O homem-forte da Red Bull abriu o jogo nesta entrevista exclusiva. Fala dessa inesperada vantagem da Mercedes, no final do campeonato, e não deixa de criticar duramente Hamilton pelo acidente com Max, em Silverstone.
Olá, amigos.
Ele tem um único olho, o direito. O esquerdo perdeu quando ainda era piloto de F1, no GP da França de 1972, isso mesmo há quase meio século, atingido por uma pedra que perfurou a viseira. Colocou uma prótese de vidro, mantida até hoje. Mas esse olho direito é capaz de enxergar longe, especializado em detectar jovens talentosos pilotos potencialmente capazes de realizar memorável carreira na F1.
Doctor Helmut Marko, 78 anos, é o homem-forte da equipe Red Bull e líder do programa de formação de meninos aspirantes a fazer sucesso no automobilismo. Do seu trabalho surgiram: Sebastian Vettel, quatro vezes campeão do mundo pela equipe Red Bull, de 2010 a 2013, Max Verstappen, na luta pelo título, este ano, Daniel Ricciardo, Pierre Gasly, todos vencedores de GPs, dentre outros.
Famoso por ser uma espécie de sargento rigoroso desses jovens nos autódromos e depois das corridas, no telefone, Marko é também bastante ativo na gestão do time de F1, participa das mais importantes decisões do grupo.
É o braço direito do sócio majoritário da empresa produtora do energético Red Bull, o austríaco Dietrich Mateschitz, cuja política é investir cerca de 35% do faturamento de US$ 2,5 bilhões em marketing esportivo, a grande maioria em esportes radicais.
Doctor Marko está hoje no Circuito Losail, no Catar, acompanhando a árdua luta entre seu pupilo, Max Verstappen, e Lewis Hamilton, da Mercedes, pelo título mundial. Max está 14 pontos na frente de Hamilton, depois de 19 etapas já realizadas, 332,5 a 318,5. Cada ponto vale muito! Segue de perto, ainda, a disputa pela vitória no campeonato de construtores com a Mercedes. Os alemães lideram com 521,5 pontos diante de 510,5 da Red Bull-Honda.
Conversei com Doctor Marko no sábado do GP de São Paulo, há uma semana. Foi uma longa conversa, por vezes informal, como de costume. Você tem aqui nessa entrevista o que ele pensa da luta com Hamilton, critica o piloto inglês, não esconde a preocupação com a potência da unidade motriz Mercedes usada pela primeira vez em Interlagos e diz, mesmo assim, confiar na conquista do título.
Se você gosta de F1 e acompanha seus acontecimentos, considero essa entrevista apropriada para entender muita coisa. Aproveite. Abraços, amigos.
Livio Oricchio (LO) - Dr. Marko, o senhor esperava, no começo do ano, que fosse chegar a 19ª etapa do campeonato com seu piloto, Max Verstappen, na liderança do mundial de pilotos com 9 vitórias, diante de 5 de Lewis Hamilton (Mercedes), 9 pole positions ao passo que o adversário soma 3? Mais: estar no mundial de construtores tão próximo da Mercedes, podendo sua equipe também ser campeã? (Hamilton tem na realidade 6 vitórias, este ano, com a de Interlagos. A entrevista foi realizada antes da sprint race.)
Helmut Marko (HM) – Sim. Vimos nos testes de inverno que dispúnhamos de um carro muito competitivo. Na realidade, isso vem do fim do ano passado, quando vencemos a última corrida por sermos mais rápido que a Mercedes e o regulamento não mudou. Começamos a temporada muito confiantes. A Honda também fez um grande avanço na sua unidade motriz. Definitivamente sabíamos poder lutar pelo título, como estamos fazendo.
LO – Na realidade, tivemos uma revisão das regras, as restrições aerodinâmicas na parte traseira dos carros, como a redução do assoalho e das paredes laterais do difusor. Os próprios engenheiros dizem até hoje que o impacto da mudança foi bem maior do imaginado a princípio.
HM – Se você está se referindo à impressão geral de que nós nos demos bem por causa de usar um grau elevado de rake, eu digo que não há como provar que isso nos favoreceu. O que é certo é que dispúnhamos de um carro muito rápido no fim de 2020 e a Honda nos deu uma grande unidade motriz este ano. (Rake é o grau de inclinação do carro no sentido longitudinal. O modelo RB16B-Honda da Red Bull adota elevado grau de rake, ou seja, sua frente é bem mais rebaixada que a traseira. Para os demais carros essa disposição do chassi não gera a eficiência do monoposto de Max e seu parceiro, o mexicano Sérgio Perez, concebido pelo grupo liderado pelo genial projetista Adrian Newey. A maioria na F1 acredita que as supostas pequenas alterações do regulamento ajudaram, involuntariamente, o carro da Red Bull ganhar performance.)
