Olá amigos.
Não será apenas o campeonato programado para começar dia 20 de março, no Bahrein, mas os três seguintes, pelo menos, também vão ser severamente impactados pelas novas e radicais regras introduzidas este ano na F1. Hoje nos limitaremos a conversar sobre o conceito que está de volta à competição depois de 39 anos, o chamado efeito-solo ou do carro-asa. Nos próximos dias vamos esmiuçar, juntos, o texto desse tão aguardado regulamento.
Dê uma olhada na foto abaixo. É da Brabham BT49C-Ford Cosworth, modelo-base do usado por Nelson Piquet para conquistar seu primeiro título mundial, em 1981. O que mais te chama a atenção? Não deve ser difícil entender que é o fato de o carro não ter aerofólio dianteiro, concorda?
Agora observe o modelo RB16B-Honda da Red Bull, pilotado por Max Verstappen, em 2021, para ser campeão do mundo com dez vitórias nas 22 etapas do campeonato.
O carro de Max não apenas tem um aerofólio dianteiro de dimensões generosas como fica evidente o profundo estudo realizado para direcionar os fluxos de ar que o circundam para gerar pressão aerodinâmica. Mais: potencializar a produção dessa mesma pressão em outras áreas do modelo RB16B, como no distante difusor, lá na parte de trás do assoalho, sob o aerofólio traseiro.
Agora me responda, por favor? O que acontecia quando Piquet seguia bem de perto os adversários Alan Jones e Carlos Reutemann, com Williams FW07C-Ford Cosworth – vale o contrário -, e o que se passava quando Max se posicionava a poucos metros de Lewis Hamilton, da Mercedes, ou vice-versa, em uma curva de média ou alta velocidade, para tentar ultrapassá-lo na reta logo mais à frente?
Dá para ver que é intuitivo que Piquet e os pilotos daquela época da F1, fim dos anos 70 e início dos 80, tinham menos dificuldades do que Max, Hamilton e a geração que hoje compete na F1 para ficar perto do adversário a fim de tentar a ultrapassagem?
Frente menos sensível
No caso da Brabham BT49C, concebido pelo grupo do projetista sul-africano Gordon Murray, quase não havia perda de pressão aerodinâmica, pois os fluxos de ar em turbulência gerados pelo carro logo na sua frente pouco interferiam na sua capacidade de produzir pressão aerodinâmica na área frontal.
Ela era gerada bem mais para trás no carro, principalmente do centro para a traseira. Essa é a razão de a Brabham não incorporar o aerofólio dianteiro no BT49C em várias etapas do calendário. O centro de pressão aerodinâmica encontrava-se mais para trás no carro do que agora.
E hoje, o que acontece com o RB16B, projeto coordenado por Adrian Newey? A importância do aerofólio dianteiro é tamanha que o piloto simplesmente não pode seguir o concorrente de perto. Quando ele fica próximo, o aerofólio dianteiro recebe menos ar.
Consequências: primeiro, gera bem menos pressão aerodinâmica, não só na frente como no carro como um todo. Isso faz com que o piloto perca velocidade de contorno da curva. Provoca também derrapagem dos pneus dianteiros, por haver menos força pressionando-o contra o asfalto, elevando sua temperatura e apressando bastante o desgaste.
Outro efeito indesejável de seguir o concorrente de perto é a quase impossibilidade de o aerofólio dianteiro orientar os fluxos de ar para, com a ajuda dos defletores e desviadores menores, abundantes no carro, chegarem às laterais e, principalmente, no difusor.
Maior integração
Repare que existe hoje uma superintegração entre as várias porções do monoposto, dianteira, central e traseira. A busca por melhor resposta aerodinâmica chegou à era da microaerodinâmica, o que não existia, ou não era considerada, no fim dos anos 70 e início dos 80. Tudo, agora, tem de ser explorado. É a evolução natural do automobilismo, na realidade de qualquer atividade.
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Na F1, tudo é uma solução de compromisso que começa no aerofólio dianteiro. Sabe o que ouvi, em mais de uma ocasião, de Rory Byrne, o responsável pela aerodinâmica dos dois modelos da Benetton usados por Michael Schumacher para ser bicampeão, em 1994 e 1995? E que Byrne nos disse também quando foi a Ferrari para assinar o projeto aerodinâmico dos cinco modelos campeões mundiais com o piloto alemão, de 2000 a 2004?
– Um carro de F1 começa pelo aerofólio dianteiro. Não é coincidência. É lá que se faz a triagem dos fluxos de ar que vão passar sob o assoalho, por dentro do carro, através das tomadas de ar, e sobre ele, atingindo por exemplo o aerofólio traseiro.
Impossível ficar perto
Menciono tudo isso para expor a necessidade de o piloto, nos últimos anos, em especial, ter de manter certa distância do carro à frente. É o que acontece nos pelotões formados naturalmente nas corridas, não somente no da frente.
Em 2019, a F1 adotou um regulamento que limitava a criação de vórtices, fluxos de ar em movimento giratório em alta velocidade, de elevada energia, ao restringir o uso de superfícies capazes de gerá-los na área frontal dos carros, em especial no aerofólio dianteiro.
Esperava-se que reduzisse essa quase impossibilidade de um piloto seguir o outro de perto. Esses vórtices, ao deixar o carro e atingir o que está atrás, reduzem sensivelmente sua capacidade de gerar pressão aerodinâmica.
