Olá, amigos.
Combinamos de bater um bom papo sobre o novo e revolucionário regulamento técnico da F1, abordando vários dos seus aspectos, como a filosofia que o orientou, e não apenas o que muda nos carros. Antes, lembro que em menos de um mês, dia 23, os novos e aguardados modelos de 2022 já vão estar no Circuito da Catalunha, em Barcelona, para os três primeiros dias de testes.
Já temos seis datas de apresentação: Aston Martin-Mercedes, dia 10 de fevereiro; McLaren-Mercedes, 11; Alpha Tauri, 14; Ferrari, 17; Mercedes, 18, e Alpine, 21.
Dada a extensão da revisão conceitual da F1, já em curso, faz sentido dividirmos a reportagem em dois capítulos. No de hoje enveredo mais pela orientação seguida pelos responsáveis para definir o pacote de alterações, o que os levou a se definir por essa e aquela medida.
E na segunda-feira entramos nos temas essencialmente técnicos, mostrando os objetivos de sua adoção, as possíveis implicações no comportamento dos carros e mesmo os desdobramentos esperados nas corridas.
Sobre as novas regras, trata-se de uma mudança tão radical quanto à introduzida na temporada de 1983. Curiosamente, naquele ano, a FIA proibiu o efeito-solo, os carros-asa, alegando, com razão, redução da segurança por causa do aumento exponencial da velocidade dos carros nas curvas de alta velocidade.
O que fez, então, a FIA? O assoalho dos carros não poderia mais ter o perfil de asa invertido, deveria ser plano para gerar bem menos pressão aerodinâmica.
Resgate histórico
E o que acontece agora, 39 anos depois? FIA, Formula One Management (FOM), por parte dos donos dos direitos comerciais, o grupo americano Liberty Media, e os representantes das equipes entenderam que para melhorar a qualidade do espetáculo, haver mais disputas, seria necessário reintroduzir na F1 o que foi proibido em 1983, mas com uma roupagem compatível com o avanço da competição nesse tempo todo.
Nenhum dos três, FIA, FOM e equipes, menciona, mas inclua nas metas dessa nova era da F1 embaralhar as cartas, introduzir alterações na ordem de forças que domina a competição desde a chegada da tecnologia híbrida, em 2014, com a Mercedes vencendo os oito títulos de construtores e sete de pilotos.
O conceito a ser adotado agora é bem conhecido, já o descrevi antes em nossas conversas: transferir a responsabilidade da maior parte da geração de pressão aerodinâmica dos aerofólios, dianteiro e traseiro, para o assoalho, permitindo que os projetistas o desenhem com o mencionado perfil de asa invertido.
O objetivo é fazer com que a perda de pressão aerodinâmica na porção frontal do carro, em especial, quando o piloto segue de perto um adversário, mesmo em curva, seja bem menor do que nos últimos anos. Nesse formato, quem está atrás tem mais chances de ultrapassar o concorrente quando entram na reta, por estarem próximos na curva que a antecedeu. E uma corrida com mais ultrapassagens é, em geral, mais emocionante.
Feito por quem sabe o que faz
O grupo liderado pelo experiente e multicampeão engenheiro inglês Ross Brawn, diretor técnico da FOM, começou a estudar o que fazer ainda em 2017. Brawn montou um time de técnicos com larga vivência nas equipes, todos velhos conhecidos, para juntos dos profissionais da FIA e das próprias escuderias pesquisarem quais medidas deveriam ser tomadas.
São integrantes do grupo de Brawn: Pat Symonds, bicampeão do mundo com Brawn na Benetton, em 1994 e 1995; Jason Somerville, ex-especialista em aerodinâmica da Toyota e Williams; Craig Wilson, diretor de performance veicular da Brawn GP, Honda e BAR; Steve Nielsen, diretor esportivo campeão do mundo na Renault, depois chefe na Toro Rosso e Williams, dentre outros. Pela FIA responde o também experiente Nikolas Tombazis, ex-projetista da McLaren e Ferrari.
