Por Igor Alexandre Capelatto, psicanalista - linktr.ee/igorcapelatto

Quando trago a esta coluna, Shakespeare, não trago somente por me interessar pela obra e pela sua genialidade criativa. Trago, como mencionei no artigo Shakespeare, um psicanalista?, pois, na sua obra, há um intrínseco estudo da psiquê humana, dos comportamentos, dos gestos, dos sentimentos. Quando Freud buscou autores para ilustrar seu estudo sobre a psiquê humana, entre Goethe, Cervantes, Zola e outros, deu um destaque importante a William Shakespeare. O psicanalista austríaco compreendeu que o dramaturgo inglês tinha escrito um tratado de psicanálise. Dentre as obras que interessaram a Freud, se destaca Hamlet, o príncipe da Dinamarca. Esta peça chama atenção de Freud, no que diz respeito ao Édipo: ele observou que o dilema da ordem paterna – o pedido de seu pai (que aparece como um Fantasma – que veremos em um próximo artigo: Quem são os fantasmas de Shakespeare? – entre a fantasia e o real), na vingança de sua própria morte – não é cabível de realização. Essa é a dúvida de Hamlet, pois executar tal tarefa – matar o tio Cláudio que assassinou seu pai e tomou o lugar, casando com sua mãe – seria ir na contramão de seu desejo edipiano – pois identifica-se com aquele que realiza tudo que ele desejara na sua infância: matar aquele que lhe roubou a mãe.

Esse dilema (que intensifica mais ainda quando percebe que seu tio, apesar de realizar seu desejo, está agora na função desse pai, do terceiro que vem na relação edipiana - filho e mãe - rompendo-a) e a interpretação freudiana interessaram a outro psicanalista, Jacques Lacan. Em 1959, no seu seminário 6 (O Desejo e sua Interpretação), Lacan coloca que: “Há de se convir que é a natureza dessa tarefa. Hamlet pode agir, mas não conseguiria se vingar de um homem que matou seu pai e tomou o lugar dele junto a sua mãe, de um homem que realizou os desejos de sua infância. O horror que deveria impeli-lo à vingança é substituído por remorsos, por escrúpulos de consciência. Acabo de traduzir em termos conscientes o que permanece inconsciente na alma do herói….”. Lacan explica o desejo primário a partir desta peça shakespeariana – o que é essa excitação que coloca a mãe como objeto de desejo para o filho?

O Édipo surge na fase fálica quando o desenvolvimento da libido é direcionado aos genitais e busca o objeto primário do desejo. E quem é o objeto de satisfação das vontades, anseios e pulsões e que dá proteção, se não a mãe? É a mãe que amamenta, que faz o holding, é ela pois, dela vem o sustento primário, dela que vem a segurança, uma vez que temos essa forte ligação do ambiente seguro do útero. Então a mãe, no lugar desse objeto, vai estar na posição daquela que sustenta o abrigo inabalável e satisfaz todas as necessidades e desejos. 

Lacan nos mostra que Hamlet, acima de tudo, é uma peça sobre o desejo – e, portanto, falar do Édipo, é falar do desejo.

Quando Freud escreveu sobre essa relação entre o filho e a mãe na fase fálica ele se baseou em uma peça do teatro grego antigo, escrita por Sófocles, em 427 a.C., intitulada Édipo Rei. Hamlet seria uma leitura de Édipo? Qual a diferença entre Édipo e Hamlet? O que levou Freud a revistar a peça Édipo Rei e o Complexo de Édipo, a partir de Hamlet, foi o fato de que em Hamlet aparecem relações importantes, que revisitam, atualizam o Édipo: em Hamlet a fantasia é reprimida (enquanto Édipo realiza sua fantasia infantil com sua mãe Jocasta) e aparece a autocensura (nas palavras de Freud, “o horror que deveria movê-lo a vingança é assim substituído por autocensuras, por escrúpulos de consciência que o repreendem porque ele próprio, literalmente, não é melhor que o pecador que deveria castigar”). Esse comportamento (recorrente do tabu, do recalque) atraiu a atenção de Lacan que entendeu essa leitura edipiana de Shakespeare com mais uma atuação importante: o narcisismo. Hamlet é a representação do desejo egóico da criança pela mãe (que Freud em 1914 intitulou “Sua Majestade, o bebê”), na qual não pode haver interferência de um terceiro. 

O desejo atuante em Hamlet também está nas condições do luto. Hamlet não é capaz de realizar o luto, uma vez que diante da morte do pai, a fantasia (e veremos mais no artigo sobre os fantasmas de Shakespeare) infantil e erótica é recordada e repetida. Porém não pode ser elaborada – já que não lhe foi feita a castração, e Hamlet permanece no vigor da paixão por Gertrudes, sua mãe.  

Trata-se, para o filho, de encontrar o lugar ocupado pelo pecado do Outro, o pecado não pago pelo Outro - (Lacan, Seminário 6, 1959)

Aprendemos por meio da leitura de Hamlet, feita por Lacan, que o Édipo é, no desenvolvimento sexual infantil, um lugar da fantasia de matar o pai para se ter a mãe exclusivamente, um desejo no qual o narcisismo atua, mas em um recalque atribuído pelo fato de que ao se retirar esse Outro (o pai) estaria retirando aquele que lhe assegura o real (que enuncia a lei, portanto lhe assegura o superego). Hamlet na sua pulsão, no seu inconsciente, atua no desejo de destituir o pai para garantir a mãe, mas em sua consciência sabe que esse fantasma do pai não representa somente sua fantasia, mas é quem lhe confere os limites entre a fantasia e o real. 

Por fim, acrescento essa maestria de William Shakespeare ao nos ensinar que a relação triangular filho-mãe-pai é uma relação sobre o aprender dos limites entre a fantasia e o real, no campo do desejo: Hamlet é o jovem ou o adulto que precisa reviver o édipo para elaborá-lo, ressignifica-lo. A tarefa de Hamlet de vingar a morte do pai, é no fundo a tarefa de redimir da culpa – elaborar a culpa de ter desejado a morte do pai. E, ainda, de elaborar a culpa de ter desejado a mãe de forma erótica, a ‘culpa do incesto’.

Esse artigo faz parte de uma série de artigos sobre Shakespeare que iniciaram com “Shakespeare, um psicanalista?”, “Quem te cortou a língua?” e terá ainda mais alguns artigos como “Quem são os fantasmas de Shakespeare? – entre a fantasia e o real”, “Como Winnicott compreendeu Hamlet? - a dissociação, entre o ser e o não ser” e “Ricardo III é um ou dois? - a clivagem do eu e a esquizofrenia”.