Olá, amigos.
Dá para contestar a conquista do título de um piloto que em 22 etapas do campeonato vence 10 (45,4%), chega 18 vezes ao pódio (81,8%) e estabelece 10 pole positions? Essa foi a trajetória de Max Verstappen, da Red Bull-Honda, na histórica 72ª edição do mundial de F1, encerrada domingo com o GP de Abu Dhabi.
E se Lewis Hamilton, da Mercedes, fosse o campeão, poderíamos questionar a legitimidade do feito, com suas 8 vitórias (36,3%), 17 pódios (77,2%) e 5 poles (22,7%)?
Ambos disputaram a temporada ponto a ponto, curva a curva, controvérsia a controvérsia e até a última volta da última prova do calendário! No mais otimista cenário, ninguém em sã consciência projetaria, no começo do ano, uma luta tão intensa (lato sensu) entre Max e Hamilton e entre Red Bull-Honda e Mercedes.
Afinal, a equipe alemã vinha de vencer os sete últimos mundiais de pilotos, seis com Hamilton e um com Nico Rosberg, e os sete de construtores. Mais: as modificações no regulamento em 2021, restritas, não sugeriam poder surgir um adversário preparado a ponto de desafiar o time liderado pelo competente Toto Wolff e um gênio da pilotagem, Hamilton.
Mas foi o que aconteceu. Em parte, é verdade. A Mercedes ainda levou, este ano, o campeonato de construtores, ao somar 613,5 pontos diante de 585,5 da Red Bull-Honda. Entre os pilotos você sabe, Max obteve 395,5 e Hamilton, 387,5.
Não há o que discutir, se houvesse uma competição interplanetária, os representantes da Terra, seja Max ou Hamilton, Red Bull-Honda ou Mercedes, dignificariam os seres humanos, a ponto de nos orgulharmos.
Mostro tudo isso para expor que, para mim, há legitimidade esportiva no resultado final da F1 este ano. O escorregão de Max, no Catar, ao realizar o brake teste com Hamilton, não nos impede de admirar seu impressionante trabalho ao longo das 22 corridas. Tanto o dele quanto o de Hamilton já entraram para a antologia da F1.
Veja a ultrapassagem decisiva de Verstappen sobre Hamilton em Abu Dhabi:
Agora, o que exigirá profunda reflexão sobre os acontecimentos dentro e fora da pista, este ano, é a postura da FIA, dos proprietários dos direitos comerciais da F1, o grupo americano Liberty Media, representado pela Formula One Management (FOM), e mesmo os representantes das dez escuderias.
Falta comando
Literalmente a gestão esportiva da competição não funcionou. A ponto de muito provavelmente a Mercedes apelar da decisão dos comissários do GP de Abu Dhabi – tem prazo até quinta-feira -, que não acataram o seu protesto contra o resultado da corrida, sob a alegação de o diretor de prova, o australiano Michael Masi, 42 anos, não ter respeitado o regulamento sobre uso do safety car.
Fixemo-nos no tema. Eu pergunto: você sabe quem é que toma as decisões durante as corridas? O diretor de prova ou os diretores dos times, que permanecem quase o tempo todo, nas ocasiões polêmicas, argumentando no rádio, em tempo real, com Masi?
Isso é o que primeiro precisa acabar? Diretor de equipe não tem nada de ficar discutindo com o diretor de prova durante a corrida. É coisa de louco. Existe uma autoridade e ela tem de ser respeitada e suas decisões acatadas. Ponto. Se não concordar, procure os tribunais de contestação, o protesto no fim da prova e, se não funcionar, recorrer ao Tribunal de Apelação da FIA, com deverá fazer a Mercedes.
Na F1 as coisas não têm fluido dessa forma porque não existe essa figura da autoridade. Masi é contestado por quase todos. Uma liderança fraca, de conhecimento limitado pela pouca experiência, faz com que cada diretor de equipe o chame no rádio, com frequência chocante, para decidir em seu favor.
F1 tem grande oportunidade de mudar
Basta! Na sexta-feira, em Paris, haverá eleição para a presidência da FIA. Jean Todt deixa a entidade que liderou desde 2009. Há dois candidatos, o inglês Graham Stoker, já secretário geral da FIA, e o representante dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed ben Sulayem.
Seja um ou outro, sua missão será rever a forma como a F1 é administrada esportivamente. O nome de Masi está por demais desgastado para mantê-lo no cargo. O novo presidente da FIA deve definir com os representantes das equipes e da GPDA, a associação dos pilotos, além da FOM, um nome de consenso, essencialmente com experiência.