Eles trabalharam, principalmente, no renomado túnel de vento construído pela então Sauber, hoje Alfa Romeo, na Suíça. Os protótipos foram enviados às equipes também, para complementar os estudos.
Tudo mais representativo. E justo.
Repare que já aí existe uma diferença importante em relação ao que se fazia na F1. As revisões das regras começavam no acintoso Grupo de Estratégia, onde apenas os grandes participavam: Mercedes, Red Bull, Ferrari, McLaren e Williams. Esta pela história, tempo de F1. Nem a Renault podia fazer parte, imagine!
Ah, eles eram generosos, permitiam a entrada do time melhor classificado entre os construtores na temporada anterior, fora os cinco com cadeira cativa.
O regulamento deste ano é o resultado de debates, discussões entre representantes das várias vertentes da competição. É mais legítimo. Se der certo, o mérito é de todos. Se não funcionar, não há culpados específicos. Irão rever o que, em comum acordo, estabeleceram.
Mais: o grupo de Brawn e os engenheiros das equipes envolvidos nas pesquisas mantiveram-se ativos por dois anos para definir o que fazer para a volta do efeito-solo, a solução que, segundo eles, tornará a F1 mais atrativa.
Adiamento oportuno
A nova F1 deveria estar nas pistas já no ano passado. Mas a pandemia do coronavírus a transferiu para 2022. E foi um ótimo negócio! Explico: o histórico limite de orçamento adotado pela F1 começou a vigorar na última temporada.
Os dez times tinham, em 2021, o direito de investir no máximo US$ 145 milhões (R$ 800 milhões) para disputar o campeonato de 22 etapas e projetar e construir os complexos modelos deste ano. O pago aos pilotos e aos três principais diretores da equipe não entram nessa conta.
Mas dá para confiar que há respeito ao teto orçamentário? Segundo Jean Todt, ex-presidente da FIA, e todos os profissionais com quem converso, a resposta é “sim”.
É algo também notável, para quem conhece o desprezo dedicado pelas grandes escuderias às pequenas. Todos tiveram, em 2021, condições semelhantes para realizar seu trabalho visando o campeonato deste ano.
Se o regulamento fosse aplicado no ano passado, seria uma competição desigual, injusta, pois não havia, em 2020, restrições de investimento para a disputa da temporada e projetar e construir os novos modelos.
Você tem uma leve ideia do quanto Mercedes, Red Bull e Ferrari investiriam no projeto? Pelo menos duas vezes mais que McLaren, Alpine e Aston Martin e pelo menos três vezes mais que Alpha Tauri, Williams, Alfa Romeo e Haas. Felizmente não foi o caso. Como citei, todos trabalharam com um limite de gastos, os US$ 145 milhões. É uma ode à inteligência dos técnicos!
Favorecer os menos competitivos
Podemos ir até um pouco além nessa mudança filosófica que norteia hoje a F1. Foi implantado, em 2021, o sistema de handcap aerodinâmico. Quanto pior a classificação do time em um ano, mais horas pode desfrutar de experimentos no túnel de vento e estudos digitais (CFD) na temporada seguinte.
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Exemplo: a Ferrari, por ter sido sexta entre os construtores, em 2020, dispôs em 2021 de 65 horas a mais de pesquisa no túnel de vento que a Mercedes, a campeã. A Williams, última, de 117 horas. E assim vai.
Não acabou. O novo contrato entre os times, a FOM e a FIA garante aos atores do show, os times, uma cota maior de participação no arrecadado. E, mais importante, a diferença entre o repassado aos campeões e os últimos, entre os construtores, é agora menor.
Sem pagar para correr
A F1 caminha para a sustentabilidade financeira, ou seja, entre o que os times recebem agora da FOM, quem administra e distribui a renda, e dos patrocinadores, dá para disputar o campeonato sem a necessidade de investimentos dos proprietários. O limite de orçamento tem papel fundamental nesse processo.
