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O Hamilton das 100 vitórias na F1 que você não conhece

Livio Oricchio

Lewis Hamilton comemora vitória de número 100 na Fórmula 1 - Foto: Mercedes
Lewis Hamilton comemora vitória de número 100 na Fórmula 1 - Foto: Mercedes

Olá, amigos

Lewis Carl Davidson Hamilton, mais conhecido como Lewis Hamilton, sete vezes campeão do mundo, dono dos mais impressionantes números de performance em todos os tempos nos 72 anos de existência da F1.

A história da competição tem seus campeões. Mas reserva uma ala especial destinada aos seus raríssimos supercampeões, como Hamilton.

Domingo esse piloto inglês de 36 anos, da equipe Mercedes, ganhou destaque ainda maior da usual na mídia mundial por ter alcançado, no GP da Rússia, uma marca histórica: a 100ª vitória na F1.

Um dado por si só notável. E cresce ainda mais de importância quando o colocamos ao lado do seu número de GPs disputados, 281, o que significa dizer que Hamilton recebeu a bandeirada na primeira colocação em 35,5% das corridas que largou!

Quem chegou mais perto dessa proeza de 100 vitórias foi outro gigante das pistas, Michael Schumacher, com 91, em 308 GPs (29,5%), seguido por Sebastian Vettel, 53, em 273 GPs (19,4%), Alain Prost, 51, em 202 GPs (25,2%) e Ayrton Senna, 41, em 166 GPs (25,3%).

Não importa onde está, Hamilton recebe o tratamento de uma super estrela do esporte. Aproveitando-se inteligentemente da fama, o piloto de origem humilde, da periferia de Londres, passou a levantar a bandeira da preservação ambiental e da luta contra o racismo, o que fez dele um personagem da humanidade.

Nos meus mais de 30 anos de F1, tive o privilégio de seguir de perto a carreira de Hamilton desde a estreia, no GP da Austrália de 2007, pela McLaren-Mercedes, tendo como companheiro ninguém menos de Fernando Alonso, vindo de conquistar os dois mundiais anteriores, com a Renault. Ambos terminaram o campeonato empatados com 109 pontos. Kimi Raikkonen, da Ferrari, com um ponto apenas a mais, 110, foi campeão.

Narro aqui algumas das muitas experiências profissionais que tive até agora com Hamilton desde que o conheci, no GP de Mônaco de Fórmula 3 de 2005, isso mesmo há 16 anos. Foram incontáveis entrevistas coletivas e várias também one to one, como dizemos no paddock, individuais.

Uma forma diferente de apresentá-lo

Eu seguia de perto a carreira de Lucas Di Grassi no Campeonato Europeu de F3, em 2005. Competia pela equipe Manor, tendo como parceiro o britânico Paul Di Resta. Mas quando a F3 chegou no Principado de Mônaco, quarta etapa do calendário, um jovem piloto já chamava muito a atenção de todos.

Nas seis corridas das três etapas realizadas até então, um inglês chamado Lewis Hamilton, do time francês ASM, se impôs de forma avassaladora. Venceu quatro, foi terceiro em outra e desclassificado, junto de mais sete pilotos, na Bélgica, por irregularidade no difusor, porção final do assoalho.

Eu queria conhecer de perto aquele piloto. Como faço com regularidade, agora ainda na F1, me desloquei atrás do guardrail no trecho compreendido entre a chicane depois do túnel e a curva Rascasse, penúltima do traçado de Monte Carlo, passando pela Tabacaria e a entrada e saída da Piscina.

Personalidade de Hamilton, estilo de Senna

Nunca escrevi isto: aquele piloto, mesmo em um carro de F3, com o capacete amarelo de início de carreira, me lembrou muito Ayrton Senna percorrendo o mesmo segmento de pista. Levava muita velocidade para as curvas, freava dentro e ao acelerar não deixava a traseira escapar, como seria de se esperar. Técnica primorosa.

Essa, amigos, era a principal característica de Senna, razão maior de ser um dos pilotos mais velozes de todos os tempos, senão o mais rápido. Pois aquele menino, Hamilton, então com 20 anos, realmente me impressionou. Claramente era um piloto diferenciado, tinha um estilo bastante parecido com o de Senna, agressivo, mas perfeitamente sob controle e consciente de cada movimento do carro.

Hamilton e o capacete de Senna - Foto: Mercedes

Hamilton conquistou as duas pole positions daquele GP de Mônaco de F3 de 2005 e venceu as duas corridas do programa, dando-lhe seis vitórias nas oito disputadas. Ao fim das 20 provas do calendário Hamilton seria o campeão com 172 pontos, 15 vitórias, diante de 94 do vice, Di Resta.

Repare como certos predicados máximos são preservados ao longo da carreira por pilotos excepcionais multicampeões do mundo. Na F1, pela McLaren, de 2007 a 2012, e Mercedes, 2013 até hoje, Hamilton conquistou os sete títulos mundiais e as 100 vitórias mencionadas, mais 101 pole positions. Chegou 176 vezes no pódio. Primeiro em todos esses rankings. Que currículo fenomenal, não acham?

