Olá amigos.
Quem gosta de acompanhar o noticiário da F1 viu, nesta sexta-feira, que a Ferrari inicia os treinos livres do GP dos Estados Unidos, em Austin, com sua unidade motriz equipada com elementos da versão que vai estar no modelo de 2022, concebido sob regras bem distintas das atuais.
Na realidade, já na etapa anterior, em Istambul, Turquia, a equipe italiana fez experiências com sua unidade motriz, ainda respondendo com menos cavalos que as três concorrentes, Mercedes, Honda e Renault.
O grupo liderado por Mattia Binotto, diretor geral da Ferrari, e Enrico Gualtieri, responsável pela seção de unidades motrizes, sabe que a escuderia tem na estreia do novo regulamento, na próxima temporada, uma chance de ouro para se aproximar dos que dominam a competição, Mercedes e Red Bull-Honda.
Os desafios de engenharia são outros. Os técnicos partiram quase que de uma página de computador em branco para projetar os carros de 2022, concebidos para gerar bem mais pressão aerodinâmica que os atuais e serem bem menos sensíveis a seguir de perto, nas curvas, o adversário à frente, a fim de ser menos difícil ultrapassá-lo.
E em relação a esta temporada, os responsáveis pela Ferrari têm consciência de que a escuderia precisa de importante evolução, tanto no chassi quanto na unidade motriz. Ocupa a quarta colocação entre os construtores, com 232,5 pontos, diante de 240 da McLaren-Mercedes, terceira. Seu piloto mais bem classificado é Carlos Sainz Júnior, sexto, com 116,5. O quinto é Sérgio Perez, da Red Bull-Honda, com 135.
O truque italiano
Desde que a FIA passou a controlar o fluxo de combustível com mais recursos tecnológicos, curiosamente no GP dos EUA de 2019, a Ferrari ficou para trás. É um fato, não uma hipótese, os carros de Charles Leclerc e Sebastian Vettel, na época, excediam o limite de consumo de 110 quilos de gasolina por hora.
A FIA fez um acordo com a direção da Ferrari para usar o seu conhecimento em como driblar a regra para desenvolver um sistema bem mais difícil de ser burlado. Uma espécie de acordo de leniência, mas sem punição alguma à empresa, no caso, equipe. Para espanto e mesmo revolta geral da F1.
Sem os cavalos a mais de 2019, a Ferrari terminou 2020 na sexta colocação, uma das piores da sua rica história. Quando teve de correr dentro das regras, descobriu haver um abismo de desenvolvimento entre a sua unidade motriz e as demais. Até hoje paga o preço.
Bem, falávamos do mundial de 2022. O imenso desafio está aí e é o mesmo para todos. Desde 1º de janeiro os dez times da F1 estão livres para projetar, construir e já começar a desenvolver os carros e as unidades motrizes de 2022.
Como escrevi, serão diferentes dos que no fim de semana se apresentam no Circuito das Américas, na 17ª etapa do calendário, com outra esperada luta sensacional entre Max Verstappen, Red Bull-Honda, líder do campeonato, e Lewis Hamilton, Mercedes, segundo colocado, seis pontos somente atrás, 256,5 a 262,5.
Sugiro uma pausa para reflexão nesta frase usada há pouco: “O imenso desafio está aí e é o mesmo para todos”. Mas será que Mercedes, Red Bull e, por exemplo, McLaren, para não mencionar outras, têm o mesmo grau de dificuldade da Ferrari para conceber um monoposto capaz de protagonizar o próximo campeonato?
Concorrência melhor preparada
Olha, amigos, tenho comigo que depois de entender o momento dessa lendária equipe e tão necessária para a F1 você talvez concorde comigo que o seu desafio é maior.
Preste atenção, hein? Não estou afirmando que a Ferrari não pode, de repente, aparecer, em 2022, com Charles Leclerc e Carlos Sainz Junior estabelecendo pole positions e fazendo até dobradinhas.
Apenas afirmo que, diante de como os concorrentes estão organizados, considerando-se a experiência, a comprovada capacidade e o histórico de sucesso dos seus responsáveis pelo complexo projeto do ano que vem, faz sentido acreditarmos que o salto que a Ferrari deve dar para pensar em ser campeã novamente é maior.
Vamos entender, juntos, as razões?
Em julho de 2016, o presidente da Ferrari e da Fiat, Sérgio Marchionne, falecido em 2018, chamou o então diretor técnico da Ferrari, o conceituado engenheiro inglês James Allison, para uma conversa séria. Queria saber os motivos de a Ferrari estar mal no campeonato, sem nenhuma vitória ou pole.
Allison respondeu que concentrava seu trabalho no modelo de 2017, quando a F1 também experimentou importante revisão do regulamento, com carros e pneus mais largos. Mas nada que se compare, por favor, com a mudança de 2022, muito mais profunda.