Se em 2021 foi US$ 145 milhões, este ano é de US$ 140 milhões (R$ 770 milhões) e de 2023 a 2025 o valor está fixado, US$ 135 milhões (R$ 745 milhões).
Dá para acreditar que a Mercedes, com todo o estrondoso sucesso que fez, de 2014 até agora, com exceção de 2021, por causa do limite de investimento, sempre exigiu que a montadora injetasse bom dinheiro, todo ano, para fechar a conta? A partir de agora disputar a F1 pode até gerar lucro financeiro. Até 2020 a capitalização era apenas de imagem e desenvolvimento de tecnologia.
Não creio que irá demorar muito para haver mais interessados em disputar a F1 com equipe própria. Passou a ser viável financeiramente.
Claro que os cuidados com o meio ambiente e a segurança não poderiam ficar de fora nesse novo ordenamento da F1. Mais componentes tornaram-se padrão, como veremos mais tarde, e a gasolina, que antes tinha 5,75% de origem biológica, não petróleo, passou para 10%. O combustível da F1 se chama E10 e tem 10% de etanol. Perda estimada de potência, no início? Entre 12 e 18 cavalos.
Por dentro das datas
Falemos sobre a cronologia dos fatos. Como escrevi, os primeiros estudos começaram em 2017. No dia 31 de outubro de 2019, FIA e FOM distribuíram para as equipes o texto-base do novo regulamento. Nem tudo estava 100% definido, mas as diretrizes, sim.
As dez começaram a trabalhar. Mas apenas um mês depois de conhecermos o que se planejava para a F1, a partir de 2021, a então epidemia tornou-se pandemia. Isso fez com que todos os envolvidos, FIA, FOM e times anunciassem, no dia 19 de março de 2020, que a estreia do novo regulamento ficaria para 2022, não mais 2021. E que os carros de 2021 seriam, essencialmente, os mesmos de 2020.
Outra importante decisão: as dez escuderias não mais poderiam seguir trabalhando na pesquisa dos novos modelos, com aerodinâmica completamente distinta do que se fazia. Somente a partir de 1º de janeiro de 2021 estavam autorizadas a retomar seus estudos.
Mais: as pequenas pendências que ainda existiam no texto final das novas regras foram definidas e no dia 15 de outubro de 2021 os diretores-técnicos das equipes as receberam prontas, embora já trabalhassem no projeto desde o dia 1º de janeiro por conhecerem as diretrizes.
Oportunidade para aumentar a segurança
Foi quando ficamos sabendo, com mais detalhes, o que se estava fazendo para elevar a segurança. O bico dos modelos de 2022 deve absorver 48% mais energia do que os de 2021 e a estrutura deformável traseira, conectada à caixa de marchas, 15% a mais.
O grave acidente de Romain Grosjean, da Haas-Ferrari, no GP de Abu Dhabi, em 2020, mostrou a necessidade de nos casos de impactos semelhantes a unidade motriz se separar do monocoque, mas sem expor o tanque, a fim de reduzir as possibilidades de fogo.
Do acidente fatal de Anthoine Hubert, na F2, em Spa-Francorchamps, em 2019, além da revisão do bico, como citei, as laterais foram reforçadas. Os choques em T, o bico acertar a lateral do cockpit, são os mais preocupantes.
Veremos, logo mais, que essas medidas, associadas a outras que abordaremos, elevaram significativamente o peso dos carros em impensáveis quase 40 quilos!
A visão de Tombazis
Nos dias do GP de São Paulo, em Interlagos, em novembro, pude conversar informalmente com Tombazis, o que faço desde o seu tempo de McLaren, 2004 e 2005. Minha ex-esposa é grega, como ele, o que nos aproximou.