Não funcionou. Como comentou na época o grego Nikolas Tombazis, responsável da FIA pela seção de monopostos: “Adotamos um remédio homeopático enquanto a situação exige um halopático”.
Esses elementos todos levaram Tombazis, Ross Brawn, engenheiro da FOM, empresa que defende os interesses dos donos dos direitos comerciais, o grupo americano Liberty Media, e a direção das equipes a debater a introdução na F1 dos conceitos básicos aplicados no modelo BT49C da Brabham de Piquet, dentre outros, a volta do chamado carro-asa.
Chapman, o pioneiro
Em 1977, Colin Chapman lançou a Lotus 78. O carro tinha nas laterais duas estruturas com o perfil de asa invertida. Imagine grosseiramente duas fatias do aerofólio traseiro cortadas longitudinalmente e colocadas uma de cada lado do carro.
Outros dispositivos foram concebidos para obter o resultado aerodinâmico desejado, como fechar as laterais e instalar nelas as chamadas minissaias, que raspavam no solo, para formar um túnel destinado a disciplinar o ar.
O sucessor do modelo 78, o 79, utilizado no mundial de 1978, permitiu ao time criado por Chapman ser campeão com Mario Andretti e vice com Ronnie Peterson, falecido naquele ano, no GP da Itália. A Lotus 79 explorava brilhantemente o chamado efeito-solo.
O efeito-solo é a capacidade de o carro, como um todo, funcionar como um aerofólio, uma asa de avião invertida, a fim de gerar uma força de cima para baixo, a downforce, destinada a pressionar o carro contra o solo e lhe permitir contornar as curvas mais velozmente, dentre outros benefícios, como melhor explorar os pneus.
A Brabham BT49C de Piquet, em 1981, assim como todos os demais monopostos de 1980, 1981 e 1982, desfrutavam do efeito-solo, lançado pela Lotus. Não quero entrar em detalhes, ao menos agora, para explicar que o efeito-solo tem origem em princípios físicos descritos pelo italiano Giovanni Venturi e o suíço Daniel Bernoulli, ambos no século XVIII.
Simplificação dos componentes
Pois FIA e FOM discutiram por pelo menos dois anos com os representantes das equipes a implantação de algo similar na F1 a partir de 2021, depois adiado para a temporada deste ano por causa da pandemia do coronavírus.
Os objetivos são reduzir a responsabilidade dos aerofólios, em especial o dianteiro, na geração de pressão aerodinâmica, repassar para o assoalho, não mais plano, mas com perfil de asa invertida, como na época dos carros-asa, a maior parte dessa responsabilidade e, claro, transferir o centro de pressão aerodinâmica mais para trás.
Na etapa de Silverstone, no ano passado, em julho, a décima, a FIA apresentou um protótipo para dar uma leve referência de como podem vir a ser os modelos de 2022 da F1. Compare, por exemplo, o desenho do aerofólio dianteiro com o do RB16B-Honda de Max. Haverá importante simplificação, agora.
Se o piloto estiver 10 metros atrás do adversário à frente, as pesquisas da FIA e das equipes sugerem que a perda de pressão aerodinâmica, em 2022, será de 4% apenas e não 47% como em 2021. Em outras palavras, deverá ser possível ao piloto percorrer uma curva, mesmo rápida, no vácuo do carro posicionado na sua frente, elevando as chances de ultrapassagem, para o bem do show.
Atente, ainda, ao fato de os modelos de 2022 terem uma linha muito mais fluida, sem os muitos apêndices aerodinâmicos destinados a gerar downforce ou potencializar as superfícies criadoras, proibidos pelo regulamento.
Mais times lutando na ponta
É uma revolução. A reintrodução do efeito-solo, baseando-nos no que já vimos na F1, embora em outra realidade, é um caminho que deve ser tentado, sim, para melhorar a qualidade do espetáculo, ainda que em 2021 não temos do que reclamar.
A revisão de conceitos abre a perspectiva de uma mudança na ordem de forças entre as equipes apresentada pela F1 nos últimos anos. Se acontecer de mais times poderem lutar pelos melhores resultados, o evento como um todo capitalizará bastante.
Depois da proibição exatamente do efeito-solo, ao menos como era, de 1982 para 1983, a revisão técnica conceitual da F1, este ano, a surpreendente volta do efeito-solo, representa uma transformação tão radical quanto aquela. Newey a definiu como a mais importante da F1 em 39 anos de história.
Até que os ultraesperados modelos de 2022 iniciem seus testes, em Barcelona, de 23 a 25 de fevereiro, não temos ideia de como poderá ser a F1. Considere, por favor, que as dez equipes tiveram a sua disposição, em 2021, para conceber seus novos carros e disputar o mundial, o mesmo orçamento, US$ 145 milhões (R$ 800 milhões), algo também inédito na competição. Antes as diferenças de investimento eram brutais.
Não se esqueça de que o número de horas de trabalho no túnel de vento é limitado também, com os primeiros colocados, em 2020, dispondo no ano passado de menos que os últimos na classificação, algo que pode ajudar a compactar um pouco o grid.
Marquemos, pois, novo encontro aqui para entrarmos especificamente no texto do novo regulamento. Na semana passada viajamos pela preparação das dez equipes, como se estruturaram para a disputa do campeonato deste ano. Hoje conversamos sobre o conceito que está de volta à F1 depois de fazer sucesso na competição há quase quatro décadas. Obviamente está faltando destrincharmos as novas regras.
Grande abraço, amigos.
Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.