Leia também:
O inglês talvez lembrou a Marchionne ter perdido a esposa cinco meses antes e estava tentando entender como viver na Itália e cuidar de três filhos pequenos na Inglaterra.
Não adiantou muito. Dias, apenas, mais tarde o dirigente dispensou Allison e promoveu, pessoalmente, uma revolução no departamento técnico da Ferrari.
Solução caseira
Sem conhecimento da F1, Marchionne promoveu os chamados pratas da casa para liderar a nova Ferrari, ainda sob comando do ex-segurança da Philip Morris, dona da marca Marlboro, Maurizio Arrivabene, que virou diretor da multinacional e, por sua vez, da Ferrari, sem nunca ter trabalhado na F1. Apenas gerenciava o acordo de patrocínio da Philip Morris com a escuderia italiana.
Arrivabene manteve-se como o número 1 da Ferrari até janeiro de 2019, acredite ou não, quando nova reestruturação foi promovida no time. O presidente, John Elkann, dispensou Arrivabene e conduziu ao cargo de diretor geral o suíço/italiano Mattia Binotto, então com 50 anos, já engenheiro da área de motores no grupo desde 1995 e crítico confesso do trabalho do ex-diretor da Philip Morris. Elkann deu carta branca para Binotto montar o departamento técnico.
Decisões questionáveis
Agora você talvez comece a entender melhor a minha argumentação de que para a Ferrari produzir um carro potencialmente campeão, em 2022, é um pouco mais difícil Porém, não impossível, óbvio.
Binotto não só manteve como responsável pela fundamental área de aerodinâmica o engenheiro escolhido por Marchionne, em 2016, Enrico Cardile, como o promoveu a chefe de projetos também.
Amigos, Cardile, hoje com 46 anos, foi conhecer melhor a F1 em 2016, quando Marchionne dispensou Allison e logo em seguida o especialista em aerodinâmica do time, levado para lá por Allison, o sul-africano Dirk de Beer, também teve o contrato rescindido.
Fiel à política de escolher para os cargos de primeiro escalão profissionais já trabalhando na Ferrari, de preferência italianos, Marchionne chamou o responsável pelo programa de carros GT da empresa. O próprio, Cardile.
Quais as semelhanças entre os modelos GT458 utilizado nas competições de GT e os monopostos de F1? Bem poucas mesmo, concordam?
Origem preocupante
Pois as diretrizes do projeto do modelo de 2022, que bem pouco conhecimento carregam dos carros atuais, foram ditadas por Cardile. O experiente e criativo francês David Sanchez, ex-Renault e McLaren, está abaixo dele na hierarquia da Ferrari. Bem como o desenhista-chefe, o pouco conhecido Fabio Montecchi.
Se você entrar no site oficial da Ferrari, verá que o nome de Sanchez sequer aparece na seção dos principais técnicos da escuderia. O competente veterano Rory Byrne, de 77 anos, também não é mencionado. Ele ainda presta alguma consultoria para a Ferrari.
Outro engenheiro francês, Laurent Mekies, é o diretor esportivo desde a penúltima reestruturação. Apesar de gostar de intervir na área de projetos, e tem experiência para isso, não possui voz ativa. Poucos sabem: Mekies foi levado para a FIA por Jean Todt, presidente da entidade, para estudar como melhorar a segurança da F1.
Do seu trabalho surgiu um dos elementos mais importantes para salvar a vida dos pilotos, o halo. O projeto foi conduzido por Mekies. Estive nas palestras que fez antes ainda de o dispositivo ser aprovado, para mostrar o resultado de suas pesquisas. Assim como estive em uma apresentação dele, junto de Cardile, para falar de aerodinâmica na F1. Basicamente apenas Mekies falou. Cardile interveio muito pouco. Chamou a atenção.
Confronto desigual
Vamos, agora, colocar lado a lado os responsáveis pela direção geral da Ferrari e os dos demais times mais bem estruturados da F1?
Na função de Binotto, a Mercedes tem uma das maiores revelações dos últimos tempos na F1, o austríaco Toto Wolff, 49 anos, um dos grandes responsáveis por o time da montadora alemã ter conquistado os últimos sete títulos de pilotos e construtores, o período de maior sucesso de uma equipe desde a origem da competição, em 1950.
No mesmo cargo a Red Bull tem o inglês Christian Horner, 47 anos, na escuderia desde a sua origem, em 2005, e já conquistou quatro títulos de pilotos, com Sebastian Vettel, e quatro de construtores. Tem chance de a sua organização ser campeã este ano novamente.
