Olá, amigos.
Ao longo de minha carreira de mais de 30 anos como jornalista especializado na F1, fui testemunha de performances espetaculares de pilotos. Dou dois exemplos: Michael Schumacher, com Benetton-Renault, venceu o GP da Bélgica, de 1995, em Spa-Francorchamps, sob chuva, largando da 16ª colocação.
O mesmo Schumacher, com Ferrari, realizou a façanha de vencer o GP da França de 2004, em Magny-Cours, tendo realizado quatro pit stops, estratégia definida antes da largada para superar o pole position Fernando Alonso, da Renault, com três paradas.
Posso dizer, sem presunção, o meu amigo Jackie Stewart adora contar histórias de sua participação no GP da Alemanha de 1968, em Nurburgring, com Matra. Chovia forte e havia intensa neblina na pista de 22 quilômetros.
Stewart largou em sexto e no fim da primeira volta já era líder, 9 segundos na frente do segundo colocado, Graham Hill, da Lotus. O escocês receberia a bandeirada com uma vantagem de 4 minutos para Hill. A superioridade dos seus pneus Dunlop no asfalto molhado o ajudou, mas não explica tamanha diferença de performance. O talento resolveu.
Agora posso adicionar duas outras apresentações históricas de um piloto dentre as que tive o privilégio de acompanhar de perto. Nós às assistimos no fim de semana, em Interlagos. No sábado, na sprint race, corrida de 24 voltas para definir o grid da principal, no domingo, de 71 voltas, Lewis Hamilton, da Mercedes, largou em 20º e último e chegou em quinto. O inglês foi punido porque o flap do DRS do seu Mercedes W12 abria 0,2 mm a mais dos 85 mm permitidos.
Na deste domingo, Hamilton começou a corrida em décimo por ter acrescentado cinco posições ao quinto lugar de sábado – trocou o motor de combustão interna - e levantou o ótimo público de Interlagos ao vencer como um supercampeão o GP de São Paulo, após ultrapassagem em Max Verstappen, da Red Bull-Honda, na 59º volta de um total de 71.
Veja a ultrapassagem de Hamilton sobre Verstappen:
O resultado abriu de vez a luta pelo título com Max, segundo colocado em Interlagos, mas ainda líder do mundial, com 14 pontos de vantagem, 332,5 a 318,5. A próxima etapa, 20ª do calendário, será já no fim de semana, no Qatar, estreante no mundial, prova noturna.
Acompanhe-o de dentro do cockpit
O que faz o desempenho de um piloto ser considerado tão excepcional, como os dois de Hamilton no GP de São Paulo? No caso da corrida do sábado, ganhar nada menos de 15 posições em apenas 29 minutos de competição. E na de domingo, nove colocações, mas dos conjuntos carro-piloto mais eficientes da F1.
Vamos esmiuçar um pouco as duas trajetórias fantásticas de Hamilton no GP de São Paulo? Comecemos pela de sábado.
Estava na última fila do grid. No fim da primeira volta, já havia deixado para trás Nikita Mazepin, Mick Schumacher, ambos da Haas-Ferrari, George Russell e Nicolas Latifi, Williams-Mercedes, e Lance Stroll, Aston Martin. Hamilton era, portanto, o 15º.
Na segunda volta, ganha uma posição, a 14ª, por causa do toque entre Kimi Raikkonen e Antonio Giovinazzi, os dois da Alfa Romeo, no S do Senna. O finlandês vai para a área de escape.
Na quarta volta, Hamilton ultrapassa o japonês Yuki Tsunoda, da Alpha Tauri, e ascende ao 13º lugar. Na sexta, aparece em 12º, ao deixar Giovinazzi para trás. Na oitava é a vez de Fernando Alonso, da Alpine. O inglês o ultrapassa no S do Senna para ser 11º.
Veja também:
Na 13ª volta, também no S do Senna, Hamilton ganha a posição de Daniel Ricciardo, da McLaren-Mercedes, e fica entre os dez primeiros. A pontuação na sprint race é somente para os três primeiros, 3, 2 e 1.