Em seguida discutir a redação de um novo conjunto de regras, de forma a, dentro do possível, deixar as coisas o mais claro possível, a fim de evitar interpretações distintas dos comissários para situações semelhantes, como vimos acontecer este ano. Não é algo simples, mas com certeza é possível melhorar esse modelo que aí está e comprovadamente não funciona.
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Uma ocasião Bernie Ecclestone, líder da F1 por 40 anos, afirmou que o excesso de democracia é um grande mal para a F1. Foi mal interpretado e bastante criticado. Mas referia-se a isso, a impossibilidade de agradar a todos em uma atividade com tantos interesses em jogo, na maioria das vezes conflitantes. “Você tem de apresentar soluções prontas, caso contrário não há como funcionar”, disse Ecclestone.
Privilegiar a luta aberta, a qualquer preço
Falemos, pois, sobre as voltas finais da corrida no Circuito Yas Marina, domingo.
Atente para este cenário: com absoluta certeza Masi foi orientado por todos, direção da FOM e mesmo da FIA, para, sendo possível, não terminar a corrida com o safety car, para não reduzir o impacto de uma temporada tão espetacular para a F1, em especial por vir depois de sete anos de hegemonia absoluta de um único concorrente, a Mercedes.
Masi estava, portanto, pressionado a tentar liberar a disputa, por uma volta que fosse. Quando autorizou a entrada do safety car nos boxes, no fim da 57ª e penúltima volta, de fato a pista estava livre na curva 9, local do choque do canadense Nicolas Latife, da Williams-Mercedes, na barreira de proteção.
Não há dúvida sobre esse procedimento. O que me chamou a atenção – e de todo mundo ligado no universo da F1 – é o que Masi fez antes. Veja: quando Latife colidiu na 52ª volta e ficou com o carro atravessado na pista, o líder era Hamilton, com Max em segundo, 11s183 atrás, e Sérgio Perez, companheiro de Max, em terceiro, a 26s712.
Entre Hamilton e Max havia quatro retardatários, com uma volta a menos: Lando Norris, da McLaren-Mercedes, Fernando Alonso, Alpine, Esteban Ocon, Alpine, e Daniel Ricciardo, McLaren-Mercedes.
Faltavam pouco menos de seis voltas no traçado de 5.281 metros, algo como 30 quilômetros, percorridos à média de 220 km/h, para Hamilton se tornar o maior campeão de todos os tempos, com oito títulos mundiais. Michael Schumacher tem sete, como o inglês.
A Red Bull-Honda chama Max para os boxes. Troca os seus pneus duros colocados na volta 36 pelos macios. Perde, no total, 21 segundos e 453 milésimos. Max regressa à pista, sob regime de safety car, para a retirada da Williams de Latife, ainda em segundo lugar e a somente 7s869 de Hamilton, sempre líder.
A essa altura, 54ª volta, tínhamos a Mercedes de Hamilton puxando o pelotão, com Norris, Alonso, Ocon, Charles Leclerc, da Ferrari, e Sebastian Vettel, Aston Martin-Mercedes, atrás, todos retardatários, com uma volta a menos de Hamilton. Só então aparece Max, o segundo colocado. Entre ele e Hamilton existiam cinco retardatários.
Autorizar a ultrapassagem do safety car
Christian Horner, diretor da Red Bull-Honda, entra no rádio e diz a Masi que ele deve permitir aos retardatários ultrapassar o safety car para entrar na volta dos primeiros colocados, como é de praxe na F1. Está previsto no regulamento.
Masi responde que não vai autorizar a ultrapassagem e pede para não ser incomodado, pois conversa com os comissários de pista envolvidos na liberação da pista. O diretor de prova sabe que tem de chamar o quanto antes o safety car para os boxes, precisa que a corrida não acabe sob seu regime.
Masi experimenta ebulição interior. Vê a hora da bandeirada se aproximar e o safety car segue na frente dos carros.
Vem a volta 55 e nada acontece. Fica tudo como está, safety car na pista e o corso formado por Hamilton, Norris, Alonso, Ocon, Leclerc e Vettel. Só então aparece Max, sedento para desfrutar dos pneus macios novos, enquanto Hamilton tem duros colocados no pit stop realizado ainda na 14ª volta, portanto já com 41 voltas de uso. Na volta 56, o cenário permanece inalterado.
Decisão inesperada e sem sentido
Mas na passagem seguinte, a 57ª, a uma da bandeirada, Masi faz o que afirmou a Horner que não faria três voltas antes: diz aos diretores esportivos de McLaren, Alpine, Ferrari e Aston Martin-Mercedes que seus pilotos, Norris, Alonso, Ocon, Leclerc e Vettel podem ultrapassar o safety car para entrar na volta dos líderes.