No cargo de diretor técnico, a Ferrari tem o pouco experiente Cardile, há apenas cinco anos na F1 e cujos carros foram pouco competitivos. Na Mercedes, James Allison, 53 anos, deu as diretrizes e conduziu os estudos do modelo de 2022 até três semanas atrás, quando a empresa anunciou que o engenheiro passaria a trabalhar no projeto do time Ineos Britannia, inscrito na tradicional competição de barcos America’s Cup. A indústria química Ineos é sócia da Mercedes no time de F1.
Não falei. Logo depois de dispensado por Marchionne, Allison recebeu um telefonema de Wolff. Era para ser o número 1 da área técnica da Mercedes, substituir Paddy Lowe, de saída para a Williams. Os projetos liderados por Allison na Mercedes venceram os quatro mundiais disputados desde 2017. E o modelo W12 pode ainda ser campeão este ano, com Hamilton. Além dos quatro de construtores.
Renovação de talentos
O departamento técnico da Mercedes trabalha hoje com o ex-braço direito de Allison, o inglês Mike Elliot, também proveniente da seção de aerodinâmica. E para esta função ascendeu outra revelação da Mercedes, segundo Wolff, Jarrod Murphy.
Um dos grandes méritos de Wolff foi fazer com que sua equipe não perdesse força com a renovação de suas principais lideranças da área técnica, prepara as sucessões como nunca se viu na F1. Outro grande nome desse grupo é o ex-desenhista-chefe, John Owen, hoje diretor de engenharia.
Imagine que nem mesmo a saída do principal responsável pela supereficiência das unidades motrizes Mercedes, fundamental nas megaconquistas na era híbrida da F1, o inglês Andy Cowell, no ano passado, parece ter atingido a organização. O setor é dirigido, agora, por Hywel Thomas.
Entre os adversários, o mago Newey
Na Red Bull, o grupo de técnicos promissores, mas nem tão experientes da Ferrari, enfrentará o engenheiro com maior número de títulos mundiais na história da F1, Adrian Newey, de 62 anos. Foram quatro títulos com a Williams, dois com a McLaren e quatro já na Red Bull. É considerado um mago, tem grande espírito inovador. Nas mudanças radicais de regras é quando seus dotes excepcionais mais se manifestam, ao menos como regra.
É sempre bom lembrar que o mesmo extraordinário Newey concebeu um carro para a McLaren, em 2003, o modelo MP4/18-Mercedes, que nunca competiu. Era tão complexo, difícil de fazê-lo funcionar propriamente que a equipe disputou aquele ano com o modelo da temporada anterior, apenas modificado. Mas com a experiência e os recursos de hoje é pouco provável que ocorra de novo.
Na McLaren, o diretor técnico James Key, de 49 anos, logo ao assumir a escuderia inglesa, em janeiro de 2019, partiu para o projeto do ano passado. A McLaren avançou do quarto lugar, em 2019, com 145 pontos, para o terceiro, em 2020, com 202.
Key foi cortejado pela Ferrari antes de ir para a McLaren. Ao seu lado, como corresponsável pelo projeto aerodinâmico, está o ex-braço direito de Newey na McLaren e Red Bull, o inglês Peter Prodromou. Key é também um especialista em aerodinâmica.
Para liderar o grupo a McLaren conta com um diretor que já demonstrou poder fazer história, o alemão Andreas Seidl, 45 anos. Engenheiro da BMW no seu tempo de F1, Seidl foi ser o líder da Porsche no WEC, campeonato de endurance. Conquistou os títulos de 2015, 2016 e 2017, além de as 24 Horas de Le Mans, nos três anos.
É o diretor geral da McLaren desde janeiro de 2019. Chegou com James Key. Este ano a McLaren é a terceira, de novo, no mundial, atrás apenas de Mercedes e Red Bull.
Outros times podem surpreender
Depois desse raio X de apenas três adversários da Ferrari, em 2022, ficou claro como há uma defasagem entre o retrospecto dos responsáveis pela sua gestão e os da equipe italiana?
É por esse motivo que escrevi ser mais desafiador para a escuderia de Maranello ser campeã já no ano que vem do que para pelo menos Mercedes, Red Bull e McLaren.
Atenção: não está escrito em nenhum lugar, como frisei no início, que o grupo liderado por Binotto, Cardile e Gualtieri não possa produzir um carro vencedor. Eles apenas têm menos vivência com o sucesso na F1 que os engenheiros dos times mencionados.
E seria ótimo para a F1. A Ferrari forte é a F1 forte. Leva mais torcedores para os autódromos e aumenta o número de telespectadores em boa parte do mundo.
E também ninguém registrou em cartório que outra equipe, fora as três, não possa interpretar magistralmente o novo regulamento e produzir um carro mais veloz, equilibrado e confiável que as demais. O que, convenhamos, seria maravilhoso para os interesses da F1, ávida por ver outras escuderias lutando lá na frente.
Acredite: é a minha torcida.
Abraços, amigos.
Livio Oricchio
Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.