A essa altura, praticamente metade da prova, Valtteri Bottas, da Mercedes, lidera com Max em segundo, 1,2 segundo atrás. Hamilton, décimo, estava já a 22,0 seg de Bottas.
Na 15ª volta, o piloto da Mercedes ganha o nono lugar de Sebastian Vettel, da Aston Martin, e o oitavo de Esteban Ocon, da Alpine. Duas voltas mais tarde, na 17ª, ultrapassa Pierre Gasly, da Alpha Tauri, para ser sétimo. Na 19ª, Charles Leclerc, Ferrari, sexto, e na 24ª e última Lando Norris, McLaren-Mercedes, para receber a bandeirada em quinto, 1,0 seg atrás de Sérgio Perez, da Red Bull-Honda, quarto, e 22,8 seg de Bottas, o vencedor.
Pilotagem polida, segura
Você viu Hamilton cometer um único erro em condições tão extremas? Não, não é mesmo? Ninguém viu. Uma tocada limpa, velocíssima, e que apesar dos riscos, sempre existentes nas disputas de posição, Hamilton passou ileso por tudo. Os torcedores, em grande número, acompanharam suas manobras de pé nas arquibancadas.
A hora, agora, é de falarmos da corrida deste domingo. Não deixe de ler o final, apesar da extensão do texto. Apresento números da velocidade de Hamilton nas retas de Interlagos em comparação com as de Max, ajuda a entender melhor tamanha diferença de performance entre ambos.
Como mencionado, Hamilton largou na quinta fila, em décimo. Cruza a linha de chegada no fim da primeira volta em sexto, por ultrapassar Vettel, Gasly e Ocon. Herda o sétimo lugar de Norris, depois de o jovem da McLaren seguir reto no S do Senna por tocar na Ferrari de Carlos Sainz Júnior e furar um pneu.
Veja a largada do GP de São Paulo de 2021:
Na terceira volta do total de 71, Hamilton ultrapassa os dois pilotos da Ferrari, Leclerc e Sainz, para assumir o quarto lugar. Neste momento, Max lidera com Perez em segundo, 1s453 atrás, Bottas, terceiro, 3s242, e Hamilton, quarto, 5s478.
Na quinta volta, Bottas permite Hamilton ganhar sua terceira colocação no S do Senna, o deixa passar. Ao cruzar a linha de chegada, pouco antes, Hamilton estava a 5s072 de Max, sempre líder desde ganhar o primeiro lugar de Bottas em seguida à largada.
Na 18ª volta, Hamilton encosta em Perez e com o DRS o ultrapassa no S, mas o mexicano pega o seu vácuo na Reta Oposta e recupera o segundo lugar.
Na passagem seguinte, 19ª, Hamilton repete a ultrapassagem, mas sem dar chance de troco a Perez. Pronto, na sua frente, agora, está somente Max, o líder, com uma vantagem de 3s974.
Na 25ª volta, uma antes de Hamilton fazer o primeiro pit stop e trocar os pneus médios da Pirelli pelos duros, Max continua em primeiro, 3s785 na frente. Na 28ª, uma depois de Max realizar a sua parada para a mesma troca de tipo de pneus, Bottas lidera, pois não parou, ainda, 8s370 na frente de Max e 9s638 de Hamilton. Entre os dois adversários na luta pelo título, portanto, a diferença é de 1s268.
Desta vez, dois pit stops
O aumento da temperatura neste domingo, de 18 para 23 graus, bem como o do asfalto, de 46 para 54, elevou o desgaste dos pneus. Foram necessários dois pit stops para oito dos dez primeiros. As exceções foram Alonso, oitavo, e o companheiro de Alpine, Ocon, nono, com uma parada apenas.
Max fez seu segundo pit stop na 40ª volta, 13 somente após o primeiro. Na passagem anterior, Hamilton, segundo, estava 1s110 atrás. O inglês da Mercedes parou na 43ª e na anterior tinha uma vantagem de 18s628. O tempo total de parada para Max foi 22s766.