Primeira pergunta que faço: essa regra foi criada para dar a chance aos retardatários, com ritmo de corrida semelhante ao dos primeiros colocados, de se reinserir na luta pelas melhores colocações. Mas o que os cinco poderiam fazer em uma volta, sendo que teriam de percorrer a pista toda até chegar no fim do pelotão que já estava na mesma volta dos líderes?
Olha o que Leclerc afirmou: “Não entendi, nos lançaram na pista sem ter ninguém por perto”. Claro, o pelotão estava atrás de Hamilton, que iria abrir ainda a 58ª e última volta, já sem o safety car na pista.
Final previsível
O fato é que a ordem de Masi levou Max a ficar imediatamente atrás de Hamilton, com pneus cerca de dois segundos mais rápidos que os do piloto da Mercedes. Estava óbvio que, se nada de anormal acontecesse, Max ultrapassaria o adversário na luta pelo título, sem dificuldades, na última volta, liberada para a disputa. Norris definiu a decisão de Masi como “voltada para o show, a TV”.
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Max ultrapassou Hamilton na freada da curva 5. Seus pneus lhe permitiram brecar bem depois, assim como tracionar melhor. Mas Hamilton teria ainda uma pequena chance de tentar voltar para primeiro nas duas longas retas a seguir, com o uso do vácuo. Max defendeu sua posição com competência.
Aqui outro ponto que tem de ser revisto já. A Mercedes argumentou, com razão, que Masi não poderia ter deixado somente os cinco pilotos que estavam entre Hamilton e Max ultrapassar o safety car. Ou não deixa ninguém ou libera para todos.
Prerrogativas exageradas
A resposta da FIA e dos comissários na análise do protesto oficial do time alemão foi que o diretor de prova tem autonomia para administrar o safety car. Não houve, portanto, transgressão às regras. Se é assim, ele pode fazer o que bem desejar com o safety car, como nesse caso, em que escolheu exatamente os que estavam entre Hamilton e Max para ultrapassá-lo, com o objetivo de permitir uma luta entre os dois candidatos ao título na última volta.
Confira a narração de Sergio Mauricio da última volta do GP de Abu Dhabi:
A Mercedes não chamou Hamilton para os boxes quando Masi ordenou a entrada do safety car, na 53ª volta, porque, sendo primeiro do pelotão, perderia a liderança. A diferença para Max era pequena para essa estratégia, lembra? 11s183. O pessoal de Max, ao ver Hamilton entrar nos boxes, o manteria na prova sem pit stop, para assumir o primeiro lugar. Seus pneus tinham bem menos voltas que os do concorrente, 17 (53-36) e 39 (53-14).
Não favoreceu ninguém de propósito
Será que Masi, nesse caso, também ordenaria que os retardatários entre o então líder, Max, e Hamilton, segundo, também ultrapassassem o safety car, para que na volta final os dois duelassem pela vitória e o título? Não sabemos.
Na minha opinião, sim. Não acredito que a orientação da FIA e da FOM fosse para privilegiar esse ou aquele conjunto piloto/equipe, mas para encontrar maneiras de deixar a luta seguir seu rumo, agilizar as neutralizações da disputa.
E foi o que vimos, só que de maneira até ingênua no meu entendimento. Talvez Masi não tenha mensurado com precisão as consequências de tirar somente os retardatários entre Hamilton e Max, colocando-os lado a lado, como vimos nos instantes que antecederam a saída do safety car da pista no fim da 57ª volta.
Em resumo, amigos, não acredito em ação deliberada do diretor de prova para favorecer Max e a Red Bull. Não concordo com Hamilton que viu tudo como “uma ação manipulada”.
Entendi como uma profunda demonstração de despreparo de Masi para exercer tão importante função. O objetivo final de fazer com que Max e Hamilton ainda tivessem um último round na luta, sem retardatários para interferir, fez com que o resultado final fosse profundamente alterado.
Grande desafio pela frente
Senhor novo presidente da FIA, estude com muita atenção tudo o que se passou não apenas no Circuito Yas Marina. Crie uma comissão para estudar um novo código esportivo, proíba as conversas entre o novo diretor de prova e os diretores das equipes, durante as corridas, e apoie sua autoridade.
Sem uma liderança forte e conhecimento de causa vira essa bagunça a que assistimos em diversas ocasiões, este ano, com interferência direta na definição do campeão do mundo.
Felizmente o nível dos dois adversários, os pilotos e seus times, era tão elevado, tão acima dos demais que, como escrevi, fosse um ou outro o título seria, do ponto de vista do mérito, absolutamente legítimo.
Vamos seguir trocando ideias aqui nos próximos dias. Vem aí um raio X da temporada de 2022 como você ainda não viu, contada por profissionais que estão lá, pesquisando o que fazer com o novo e complexo regulamento.
Grande abraço. É sempre um prazer compartilhar o que aprendo com vocês.
Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.