Aqui, uma visão distinta e mais profunda desse riquíssimo personagem da F1.
Olá, amigos.
Foi com tristeza, mas não surpresa, que soube neste domingo da perda de Frank Williams, aos 79 anos. Obviamente temos de falar desse homem que está dentre os que mais me impressionaram não somente na F1, mas na vida. Atente à extensão do que escrevi. É provável que ao longo do texto você me entenda melhor.
Na minha trajetória na F1 entrevistei Sir Frank Williams muitas vezes. Era daqueles profissionais do meio em que eu parava na porta do motorhome da sua equipe, o via disponível lá dentro, sem ninguém ao redor, e eu levantava o indicador para sinalizar que gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
Na grande maioria das vezes Frank Williams acenava com a cabeça e piscava longamente os olhos, autorizando a minha aproximação. Quase não conseguia mexer os braços. Quando não era possível, lançava a cabeça para o lado, senha para passar depois. Sempre foi bastante atencioso e incrivelmente objetivo nas respostas. Não se eximia de falar sobre seja lá o que fosse.
Antes de selecionar o que de mais importante ouvi de Frank Williams – e há coisas extraordinárias -, descrevo um pouco do seu mundo, da sua forma única e impressionante de viver. Era um verdadeiro apaixonado pelo automobilismo, um autêntico garagista, expressão usada para definir os idealistas que, a partir de uma garagem, construíram um império de sucesso na F1.
Minha profunda admiração por ele vem dessa identificação com o esporte que você e eu amamos também, mas principalmente da sua tenacidade, força interior, capacidade de transpor desafios, por décadas, que a esmagadora maioria dos seres humanos não seria capaz. Sem mencionar a inteligência, claro.
Acidente de carro devastador
Dou logo uma ideia do que desejo dizer. Vou me estender um pouco no assunto por ser o que mais me sensibilizava nesse ícone da história da velocidade: no dia 8 de março de 1986, um sábado, Frank Williams e o seu diretor comercial – mais tarde viria a ser diretor esportivo -, Peter Windsor, deixaram o circuito de Paul Ricard, próximo a Marselha, no sul da França, para com o carro alugado, um Ford Sierra 1600, dirigirem-se até o aeroporto de Nice, 160 quilômetros distante, de onde voariam para Londres.
O próprio Windsor me deu os detalhes do ocorrido, anos mais tarde.
A estrada entre o autódromo e a autoestrada que corta o sul da França, objetivo inicial do deslocamento, acompanha as encostas das montanhas baixas da região, é cheia de curvas fechadas. Morei 12 anos em Nice e conheço bem a área. Frank Williams sempre afirmou amar a velocidade. Não começou como dono de equipe, mas como piloto.
Gostava de acelerar. Junte essa sua característica de dirigir rápido com o desejo de estar em Londres ainda naquele sábado a fim de, no dia seguinte, disputar uma minimaratona, mais os perigos naturais daquela estrada e você tem os ingredientes básicos para um acidente. Frank Williams era um atleta dos mais dedicados.
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Nos autódromos, me contam os amigos presentes na F1 naquele tempo, era possível ver Frank Williams correndo nas pistas no fim de tarde. Não peguei essa fase. Quando comecei na F1 como jornalista, em 1987, Frank Williams já estava bastante debilitado em termos de poder se mover.
Uma fatalidade
Pois bem, Frank Williams perdeu o controle do carro e colidiu contra a mureta baixa de proteção – até hoje é a mesma. O Sierra levantou e rolou algo como 3 metros no barranco. Os danos no veículo não foram muito grandes, mas por um incrível azar do motorista o teto afundou bem sobre a sua cabeça, comprimindo-a no tórax.
Isso causou a fratura da 4ª e 5ª vértebras cervicais e a consequente lesão neurológica. Você sabe, a coluna nervosa percorre as vértebras por dentro. Apesar de consciente, Frank Williams, além de não mais mexer braços e pernas tinha dificuldades respiratórias em razão de a fratura ter atingido a inervação da musculatura intercostal, a que controla os movimentos da caixa toráxica na respiração.
