Como a guerra promove o reencontro com o desamparo

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Como a guerra promove o reencontro com o desamparo
Como a guerra promove o reencontro com o desamparo
Divulgação

Anna Silvia Rosal de Rosal, psicóloga com formação em psicanálise e doutorado pela PUC SP - @annasilviarosalrosal

Com nove guerras em curso no mundo, é natural que as notícias sobre tais catástrofes dominem os meios de comunicação. Jornais, telejornais e redes sociais têm constantemente noticiado os horrores dessas guerras. As pessoas que acompanham o desenrolar desses embates - mesmo estando em territórios distantes - são afetadas por todo esse trágico cenário. Em alguma medida, a destrutividade causada pelas guerras invade o psiquismo de qualquer pessoa que não ignora esses acontecimentos. Claro, desde que esta tenha empatia pelo sofrimento humano. 

A força das imagens exibidas nas mídias parece se fixar na memória de milhões de pessoas ao redor do mundo. Momentos de tristeza, apatia e até mesmo sentimentos raivosos podem se manifestar no cotidiano de muitos. Isto porque essas reações são alimentadas por um velho conhecido da humanidade: o desamparo infantil. As crianças conhecem desde muito cedo o conflito existente entre a alegria experimentada ao obter autonomia e a insegurança percebida ao se sentirem menos dependentes de suas figuras protetoras. Então, questionam a própria capacidade de se sustentar na medida em que a figura paterna não está atenta a sua pequenez. Essas emoções não estão, necessariamente, alicerçadas em dados concretos e objetivos sobre o cenário a nossa volta; ao contrário, a vulnerabilidade se apoia, em grande parte, na fragilidade que sentimos ao nos percebermos humanos, demasiado humanos – afirmou Nietzsche. 

Freud (1930), por sua vez, reconheceu três fontes de ameaça à felicidade, quais sejam: (1) a progressiva decadência de nosso corpo físico, o que nos impõe limitações e sofrimento; (2) as forças destrutivas que a cultura produz, tal como o faz ao produzir guerras; (3) e, por fim, as relações com outros seres humanos. 

Este último ponto, contraditoriamente, pode configurar fonte de segurança (quando somos amparados) ou de horror, quando tememos o abandono. Tais ameaças revelam o quanto dependemos do outro para existir, viver e sermos felizes. Não temos, portanto, nossa vida sob controle – pelo menos vários aspectos dela. Neste sentido, um dos efeitos da guerra é o abalo da ilusão onipotente de estarmos a salvo da destrutividade, do perigo de morte. Com isso, o infamiliar se manifesta. Tal como definido pelo pai da psicanálise, o infamiliar (ou desconhecido) consiste em um tipo de angústia que nos aterroriza ao trazer de volta sentimentos conhecidos (desde a infância) que estavam, de certa forma esquecidos, embora sempre tenham rondado nossa percepção. Faço um parêntese aqui para lembrar que a violência é comum a todos nós, humanos. Quando as cenas de guerra aparecem diante de nossos olhos, faz-nos lembrar que a pulsão de destruição, a violência, sempre estiveram dentro de nós. Portanto, nada mais íntimo do que o infamiliar.  

Ao longo da vida, o homem desenvolve recursos psíquicos para se proteger da sensação de perigo, do desamparo. Afinal, se tais afetos nos dominassem, entraríamos em colapso. No entanto, diante da enxurrada de informações sobre guerras, os mecanismos de defesa são fortemente abalados. Assim, o fantasma da finitude se manifesta suscitando-nos angústia, sofrimento e desamparo. E como podemos reagir a tais afetos? Dentre tantas possibilidades, os caminhos que se mostram mais efetivos envolvem o trabalho de elaboração dos afetos. Ou seja, pensar sobre o que se sente, quando sente e – se possível – estabelecer relação com outros períodos em que sentiu algo similar. Além disso, é interessante direcionar nossa energia psíquica para ações (humanitárias e/ou elucidativas) que possam transformar essa realidade, tanto no front quanto em nosso mundo interno.