxergamos apenas com os olhos, na vida e na clínica. Outros recursos além da fala podem e devem ser explorados, como ocorre desde que nascemos. Sabemos que o psiquismo infantil opera de um modo bastante primitivo. Inicialmente há nos bebês um registro pré-verbal que capta fragmentos sensoriais dos objetos ao seu redor. Só depois é que a criança se torna capaz de reunir esses traços sentidos “no corpo” em representação de coisa e alcançar a representação palavra, para então desenvolver a linguagem verbal. Ou seja, “perceber também teria relação com um sentir no qual psíquico e somático encontram-se intrinsecamente relacionados” (LIMA, 2020, p.49). Daí chegamos a uma pista para explicar a percepção tão precoce da gravidez por parte de alguns pacientes. Algo muito belo que resgata a sensorialidade prévia ao campo da linguagem, e que pode gerar efeitos bastante positivos numa análise, desde que seja acolhida.
Os breves apontamentos aqui descritos servem apenas como ponto de partida para a conversa. Muito mais do que para interferir ou interromper um atendimento clínico, a gravidez da analista nos indaga para onde a novidade pode levar a dupla analítica a caminhar. Abre portas e sobretudo dá origem a boas perguntas.
---------------------------------
Referências
DEGANI, Rafaela et al. A analista grávida. Porto Alegre: Artes e Ecos, 2020. 190p.
LIMA, Larissa. Episódio #18 do podcast “Isso te diz alguma coisa?”, com Beatriz Lourenção. <disponível em https://open.spotify.com/show/3W4n53Ir1UiTBK5ipqEX7M> . Spotify, último acesso em 02/01/2024.