Hamilton realiza o segundo pit stop, com um tempo total de 22s664, e volta a pista com pneus duros, como Max, com uma diferença maior de quando Max fez sua segunda parada. No fim da 44ª volta, Max está em primeiro, 2s159 na frente de Hamilton.
O ritmo do piloto da Mercedes passa a ser melhor que o de Max. Na 46ª volta, pela primeira vez Hamilton está a menos de um segundo de Max, podendo usar o DRS para tentar a ultrapassagem.
Max cruza a linha de chegada no fim da 47ª volta com apenas 0.483 de vantagem para Hamilton. Correm na 48ª volta o trecho final da Reta Oposta lado a lado, com Hamilton por fora. Max alarga na curva, obrigando o inglês a, como ele, sair da pista, ir para a área de escape a fim de não colidirem.
Decisão controversa
Os comissários informam não ser necessária investigação, para revolta de Toto Wolf, sócio e diretor da equipe Mercedes. A minha visão é a dos comissários. Max teria de deixar o espaço de um carro se Hamilton estivesse lado a lado, como esteve no fim da Reta Oposta, mas não no meio da Curva do Lago. Encontrava-se um pouco atrás. Sim, é polêmico.
Apenas na 59ª volta Hamilton se posiciona para tentar, com chances, a ultrapassagem, o que acontece na Reta Oposta, antes ainda de chegarem à zona de frenagem para a Curva do Lago, evitando uma defesa mais contundente de Max. Agora era só administrar a liderança até a bandeirada. O que Hamilton fez em São Paulo no fim de semana já está na antologia da F1.
Maior velocidade nas retas
Sem que o fato a seguir desmereça em absolutamente nada o feito de Hamilton, que fique claro, mas ajuda a explicar tamanha superioridade.
A velocidade final de reta do W12 de Hamilton foi superior a do RB16B-Honda de Max ao longo de toda corrida. O novo motor de combustão interna (ICE) de Hamilton, colocado no carro no sábado, o ajudou bastante a ser mais rápido.
Claramente essa vantagem não dizia respeito apenas a um eventual acerto aerodinâmico que favorecesse a maior velocidade nas retas. O novo motor no carro de Hamilton lhe garantiu cavalos a mais de potência.
Veja isto: no chamado speed trap, localizado 90 metros antes do S do Senna, Hamilton registrou na melhor passagem 333,2 km/h. Max, 318,0, impressionantes 15,2 km/h a menos.
Na linha de chegada, Hamilton teve 330,3 diante de 321,7 de Max, ou 8,7 km/h mais lento. No S1, ou 168 metros antes da Curva do Lago, Hamilton fez 332,9, enquanto Max, 315,6, ou 17,3 km/h mais devagar.
No S2, ou 85 metros antes da Junção, última curva antes da subida dos boxes, Hamilton marcou 261,1. Max, 258,9, ou 2,2 km/h pior.
Bem, depois de perder a liderança para Hamilton, Max entendeu não haver como acompanhar seu ritmo e passou a administrar a segunda colocação. O fato é que Christian Horner, diretor geral da Red Bull-Honda, e Adrian Newey, da área técnica, estão de olho no novo motor colocado no W12 de Max. Não estranhe se pintar um protesto.
Hamilton repete Senna e comemora com a bandeira do Brasil; assista:
Os papéis agora se inverteram. Hamilton dispõe de um motor de combustão interna (ICE) novo para as três etapas finais do campeonato, Qatar, depois Arábia Saudita, 5 de dezembro, e Abu Dhabi, 12. Já Max tem a unidade motriz inteira nova desde o GP da Rússia. A usou na Turquia, Estados Unidos, México e Brasil.
É provável que Max tenha de recorrer, como Hamilton em São Paulo, a uma quinta unidade motriz, com perda de posições no grid. A pista escolhida deverá ser a de Jeddah, na Arábia Saudita, com seu segmento de 3 mil metros de aceleração quase plena. Não deverá criar maiores dificuldades para os pilotos realizarem ultrapassagens.
Nos falamos antes da estreia do Qatar no calendário, no próximo fim de semana, combinado?
Abraços.
Livio Oricchio
Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.