Sua visão coincide com a de outros profissionais da F1 e amigos, como Steve Nielsen, do grupo de Brawn. “Acredito que nas primeiras etapas é possível que uma ou outra equipe se apresente com um carro mais rápido, por melhor interpretar o regulamento. Mas a partir do GP da Espanha (sexto do ano, dia 22 de maio), com as mudanças esperadas, a evolução natural, deverá haver maior equilíbrio”.
Para o primeiro ano das novas regras, Tombazis não aposta em um campeão com apenas três vitórias na temporada, por exemplo. “É pouco provável.” Isso quer dizer que possivelmente haverá uma escuderia com maiores chances de vencer várias etapas e que a edição deste ano do mundial não terá muitos vencedores. “Isso pode acontecer no segundo ano, por exemplo.”
Quanto mais lenta?
Com carros tão mais pesados, 752 quilos em 2021 e 790 este ano, a F1 será quanto mais lenta? Ou a maior velocidade de contorno das curvas de alta, por causa do efeito-solo, irá compensar a perda de tempo provocada pelos quase 40 quilos a mais?
“Espero pequena diferença de performance para 2021. Sim, os carros de 2022 um pouco mais lentos, na média. Quanto não dá para saber. Nos estudos iniciais, sem desenvolvimento, os dados sugeriam, dependendo da pista, claro, 2,5 segundos. Mas penso que será bem menor.”
Nos 4.675 metros do Circuito da Catalunha, a cada 10 quilos a mais no carro o tempo de volta cresce três décimos de segundo. Lewis Hamilton estabeleceu a pole position do GP da Espanha, em 2021, nesse traçado, com seu Mercedes W12, tempo de 1min16s741.
Sem o desenvolvimento dos modelos de 2022, os cerca de 40 quilos a mais o fariam ser um segundo e dois décimos mais lento que os do ano passado. Mas, como destacou Tombazis, essa diferença será bem menor. No meu entendimento, em circuitos com maioria de curvas rápidas, a F1 poderá ser até mais rápida do que em 2021.
Os carros serão bem diferentes entre si? Para o meu amigo Nielsen, as restrições do regulamento, redigido por quem até há pouco tempo estava do outro lado, projetando os carros, deverão limitar o surgimento de modelos profundamente diferentes. “É provável que as grandes diferenças só possam ser vistas por quem tem os olhos treinados para enxergá-las.”
Bem, temos aí um painel de temas relacionados à entrada da F1 em uma nova era. Penso ter sido importante entender em que contexto as novas regras foram adotadas.
Sobre o novo regulamento em si
Na segunda-feira vou explicar, com alguma profundidade, o que é a grande vedete do regulamento, os canais Venturi sob o assoalho, maiores geradores de pressão aerodinâmica, ou efeito-solo, a simplificação no desenho dos aerofólios, dianteiro e traseiro, as implicações do uso de pneus com aro 18 polegadas, em substituição aos com aro 13, as limitações de tipos de suspensão, a proibição das hidráulicas, e o aumento do diâmetro dos discos de freios, a fim de parar carros bem mais pesados.
Mais: a elevação das exigências físicas para os pilotos, seu desafio de deixar os boxes com pneus a 70 graus Celsius, no máximo, enquanto em 2021 era 100 graus nos da frente e 80 nos traseiros, sendo que as rodas, agora padrão e distribuídas pelo mesmo fornecedor, BBS, alemão, serão carenadas. Não será mais possível, ao menos como antes, usar o calor das frenagens para aquecer as rodas e, consequentemente, os pneus.
Atente para quantos aspectos técnicos fundamentais na performance vamos discutir. E há bem mais, como a minha preocupação com a segurança. Amigos, os carros de 2022 serão verdadeiros mísseis nas curvas de alta velocidade, diante da impressionante pressão aerodinâmica que vão gerar. Mas esse é assunto para o próximo capítulo de nossa conversa.
Abraços, amigos.
Livio Oricchio
Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.