Olá, amigos.
Sabe uma dúvida que não me saía da cabeça até ontem, quando lembrava da corrida de domingo no Circuito Yas Marina?
Como na 52ª volta, a seis da bandeirada, Max Verstappen, segundo colocado, poderia estar 11 segundos e 909 milésimos atrás de Lewis Hamilton, o líder, e na 54ª, uma depois do seu pit stop, cruzar a linha de chegada ainda em segundo, mas a apenas 7 segundos e 869 milésimos de Hamilton, que não parou?
Esse “fenômeno” foi decisivo para, logo em seguida, Max poder estar muito bem posicionado a fim de atacar Hamilton na 58ª e última volta, ultrapassá-lo e conquistar, com méritos inquestionáveis, seu primeiro título mundial.
Mas os números a seguir vão demonstrar que, mais uma vez, a direção de prova interveio para permitir um duelo final entre esses dois pilotos geniais quando o safety car deixasse a pista, no fim da 57ª e penúltima volta. O que o diretor da prova, Michael Masi, não mediu foi o grau de interferência que essa sua obsessão teve no destino do campeonato.
Veja a ultrapassagem de Verstappen sobre Hamilton no GP de Abu Dhabi:
Você entenderá já já as razões de Hamilton reclamar no rádio da velocidade do safety car, lento demais, e ele e o diretor da Mercedes, Toto Wolff, não irem nesta quinta-feira à festa de gala de premiação da FIA, em Paris.
Estudei os documentos da 22ª e última etapa do campeonato, o GP de Abu Dhabi, cenário da luta, emitidos pela FIA, e entendi, com precisão, o que se passou.
Que documentos são esses? Race History Chart, Race Lap Chart e Race Pit Stop Summary, principalmente, além do material fornecido para a imprensa pela Pirelli. Aqui você pode acessá-los.
Raio X da luta final
Ofereço, agora, mais detalhes do meu questionamento: Max realizou seu terceiro e último pit stop na 53ª volta, em regime de safety car, uma depois de Nicolas Latifi, da Williams-Mercedes, colidir na Curva 14.
Max precisou de 21 segundos e 453 milésimos para percorrer a área dos boxes, limitada a 80 km/h. Na parada, trocou os pneus duros novos colocados na 36ª volta por macios novos. Esse tempo contempla a operação também.
Enquanto isso, Hamilton estava na pista, imediatamente atrás do safety car, ordenado por Masi para que os comissários retirassem o Williams FW43B-Mercedes de Latife do circuito e recolhessem os fragmentos do carro espalhados no asfalto.
Entre Hamilton, primeiro, e Max, segundo, na 52ª volta, a do acidente de Latife já no fim do traçado, a duas curvas da linha de chegada, pois no total são 16 curvas, havia quatro retardatários. Hamilton e Max haviam dado uma volta neles: Lando Norris, da McLaren-Mercedes, Fernando Alonso e Esteban Ocon, Alpine, e Daniel Ricciardo, McLaren-Mercedes. O terceiro colocado era Sérgio Perez, companheiro de Max, a 38s621 de Hamilton e a 26s712 de Max.
Hamilton cruzou a linha de chegada no fim da 53ª volta enquanto Max já se aproximava de seus boxes para a substituição dos pneus. Também fizeram pit stop Ricciardo, Lance Stroll, da Aston Martin, e Perez.
Pit stop altamente vantajoso
Nessa volta, a 53ª, o tempo de volta de Hamilton é de 1min38s574. A anterior, 52ª, sem a entrada do safety car, 1min26s833. Max completa a volta 53, com pit stop e tudo, em 1min42s072, incrivelmente apenas 3s498 mais lento que Hamilton que, como mencionei, não parou. Foi na 53ª volta que o safety car entrou na pista.
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Nessa hora, ouvimos na transmissão Hamilton reclamar, com energia, da velocidade do safety car: “Está muito lento”, afirmou. Imediatamente atrás do safety car, não havia o que poderia fazer, tinha de seguir seu ritmo.