LO – As poles de Hamilton e Valtteri Bottas foram, em geral, obtidas com tempos melhores que os de 2020. Mas as de Max com uma diferença ainda maior para suas marcas no ano passado. A Red Bull-Honda avançou mais que a Mercedes nesta temporada?
HM – Sim, nós demos um grande passo para a frente. Sem dúvida surpreendemos a Mercedes. Mas eles estão na luta pelo título, têm uma grande equipe e um piloto supercompetitivo. É por isso que essa disputa no meu entendimento vai até a última etapa do calendário (GP de Abu Dhabi, dia 12 de dezembro, no novo traçado do Circuito Yas Marina).
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LO – Max tem demonstrado este ano ser um piloto absolutamente excepcional. Veloz, como sempre, mas muito mais maduro, capaz de administrar os resultados nas corridas, um verdadeiro campeão do mundo em potencial. Quando o senhor o convidou para a F1, em 2014, depois das seis vitórias seguidas na F3 europeia, três em Spa-Francorchamps, na Bélgica, e três em Norisring, Alemanha, e tinha apenas 16 anos de idade, achou que ele seria o piloto que estamos vendo, capaz de vencer o duelo, por exemplo, com Hamilton?
HM – (Dr. Marko esboça aquele sorriso de quem apreciou a pergunta.) Eu esperava, sim, que Max fosse tão competente na F1. Mas não por causa das seis vitórias seguidas. Acompanhei suas corridas em Norisring. Fiquei muito impressionado. Como você lembrou, vinha do kart, tinha 16 anos. Em Norisring as corridas foram disputadas com pista seca, molhada, seca, e Max era um a dois segundos mais rápido que todos os demais em uma pista bem curta (circuito de rua, com apenas 2.300 metros de extensão). Aquilo era para mim sinal de alguma coisa, tinha um talento de fato especial. No dia seguinte liguei para o seu pai e ofereci ao filho uma vaga de titular na então Toro Rosso, hoje Alpha Tauri, nosso outro time, em 2015. E eu estava certo, não acha? Na estreia na Red Bull, no ano seguinte, em Barcelona, venceu de forma incontestável, ao manter Kimi (Ferrari) atrás de si por 20 voltas, com um carro mais rápido, por saber administrar o uso dos pneus.
LO – O que mais o impressiona em Max?
HM – Sua maturidade comparada à idade (completou 24 anos dia 30 de setembro e já disputou 139 GPs, tem 19 vitórias, 57 pódios e 12 pole positions). Ele está incrivelmente tão à frente, é tão competitivo. Foi inclusive um problema no começo, sempre queria vencer, de qualquer maneira. Agora ele aprendeu a gerenciar sua força. Um bom exemplo é o que vimos este ano na Turquia. Max compreendeu que não havia como tentar lutar com Valtteri e trouxe para casa o máximo possível, o segundo lugar. Dois anos atrás ele iria para cima de Valtteri de qualquer jeito até rodar e talvez jogar tudo fora. Ele é um menino, ainda, muito jovem, e já tem essa visão, sem perder a gana de sempre querer vencer. Outro exemplo: agora, no México, estava pilotando ao mesmo tempo em que discutia conosco, no rádio, qual a melhor estratégia a ser adotada. Com muita coerência disse o que deveríamos fazer. Essa não é sua função, mas pilotava e raciocinava ao mesmo tempo. Sua estratégia o levou à vitória. Ficamos impressionados.
LO – É fácil trabalhar com Max?
HM – Basicamente, sim. Às vezes, em especial no começo, ele era muito impaciente. Um menino com muita gana, vontade de fazer as coisas. Mas você tem de ser assim, querer que tudo se resolva rápido. Seu pai, também, no início, não interferia, mas dava muita opinião. Ok, entendíamos, afinal fez um trabalho fantástico com o filho no kart, ajudando-o a se formar como piloto. Mas na F1 as coisas funcionam de forma diferente, o amadurecimento de um piloto é mais lento, diferente do kart, o limite é muito mais alto. Demos início, então a um processo de distanciar a relação profissional entre Max e o pai, cortar o cordão umbilical. Não foi fácil, mas funcionou e hoje está ótima.
LO – Como Jos Verstappen reagiu, aceitou deixar o filho seguir seu rumo, não dar palpite mais no seu trabalho?