Segui de perto Hamilton no passo seguinte ao da F3, quando competiu na GP2, antigo nome da F2, em 2006, e também foi campeão, com a ART, depois de uma luta duríssima com Nelsinho Piquet, da Piquet Sports. A GP2 corria nos mesmos fins de semana da F1, como agora a F2.

Guardei aquela informação da F3 comigo, a impressão que me foi repassada por Hamilton em Mônaco. Pois em 2016, durante entrevista com ele no GP Brasil, acabei por lhe contar a minha experiência no Principado em 2005. Isso porque a nossa conversa fluiu tão espontânea que virei o entrevistado.

Lisonjeado com a comparação

Hamilton me fez várias perguntas sobre Senna, seu ídolo, pois lhe disse que o conheci em 1978, no kartódromo existente do outro lado da área dos boxes de Interlagos, apontando o local, quando nem cursava jornalismo. Ao ouvir o que lhe falei sobre seu estilo me lembrar Senna, reagiu desta forma, demonstrando grande surpresa e satisfação, revelada no sorriso largo: “Really?” ou “Verdade?”

Sigo resgatando o que me disse a seguir: “É incrível, é ótimo saber que tem gente que enxerga o que faço, ou procuro fazer. Trago isso comigo desde o kart. E com carros de grande potência garanto não ser fácil”.

O inglês desejava saber o máximo de Senna, com perguntas sucessivas: “Como ele era com vocês, jornalistas? Ouço todo mundo falar que vocês tinham mais liberdade para trabalhar, era mesmo melhor? Senna era alto? Gostava de dar entrevistas? Vi corridas dele que me impressionaram. Você estava aqui em 1990 ou 1991, acho, quando ganhou com o câmbio travado?”

Respondi que sim, vi Senna vencer seu primeiro GP Brasil, em 1991, dispondo somente da quinta marcha. Contei a Hamilton o que sabia de Senna, com quem tive relação apenas profissional, e aproveitei para lhe perguntar se naquele tempo, 2005, ainda na F3, pensava que poderia ser um grande campeão na F1, figurar dentre os maiores da história.

“Eu assistia às corridas de F1, como essa de Mônaco, em 2005, que você mencionou, e dizia a mim mesmo ‘sou capaz de bater esses caras’. Sempre acreditei na minha capacidade.”

Surpreendeu a assessora

Rosa Herrero Venegas, sua assessora na Mercedes, sempre presente nas entrevistas, já me contou que em certas conversas não mais aponta o relógio para o seu piloto, pois percebe que está aproveitando o momento e pede para não ser interrompido. Esse privilégio nas conversas com Hamilton me levaria a ganhar um presente profissional dele, no ano seguinte.

Na tradicional entrevista que faço sozinho, tentei algo diferente. Perguntar a Hamilton apenas de sua vida pessoal, tudo muito delicadamente, claro, e respeitando a privacidade. Para minha surpresa, Hamilton não se recusou a responder. Rosa Herrero se impressionou com a postura de Hamilton na nossa conversa.

Como ele não se separa do celular, o meu foco era tentar desvendar os seus mistérios, o que o fazia mesmo nas entrevistas coletivas estar atento ao aparelho. Sem que eu jamais esperasse, mostrou-me no seu celular o que estava redigindo antes de começar a nossa entrevista.

Presente para a mãe

Hamilton: “Olha aqui, estou escrevendo para um amigo reservar um resort para minha mãe (Carmen) e algumas de suas amigas. E nesta outra mensagem, pedi para comprar um presente para a minha mãe. Quero fazer uma surpresa para ela e suas amigas”.

Em seguida, Hamilton me mostrou outra mensagem de texto. Era para um grupo de amigos. Ele também se sentia incomodado em sair para jantar com a turma e vários dedicarem generoso tempo ao uso do celular.

Hamilton: “Veja o que combinamos. Vamos ao restaurante e decidimos colocar os celulares um em cima do outro, em forma de cruz. O primeiro que tirar o celular da coluna para atender uma chamada ou desejar enviar alguma mensagem irá pagar a conta. E posso te dizer que não custa pouco”.

Rosa Herrero manifestou, de novo, sua surpresa com o comportamento liberal de Hamilton com assunto que não costuma falar com a imprensa, sua vida pessoal.

Como ia à maioria de suas entrevistas, na Mercedes e nas programadas pela FIA nos fins de semana de GP, e sentava sempre na primeira fileira, a poucos metros dos pilotos, meu rosto lhes é familiar, mas a relação de proximidade não passa disso. Ok, com alguns deles até ganhamos o direito de perguntar algo no paddock quando nos cruzamos.

Reação inesperada

Em 2018, também em Interlagos, quando a coletiva dos três primeiros colocados acabou e todos se levantaram, Hamilton se aproximou e perguntou a minha opinião sobre o acidente entre Max Verstappen, da Red Bull, e Esteban Ocon, Racing Point, no S do Senna.