No hospital na França e logo depois na Inglaterra Frank Williams recebeu tratamento intensivo por longo tempo, o que o fez sobreviver, mas desde então e até a sua morte só se manteve vivo porque fazia longos exercícios respiratórios diários! Windsor não sofreu praticamente nada no acidente.
Não escondia nada de ninguém
Quer saber? Nunca escondeu de ninguém suas severíssimas limitações. Como quase não mexia os braços, fazia as refeições no motorhome da equipe com a ajuda de um acompanhante em regime integral. Não se importava de os outros verem uma pessoa com garfo ou colher na mão alimentando-o e limpando sua boca com o guardanapo.
Não se importava em dizer aos muitos e muitos que ao chegarem perto dele no paddock e estendiam a mão para cumprimenta-lo ou pedir um autógrafo, sempre com um sorriso no rosto para reduzir o constrangimento geral: “I am sorry, I can’t move my arms. Thank you for the support”. Ou: “Desculpe, eu não consigo mexer meus braços. Obrigado pela torcida”.
Também não procurava esconder o grande volume das suas calças na altura da cintura. A lesão na coluna cervical fez perder o controle dos esfíncteres, uretral e anal. Em outras palavras, usava fraldas por não controlar o desejo de urinar e defecar.
Movimentava-se pelos paddocks com o auxiliar empurrando sua cadeira de rodas. No motorhome da Williams havia um elevador para a cadeira. Na sala de entrevistas da FIA permanecia um tanto isolado dos demais entrevistados por conta de seguir na cadeira de rodas.
Se existe um homem que se assumia integralmente, não escondia nada, expunha as importantes deficiências na sua vitrine, era Frank Williams. E como demonstrava ser feliz!
Incrivelmente manteve-se no topo
Repare que nada disso o impedia de administrar a super bem estruturada sede de Didcot e depois Grove, a uma hora de carro de Silverstone, com seus mais de 500 funcionários, de onde saíam carros campeões do mundo, estabelecer acordos comerciais dentre os de maior valor na F1, e liderar o time nos fins de semana de competição nos autódromos.
Uma máxima que percorre os paddocks da F1: enquanto Frank Williams investe na melhora da infraestrutura de sua escuderia cada libra que ganha, Eddie Jordan, ex-fundador e sócio da Jordan, pratica a filosofia do uma libra para o time e duas para o meu bolso.
De 8 de março de 1986 a 21 de agosto de 2020, quando a Williams Grand Prix Engineering foi vendida ao grupo de investimento americano Dorilton Capital, a Williams conquistou os mundiais de pilotos de 1987, 1992, 1993, 1996 e 1997. E o de construtores, em 1986, 1987, 1992, 1993, 1994, 1996 e 1997.
Antes de Frank Williams se acidentar, já havia vencido as edições do campeonato de pilotos de 1980 e 1982, e o de construtores, de 1980 e 1981.
Não tinha dinheiro para a passagem
Bem, esse é o lado rico de Frank Williams. Mas nem sempre foi assim. Emerson Fittipaldi contou-me que o dirigente inglês pedia carona no seu avião fretado para ir às corridas, no começo dos anos 70, quando nem construía os próprios carros, comprava-os da March. Não tinha dinheiro para nada.
Tudo mudou quando Frank Williams, em 1977, convenceu os sauditas a começar a investir no seu projeto. Com orçamento decente e o novo sócio, o capaz engenheiro Patrick Head, a organização evoluiu exponencialmente.
Controlava tudo só com os dedos
Estive na sede da Williams em Grove duas vezes. Na segunda, me levaram até a sala de Frank Williams. Ele permanecia de pé, preso a uma estrutura metálica, com o corpo ligeiramente inclinado para trás, e bem a sua frente havia um teclado, sobre o qual mantinha os dois braços apoiados.
Ele próprio me explicou que com os dedos podia tocar teclas numéricas. Era o discador do seu telefone. Passava a maior parte do tempo dessa forma, em conversa com pessoas do seu interesse, no telefone.