O que não era o caso de Max, pois o pelotão estava distante, na sua frente. Com pista livre, acelerou tudo para encostar nesse grupo que tinha, agora, Hamilton, líder, seguido pelos retardatários Norris, Alonso, Ocon, Leclerc e Vettel. Lembra? Ricciardo e Stroll também foram para os boxes, fazendo com que, agora, entre Hamilton e Max estivessem os cinco pilotos descritos.
Como Hamilton completou a 53ª volta 3s498 milésimos, somente, mais rápido que Max, a diferença entre eles, na linha de chegada, no fim dessa volta, ficou em 15s407. É a soma da diferença da volta anterior, a 52ª, de 11s909, com os 3s498 impostos por Hamilton na volta seguinte.
Quer ver como Max pôde acelerar à vontade, com pista livre, e Hamilton teve de se limitar a acompanhar o safety car? Na 54ª volta, Hamilton percorre os 5.281 metros do Circuito Yas Marina em 2min22s911, ao passo que Max, em 2min15s373, ou seja, 7 segundos e 538 milésimos mais rápido.
A diferença de Max para Hamilton que na 53ª volta era de 15s407 passa agora, então, na 54ª, para 7s869, exatamente a registrada no Race History Chart. Só não é menor porque Max não pode ultrapassar os retardatários que estão na sua frente, Vettel, Leclerc, Ocon, Alonso e Norris.
Uma volta sem safety car, busca insana
Por que Masi provavelmente instruiu Bernd Maylander, o piloto do safety car, a liderar o pelotão em menor velocidade do usual, como sinalizou Hamilton?
Não foi para ajudar Max a se aproximar de Hamilton, isso foi consequência e seria inevitável, mas para que desse tempo aos comissários de liberar a pista na curva 14 e ele, Masi, pudesse chamar o safety car para dentro pelo menos uma volta antes da bandeirada.
Se a velocidade do safety car fosse normal nas primeiras voltas de entrada na corrida, as 58 voltas teriam sido completadas antes de os comissários liberaram a pista na Curva 14. E não haveria o tão desejado round final do combate entre Hamilton e Max.
Tenha a certeza de que Masi foi orientado tanto pelos profissionais da FOM quanto da FIA para, dentro do possível, não terminar a corrida sob regime de safety car. Uma temporada histórica, excepcional, como a deste ano, não merecia terminar dessa forma, mas com os dois protagonistas do show duelando entre si, roda a roda, como iniciaram o ano e assim se mantiveram ao longo das 22 etapas.
Na 55ª volta, não havia o que Hamilton, líder, e Max, segundo, separados por 6s221 e cinco retardatários, fazerem a não ser acatar o ritmo do safety car.
De repente, veloz de novo
Mas repare nisto: na 56ª volta, o safety car voltou a ser mais rápido. Na 55ª volta, Hamilton e os demais atrás de si completam a volta na casa de 2min32s. Tempo de Hamilton, 2min32s083, Norris, 2min32s140, Alonso, 2min32s020, Ocon, 2min31s544, Max, 2min30s435.
Na 56ª volta os tempos melhoram muito: Hamilton, 2min25s761, Norris, 2min25s212, Alonso, 2min25s226, Max, 2min26s432. A diferença de Hamilton para Max na penúltima volta do safety car é de 6s892, com os cinco retardatários entre eles. O trabalho dos comissários para liberar a pista está no fim.
Na 57ª volta, uma antes do fim da corrida, acontece o que gera polêmica até hoje, Masi autoriza os cinco retardatários a ultrapassar o safety car. Mas só os cinco, não os demais.
Isso demandaria mais tempo do gasto para os cinco irem embora, na frente de Hamilton e Max, e Masi precisaria esperar uma volta, depois da saída do safety car, para liberar a disputa, a relargada. É o que diz a regra.
Mas o diretor de prova não a tinha. Os comissários liberaram a pista na altura da Curva 14 somente na 57ª volta. Por esse motivo no fim dela é que para a felicidade de Masi foi possível permitir a relargada.