HM – Obviamente tivemos de pedir para não vir a todas as corridas e ele não entendeu os benefícios para o filho de uma hora para outra, levou um tempo.
LO – Eu entrevistei Jos várias vezes, em especial no início de carreira, jovem, 22 anos, quando chegou a Benetton como companheiro de Michael Schumacher, em 1994. Era muito impulsivo, truculento.
HM – (Risos). Ainda é. (Jos disputou oito temporadas de F1, de 1994 a 2001, por oito equipes distintas. Largou 106 vezes e obteve dois pódios, sem vitórias ou pole positions.)
LO – O senhor está satisfeito com o trabalho de Sérgio Perez?
HM – Começou o campeonato muito bem, mas então passou a não produzir tanto. Foi quando compreendeu que seja lá o que fizesse não conseguia acompanhar o ritmo de Max. Começou a mudar o acerto do carro, tentar fazer coisas diferentes para ver se chegava em Max. Seu ritmo de corrida é realmente bom. O problema de Sérgio é a sessão de classificação, o que sempre foi uma dificuldade para ele, uma pena. Com sua velocidade na corrida se largasse mais à frente conquistaria muito mais. Está trabalhando duro para melhorar e vimos uma evolução. Desde a etapa de Monza Sérgio está bem mais próximo de Max na definição do grid, ajudando-o a obter três pódios seguidos (terceiro lugar nas provas da Turquia, dos Estados Unidos e do México. Ocupa a quarta colocação no campeonato, com 178 pontos, ou 154,5 a menos de Max, com uma vitória, cinco pódios.)
LO – Sérgio pediu à equipe para que o carro não reagisse tão diferente do que gosta?
HM – Em determinado momento, sim. Nós o ajudamos, claro. Mas se em uma equipe um dos pilotos consegue tirar velocidade do carro, então a equipe tem um carro competitivo. Cabe ao outro piloto descobrir como também tirar velocidade desse carro, se adaptar a suas características, com a nossa ajuda, como disse. É o seu desafio.
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LO – Dr. Marko, como está vendo a emocionante luta ponto a ponto entre Max e Hamilton pelas vitórias, pelo título?
HM – Acho que é um mundial épico da F1. Lutas soberbas, comparáveis apenas às entre Senna e Prost. Muito tensa, sim, mas em um nível muito, muito alto. Os dois pedem para não interferirmos. São dois pilotos com histórias diferentes, um já bem experiente, muitas vezes campeão, o outro bem jovem, cheio de vontade, defendendo duas organizações também completamente distintas, Red Bull e Mercedes, que atuam, como marca, em áreas diversas... ponha tudo isso em uma pista e você tem o espetáculo que tem agradado a todos.
LO – Qual a sua visão do acidente entre Hamilton e Max no GP da Grã-Bretanha (décima etapa, dia 18 de julho), em Silverstone? (Na primeira volta, Max liderava, com Hamilton bem próximo. Ao chegar na veloz Curva Copse, à direita, Max a iniciou com Hamilton por dentro. Os dois se tocaram a algo como 260 km/h. O holandês foi parar na barreira de pneus e levado a um hospital. Felizmente sem consequências maiores. Hamilton pôde seguir na corrida e venceu diante da sua torcida.)
HM – Um péssimo comportamento de Hamilton. Ele bateu em Max por trás, não aceitável, em especial em uma curva de tão elevada velocidade. Poderia ter evitado o acidente se tivesse tirado o pé, estava por dentro. Na velocidade em que vinha não faria nunca a curva, seguiria direto para a área de escape. Vimos com Leclerc, foi a mesma coisa. Se nós perdermos o campeonato será por isso, os acidentes em Silverstone e Budapeste. (No GP da Hungria, Bottas errou a freada da primeira curva, depois da largada, acertou Lando Norris, da McLaren, que por sua vez bateu no carro de Perez, levando-o a abandonar. Além disso, colidiu com o RB16B-Honda de Max, destruindo parte da lateral direita. Sem performance, o holandês não foi além do nono lugar. Hamilton ficou em segundo.)
LO – Qual a sua projeção para as três corridas finais, no Catar, na Arábia Saudita e em Abu Dhabi, considerando-se que serão três pistas onde ninguém ainda andou (os circuitos de Losail, no Catar, e Jeddah, Arábia Saudita, estreiam na F1, enquanto o Yas Marina, em Abu Dhabi, teve o traçado refeito.)