De tempos em tempos, os diretores dos vários setores da complexa organização de uma escuderia de F1 pediam autorização para entrar e pedir orientação sobre o que fazer. Obviamente Frank Williams tinha o seu sócio para compartilhar as decisões mais importantes, Head.
Ah, esqueci de falar. Em uma das breves conversas com Frank Williams disse-me amar aviões e helicópteros. E que seu hobby era “não necessariamente voar com eles, mas comercializá-los”. Ganhava dinheiro também com isso. Chegou a ter vários.
Você colocou na balança as muitas atividades de Frank Williams, apesar de, como descrevi, precisar de horas diárias para exercitar a respiração a fim de manter-se vivo e depender de ajudantes que o assistiam para realizar as tarefas mais elementares para um cidadão normal, como se alimentar ou cuidar da higiene no banheiro?
Começou a entender, agora, de onde vem esse meu apreço incondicional a esse grande homem? Um campeão na essência do vocábulo, da vida e de um esporte cujas exigências se estendem para bem além de ser apenas um bom administrador de empresas.
Frases de grande significado que ouvi do dirigente
Agora o que Frank Williams me declarou e considero de alta relevância para compor seu perfil. Em 1993, conversei com ele em Silverstone. O seu modelo FW15C-Renault, pilotado por Alain Prost, era, de longe, o carro mais rápido da F1 - sentei nele na coleção de Grove. Foi o último monoposto a dispor de todos os recursos eletrônicos possíveis para a época, como suspensão ativa, câmbio automático, controle de tração, freios ABS, acelerador eletrônico, dentre outros. A partir da temporada seguinte tudo isso foi proibido.
Reproduzo letra a letra algo que me chocou:
- O senhor começou no universo da velocidade como piloto, mas carreira bem-sucedida o senhor a construiu como dono e chefe de equipe. O que mais aprecia, ser piloto ou proprietário de um time? (Praticamente não esperou eu terminar a pergunta)
Piloto, óbvio. Por conta dessa minha paixão pela velocidade estou hoje em uma cadeira de rodas.
A declaração é reveladora. Não estamos sendo agressivos ao dizer que Frank Williams nutria uma frustração por sua carreira de piloto, no início dos anos 60, não ter decolado. Só lembrando, nasceu em 1942.
As duas frases a seguir remontam a 1993 também, creio que no GP de Portugal, pouco depois de Frank Williams assinar com Ayrton Senna para ser seu piloto a partir de 1994.
- É a nossa resposta ao desafio de nos mantermos na frente. Do outro lado estamos vendo surgir um certo Michael Schumacher.
Frank Williams sabia que o piloto certo para enfrentar e vencer Schumacher era Senna e não o seu principal piloto naquele ano, Alain Prost.
Sobre Senna, ainda:
- Eu o convidei para pilotar o meu carro, em 1983, quando ainda estava na F3. Infelizmente isso aconteceu depois de eu já ter assinado com Keke Rosberg e Jacques Laffite (para 1984). Poderia ter vindo para o meu time bem antes.
Mais de Frank Williams sobre Senna:
- Ele me dizia que sonhava competir por nossa equipe. E eu lhe dizia que sonhava em tê-lo como piloto. Em 1992, a influência da nossa parceira Renault era grande. Eles quiseram Prost e Prost exigiu que Senna não fosse seu companheiro em 1993. Aceitei a cláusula do veto, mas por apenas um ano. Na metade de 1993 disse a Alain que eu negociava com Senna para ser nosso piloto em 1994. Acredito que isso levou Alain a deixar as pistas.
Marcou sua vida
- Mais do que Frank Williams me disse sobre Senna:
- Vou carregar para o resto da minha vida o fardo de que ele morreu no meu carro.
Até hoje todos os carros construídos pela Williams têm em algum ponto da carenagem o "S" da marca Senna.