Atente a isso. Na mesma 57ª volta, com Norris, Alonso, Ocon, Leclerc e Vettel ultrapassando Hamilton, obviamente Max colou nele e se posicionou para tentar a ultrapassagem, assumir a liderança da prova, vencê-la e tornar-se campeão do mundo, tão logo cruzassem a linha de chegada, abrindo a 58ª e última volta, a única possível já sem o safety car. Antes da linha de chegada Max não poderia estar na frente de Hamilton.
Colou no adversário
Tempo de volta de Hamilton na 57ª volta, 2min28s331, enquanto Max pôde acelerar mais, sem os retardatários na sua frente, 2min21s895. A diferença entre ambos na linha de chegada, no fim da 57ª volta, iniciando a 58ª, cai para 456 milésimos, menos de meio segundo.
O cenário estava definido para Max ultrapassar Hamilton com seus pneus cerca de 2 segundos mais rápidos por volta. Os de Max, macios novos colocados na volta 53, sob regime de safety car, e os de Hamilton, duros, bem desgastados, por estarem no seu Mercedes desde a 14ª volta, ou seja, já com 44 voltas.
Na curva 5, bem lenta, contornada em segunda marcha, depois de um trecho relativamente longo de aceleração plena, Max se aproveita da melhor capacidade de frenagem e aceleração de seus pneus macios quase novos para ultrapassar Hamilton e ser, 11 curvas mais tarde, campeão do mundo.
DRS proibido
Hamilton teria, ainda, duas chances de voltar à liderança, apesar dos seus pneus apresentarem aderência bem menor que os de Max, pois há duas longas retas depois da Curva 5. Com o flap móvel (DRS) seria possível, sim, para Hamilton, mas em seguida ao safety car é preciso esperar duas voltas até que a direção de prova autorize o uso do DRS. E faltava somente aquela volta, a 58ª volta, para a bandeirada.
Só com o vácuo e seu imenso talento, Hamilton ainda tentou, mas o adversário é tão capaz quanto ele, no nível máximo histórico da F1, e soube se defender. Max fez uma mudança de trajetória na pista e voltou à posição original para evitar a ultrapassagem de Hamilton. E depois seguiu uma terceira via, por dentro da reta, para tomar a curva a seguir, a 9, internamente, espaço por onde Hamilton poderia tentar ganhar sua posição.
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Se Max tivesse mudado de trajetória novamente naquela reta provavelmente seria punido e teríamos ainda mais polêmica das surgidas por causa das indefinições de Masi. O regulamento permite ao piloto mudar de trajetória para se defender da tentativa de ultrapassagem e depois voltar à linha original. Ele pode, ainda, mudar de trajetória para melhor tomar a curva seguinte. Foi o que Max fez. Ninguém na Mercedes contestou essas manobras.
Para resumir meu pensamento, não acredito em privilégio de Masi a Max e à Red Bull-Honda. Mas que suas polêmicas decisões, como escrevi no texto anterior, definiram o campeonato não há como colocar em dúvida.
Voltaremos a nos encontrar aqui antes das festas de fim de ano, para o primeiro capítulo das várias reportagens planejadas sobre os imensos desafios do regulamento de 2022, técnico e esportivo, para equipes e pilotos. Abaixo disponibilizo os links prometidos.
Abraços.
Livio Oricchio é um jornalista brasileiro e italiano, especializado em automobilismo, notadamente a F1, e em outra de suas paixões, a divulgação científica. Cobriu a F1 para o Grupo Estado de 1994 a 2013 e então para o GloboEsporte.com até 2019. Residiu em Nice, na França, durante boa parte da carreira, iniciada na F1 ainda em 1987. Colabora, desde então, com publicações de diversos países. Tem no currículo a presença em quase 500 GPs. Em boa parte desse espaço de tempo também foi repórter e comentarista de F1 das rádios Jovem Pan, Bandeirantes e Globo. Em 2012 ganhou a mais prestigiosa premiação da área, o Troféu Lorenzo Bandini, recebida em cerimônia na Itália.