HM – O que primeiro quero dizer é que Hamilton passou a dispor de um foguete, não motor, aqui em Interlagos, incrível. Sua velocidade nas retas é impressionante. Estamos realmente preocupados. Se você tem um motor como esse, pode realizar outra troca de motor. Ok, vai perder cinco posições no grid, mas sabe que com a potência desse novo motor as cinco posições a mais no grid não representam nada. Em Jeddah há uma reta imensa, como lutar contra eles? Como falei, estamos pensando o que fazer. No nosso motor a degradação é muito pequena e não temos mais problemas com a sua confiabilidade, resistência, mas a potência do motor deles preocupa.
LO – A F1 em 2022 será bem diferente, carros com efeito solo, pneus de 18 polegadas em vez de 13, em resumo, outro desafio de engenharia. E dos grandes. Estamos vendo novidades nos carros da sua equipe a cada etapa, o desenvolvimento é evidente. Já os demais times se concentram quase que totalmente no projeto de 2022. Esse foco também na temporada atual não pode comprometer o seu mundial do ano que vem?
HM – (Dr. Marko quase não me deixa terminar a pergunta). Não. Estamos trabalhando em paralelo, um grupo se dedica ao atual campeonato e outro ao projeto de 2022. O desenvolvimento do modelo do ano que vem vai muito bem, contratamos profissionais da Mercedes que nos passaram informações deles. Isso nos permitiu entender que estamos um pouco atrasados em relação a eles, mas muito confiantes que estaremos na mesma condição em breve.
LO – Dr. Marko, as horas no túnel de vento são bastante limitadas, agora, e há um inédito limite orçamentário anual (US$ 145 milhões, ou R$ 800 milhões) para tudo, o carro deste ano e o de 2022. De fora, é difícil pensar que as muitas horas de túnel de vento gastas com o carro deste ano, bem como o dinheiro necessário para desenvolvê-lo, não possam impactar o projeto de 2022, com menos horas de túnel à disposição e menos dinheiro para ser trabalhado.
HM – Não, não, está tudo calculado, dentro do planejado. Temos total capacidade de tocar os dois projetos sem comprometer um ao outro.
LO – Qual o impacto da saída da Honda da F1 no ano que vem?
HM – Será principalmente financeiro. Vamos seguir recebendo os motores da Honda, mas teremos de pagar por eles, enquanto hoje é grátis. Não muda nada em relação a hoje. A Honda nos fornecerá o motor e dentro do permitido será trabalhado ao longo do ano. Como disse, será como agora, mas com a diferença de tudo ser pago por nós. Para os anos seguintes, 2023, 2024 e 2025, não sabemos, ainda, como será.
LO – Comente, por favor, sobre a nova empresa criada por vocês, a Red Bull Power Trains, concebida para projetar, construir e desenvolver unidades motrizes próprias para a Red Bull, a fim de não mais depender de ninguém.
HM – Sim (demonstra prazer no tema). Estamos construindo. Em maio ou junho do ano que vem a fábrica vai estar pronta, dotada dos mais avançados recursos tecnológicos, dinamômetros de última geração, 200 profissionais qualificados, contratados também da Mercedes, Ferrari e Renault. Temos certeza absoluta que produziremos unidades motrizes das mais eficientes da F1.
LO – O programa de jovens pilotos comandados pelo senhor já gerou campeões do mundo como Sebastian Vettel e agora outro piloto capaz de vencer o campeonato, Max, dentre outros. Há algum supertalento que vocês estão preparando para em breve chegar na F1 e fazer sucesso?
HM – Sim. Temos, por exemplo, Lian Lawson, neozelandês, 19 anos, um supertalento, hoje na F2. Outro é o americano Jack Crawford, 16 anos, na F3. Nosso programa é um sucesso. Como você disse, produziu Vettel, quatro vezes campeão do mundo, e vários vencedores de corridas na F1, como Daniel Ricciardo, Pierre Gasly, Max. Esqueci alguém?
LO – O senhor tem fama de ser linha dura com eles.
HM – Sim. Nossas regras são claras. Providenciamos tudo o que um jovem piloto precisa para responder com elevada performance, como horas e horas de simulador, reuniões com grupos técnicos, psicólogos de esportes de alta performance, preparadores físicos muito capazes, pagamos tudo. O que lhes pedimos em troca é para mostrar suas competências. Quem corresponde segue conosco, quem não, procuramos entender as razões, e se concluirmos que a responsabilidade maior é do piloto, abrimos a vaga para outro candidato. Simples, assim, e explicado antes para nossos jovens.
Livio Oricchio
Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.