Frank Williams sempre valorizou mais o mundial de pilotos do que o de construtores. Por que, senhor Williams:
- Os pilotos que estavam comigo no começo dos anos 70 não estão mais aqui. Mas meu time segue na F1 e hoje é um dos que lutam pelo título. Responda, por favor: quem é mais importante, alguém que já passou ou nós que estávamos, estamos e pretendemos aqui seguir por muito tempo?
Ano de 2013, depois de a Williams disputar, até então, a pior temporada da sua história, ao terminar o mundial de construtores na nona e penúltima colocação, com 5 pontos, diante de 596 da Red Bull, a campeã. Quais os motivos dessa tamanha queda, senhor Williams:
- Uma combinação deles. O principal foi a perda da BMW como nossa parceira. Estivemos juntos de 2000 a 2005. Se você observar verá que estávamos sempre lutando lá na frente. Na F1 de hoje se você não está associado a uma montadora não há como fazer sucesso.
Grande arrependimento
Pergunto na mesma conversa qual seu maior erro como chefe de equipe?
- Não ter aceito a proposta de Adrian (o genial engenheiro Adrian Newey). Em 1996 ele procurou a mim e a Patrick (Patrick Head) para dizer que tinha convites e pensava em sair. Mas permaneceria conosco se nós lhe repassássemos uma parte da sociedade. Nós descartamos de cara essa possibilidade. Foi um grave erro do qual me arrependo até hoje. Depois disso nunca mais tivemos um grupo técnico capaz de produzir um carro campeão do mundo e, como falei, quando estávamos associados a BMW dispúnhamos de todos os recursos para fazê-lo.
Adrian Newey foi para a McLaren, mas antes deixou o projeto de 1997 pronto, último título mundial da Williams, de pilotos, com Jacques Villeneuve, e construtores.
Sobre Rubens Barrichello, seu piloto em 2010 e 2011.
- Eu não sei como ele ainda não foi campeão do mundo. Rubens reúne todas as qualidades dos campeões do mundo.
Já não no melhor do seu juízo
Agora duas experiências tristes com Frank Williams, já não mais na gestão da equipe. Esta foi, creio, em 2015, durante um desses momentos em que pedia para lhe fazer perguntas. Desejava saber sua opinião sobre Nico Rosberg, seu piloto por quatro anos, de 2006 a 2009. Naquele ano estava perdendo feio a disputa com seu companheiro de Mercedes, Lewis Hamilton.
Durante a conversa, por duas vezes ele interrompeu minha pergunta, em momentos diversos, para falar a mesma coisa:
- Você conhece Fernando Alonso?
Disse que sim, ia a suas entrevistas com frequência desde os tempos de Renault.
- Quando você o encontrar, pode por favor dizer que eu lhe envio uma saudação?
Percebi, com imensa dor, que Frank Williams já não estava falando sempre coisa com coisa. Essa confusão mental o levou a tomar a decisão que selou o fim de uma das melhores equipes da história da F1, ao menos sob a condução da família Williams.
- Por que o senhor colocou sua filha (Claire Williams) para ser a número 1 da organização, com plenos poderes, se ela não teve vivência na F1, não sentiu de perto seus imensos desafios?
- Porque a considero a pessoa ideal para levar nossa equipe a ser campeã novamente.
Não havia cidadão na F1 que não estabelecesse uma relação direta entre a ascensão de Claire Williams a líder da equipe, em março de 2013, e sua queda livre nos últimos anos. Até então havia trabalhado somente na área de comunicação da Williams.
Um amigo, ex-diretor da Williams, hoje na FOM, contou-me que eles evitavam levar as questões mais relevantes para Claire avaliar por saberem que suas decisões seriam desastrosas. Não tinha experiência alguma e por vezes não delegava responsabilidades.
Mas para o seu pai Claire representava a salvação do projeto que ele começou no começo dos anos 70, disputou até hoje 768 GPs, e por conta da imensa competência, determinação, resiliência e fibra do fundador venceu, além dos sete títulos de pilotos e nove de construtores, 114 vezes na F1, chegou em 313 ocasiões ao pódio e seus pilotos estabeleceram 128 pole positions.
Espero ter mostrado um Frank Williams não conhecido por todos.
Abraços.
Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.