Ocon, retardatário, estava de pneus novos e tentava ultrapassar Max, líder da prova, para entrar na sua volta. Os dois se tocaram, Max rodou e Hamilton herdou o primeiro lugar. Max ficou em segundo.

Confesso me surpreender pois, como expliquei, é errado pensar que por conta desses instantes de revelação dos pilotos nas nossas conversas as relações profissionais mudam, se tornam mais próximas. Não. Aprendi em 30 anos de F1 que as coisas não funcionam assim, na grande maioria dos casos.

O fato é que percebi que o assessor da FIA, Matteo Bonciani, tentava levar Hamilton à área reservada às emissoras de TV e me contive na argumentação. Ele precisava sair da sala de imprensa. Para mim, não havia dúvida, Ocon deveria ser punido até exemplarmente. Para Hamilton, não, e tentava se explicar. “Vamos voltar a falar disso”, disse-me. Não resgatamos o tema nos demais GPs.

Carros raros

Residi em Nice, na França, ao lado de Mônaco, até o ano passado. Como muitos pilotos, Hamilton mora em Mônaco. Não pagam impostos e estão próximos da maioria dos autódromos onde a F1 se apresenta.

Já o vi no Principado com seu Cobra 1967 negro, tudo original, conversível. Ele tem uma coleção de carros raros e não se importa em ser reconhecido, o que não é o caso de Max, pois sempre está com uma scooter e de capacete.

“Era eu mesmo”, disse-me Hamilton quando contei que o vi na praça da entrada do túnel. Estava acompanhado de sua então namorada de longa data, a cantora americana Nicole Scherzinger, de quem se separou, em definitivo, em 2015.

E virou outro homem, permitiu fluir sem policiamentos a sua real personalidade. Mesmo quem convive com Hamilton apenas nos autódromos percebe ele ser hoje uma pessoa mais feliz, mais em harmonia consigo próprio.

As temporadas de 2020, 2019 e 2018 são tidas por muitos profissionais da F1, da ativa e do passado, como algumas das mais perfeitas de um piloto em todos os tempos.

Na entrevista de 2018, Hamilton me falou: “Eu faço mais o que gosto, estou em grande sintonia comigo mesmo. Tenho sorte de minha equipe entender meu modo de vida. Toto (Toto Wolff, diretor da Mercedes) entendeu que eu produzo mais quando me sinto mais feliz. Eu adoro, por exemplo, tatuagens. Contratei um tatuador para fazer uma em mim, no motorhome do time, durante os intervalos dos treinos da pré-temporada e todos entenderam”.

Defensor da natureza e da igualdade racial

Um pouco mais do que observo de Hamilton por esses anos todos estar bem próximo nas entrevistas: aos 36 anos, em profunda paz consigo próprio e seus princípios, Hamilton tem se tornado cada vez mais um ativista em prol da conservação ambiental e da luta contra o racismo.

Hamilton com a camisa da campanha Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português) - Foto: Instagram Lewis Hamilton

“Vendi meu avião, viajo muito menos, expressei ao meu staff minha política de não consumir nada em garrafas de plástico, adoto a filosofia vegana e nunca me senti tão forte, física e mentalmente.”

Já me confessou, durante entrevista, em 2018, o que planeja fazer depois de deixar a F1, “o que não será nos próximos três ou quatro anos”. Ele já assinou com Toto Wolff a renovação do contrato para mais dois campeonatos, 2022 e 2023.

“Eu não me vejo sentado vivendo do que já ganhei, quero investir em um projeto que vise salvar o planeta, como a indústria dos carros elétricos. Acho o projeto da Tesla incrível.”

Vaidade pessoal

Hamilton adora, como mencionado, carros raros, tatuagens e jóias. Jóias muito caras. Mas dinheiro não é problema. Seu último contrato com a Mercedes lhe garante 40 milhões de libras (R$ 280 milhões) por ano e tem acordos de publicidade pessoais que lhe permitem um faturamento estimado de 50 milhões de libras (R$ 350 milhões) por temporada, um dos esportistas mais bem pagos do mundo.

”Tenho uma casa na Inglaterra, outra em Mônaco, no Colorado (EUA) e um apartamento em Nova York. No Colorado, construí um segundo estúdio, a música faz parte da minha vida, e em Nova York por estar envolvido com o universo da moda.” Em 2018, Hamilton lançou em Nova York a linha TommyLewis em associação com a Tommy Hilfiger.

O desafio de Hamilton, agora, é mais imediato. Manter-se nas sete etapas que restam do campeonato em primeiro lugar, reassumido domingo, no GP da Rússia, com a 100ª vitória. A luta com Max Verstappen, da Red Bull-Honda, é ponto a ponto. Depois de 15 corridas, Hamilton soma 246,5 pontos diante de 244,5 de Max.

A conquista de mais um título fará de Hamilton o maior campeão da história da categoria máxima do automobilismo.

Livio Oricchio

Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.