Por que Marielle e Anielle Franco ainda atraem tanto ódio?

Poderíamos discutir se é certo que ministros usem aviões da FAB. Mas por que a indignação só aparece quando é Anielle?

Por Deutsche Welle

Anielle e Marielle Franco
Reprodução

"Espero que você tenha o mesmo fim que sua irmã". "Que pena que você não estava no carro junto com ela". Essas são algumas das ameaças e ataques racistas recebidos pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, na semana passada. As mensagens foram "suavizadas" quando publicadas aqui, porque algumas delas usam palavras que não devem ser replicadas.

A "irmã" à qual os abusadores se referem é a vereadora e ativista Marielle Franco, morta em março de 2018 com quatro tiros na cabeça, aos 38 anos.

É inacreditável que a dor da perda de Marielle, dessa maneira brutal e horrorosa, seja usada contra a ministra, única irmã de Marielle, com quem tinha uma relação super próxima. Penso também em dona Marinete, mãe das duas. Como o coração dessa mãe aguenta?

As ameaças foram tão sérias que fizeram com que Anielle pedisse ajuda ao governo e à Polícia Federal.

É chocante também que a primeira ministra da Igualdade Racial do Brasil seja, ela mesma, vítima de um racismo tão violento, que a obriga a ter escolta policial reforçada. Tem prova maior do quanto o Brasil é racista?

Os ataques começaram depois que a ministra causou polêmica por usar um avião da FAB para cumprir um compromisso de trabalho, a ida a um estádio em São Paulo, onde lançou um protocolo de intenções para a promoção da igualdade racial no esporte junto ao Ministério do Esporte e à CBF, na final da Copa do Brasil. Anielle é flamenguista e gravou um vídeo andando para o jatinho e falando sobre o compromisso e publicou em suas redes sociais.

O ministro dos Esportes, André Fufuca, também usou um avião da FAB para ir de São Luís, no Maranhão, para o evento em São Paulo, mas não recebeu nenhuma crítica. Parece que quando o ministro é um homem branco, nascido em berço de ouro, viajar de jatinho está liberado, não? No caso de Anielle, quem essa "favelada pensa que é", pensam os seus algozes.

Erro de assessora

A polêmica aumentou porque uma assessora de Marielle, Marcelle Decothé, que viajou com ela, usou a ocasião para fazer "piadas" nas redes sociais ofendendo o São Paulo e os paulistas. É inaceitável que uma funcionária pública comissionada e do alto escalão se comporte desse jeito. Marcelle foi demitida, o que é o certo.

O erro da assessora poderia servir para discussões importantes sobre, por exemplo, o uso de redes sociais de forma irresponsável por pessoas envolvidas na política. Mas não: virou caso de polícia, com Anielle recebendo todas essas ameaças.

Também poderíamos discutir, claro, se é certo ou não que ministros de Estado usem aviões da FAB para trabalho. Mas por que a indignação só aparece quando é Anielle usando o avião?

A resposta, acho, é simples: porque Anielle é uma mulher preta, cria da favela e que, assim como a sua irmã, nunca baixou a cabeça para ninguém. As duas são fortes, corajosas e sempre ocuparam todos os seus lugares com orgulho. Se tem gente que reclama que aeroporto está parecendo rodoviária, o que dirão de ex-faveladas andando de jatinho?

Falo de Marielle Franco no presente não só por causa do bordão "Marielle, presente!", mas porque não só o seu legado continua vivo (e Anielle é só uma das provas), como também porque ela, mesmo depois de morta, continua sendo vítima de ódio e incomodando. Não é à toa que os ataques contra Anielle falem de Marielle.

É horrível fazer essa constatação, mas para muitos, parece que Marielle de fato mereceu ser assassinada. Seu nome virou símbolo de força para militantes mundo afora, mas também de ódio por parte da extrema direita, que pensa que mulheres como ela (e Anielle, e tantas outras) precisam ser silenciadas, mesmo que seja da maneira mais brutal que possamos imaginar.

Em um dos exemplos clássicos do ódio ao legado de Marielle, os então candidatos a deputado pelo PSL Daniel Silveira e Rodrigo Amorim arrancaram uma placa que tinha sido colocada em uma rua do Rio de Janeiro com o nome de Marielle, em uma forma de "protesto", e postaram fotos segurando partes da placa quebrada como se fossem troféus. O feito foi comemorado por Flávio Bolsonaro.

Escrevo esse texto na segunda-feira (02/10) e a notícia do momento é que a investigação sobre o mandante do assassinado de Marielle passou a ser realizada pelo Superior Tribunal de Justiça. Há esperança de que a solução do caso esteja cada vez mais próxima (tomara, esperamos por isso há cinco anos e meio), mas, no Twitter, há comentários do tipo: "Ninguém dá bola pra essa Marielle, ela é o tipo de pessoa que só ficou famosa depois que morreu, estão relembrando para abafar as 'maracutaias da irmã'". "Marielle no céu? Aquela miliciana está no inferno", diz outro.

Sim, essas pessoas falam isso de uma mulher que morreu assassinada aos 38, que era mãe, filha, esposa e amiga. É a barbárie.

Como consolo: especialistas no caso acham, mesmo, que estamos perto de descobrir quem mandou matar Marielle. E, queiram os odiadores ou não, ela vai continuar presente. E Anielle também. Aceitem.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

Autor: Nina Lemos

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