O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursou, nesta terça-feira (19), na abertura da 78ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.
Lula falou sobre temas que vem adotando como bandeira em encontros internacionais: fome, desigualdade, Amazônia e o papel do Brasil na política internacional.
Leia abaixo a íntegra do discurso de Lula:
Meus cumprimentos ao Presidente da Assembleia Geral, Embaixador Dennis Francis, de Trinidad e Tobago.
É uma satisfação ser antecedido pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres.
Saúdo cada um dos Chefes de Estado e de Governo e delegadas e delegados presentes.
Presto minha homenagem ao nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello e 21 outros funcionários desta Organização, vítimas do brutal atentado em Bagdá, há 20 anos.
Desejo igualmente expressar minhas condolências às vítimas do terremoto no Marrocos e das tempestades que atingiram a Líbia.
A exemplo do que ocorreu recentemente no estado do Rio Grande do Sul no meu país, essas tragédias ceifam vidas e causam perdas irreparáveis.
Nossos pensamentos e orações estão com todas as vítimas e seus familiares.
Senhoras e Senhores, há vinte anos, ocupei esta tribuna pela primeira vez.
E disse, naquele 23 de setembro de 2003:
"Que minhas primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência”
Volto hoje para dizer que mantenho minha inabalável confiança na humanidade.
Naquela época, o mundo ainda não havia se dado conta da gravidade da crise climática.
Hoje, ela bate às nossas portas, destroi nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres.
A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã.
O mundo está cada vez mais desigual.
Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade.
O destino de cada criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe.
A parte do mundo em que vivem seus pais e a classe social à qual pertence sua família irão determinar se essa criança terá ou não oportunidades ao longo da vida.
Se irá fazer todas as refeições ou se terá negado o direito de tomar café da manhã, almoçar e jantar diariamente.
Se terá acesso à saúde, ou se irá sucumbir a doenças que já poderiam ter sido erradicadas.
Se completará os estudos e conseguirá um emprego de qualidade, ou se fará parte da legião de desempregados, subempregados e desalentados que não para de crescer.
É preciso antes de tudo vencer a resignação, que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural.
Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo.
Senhores e senhoras
Se hoje retorno na honrosa condição de presidente do Brasil, é graças à vitória da democracia em meu país.
A democracia garantiu que superássemos o ódio, a desinformação e a opressão.
A esperança, mais uma vez, venceu o medo.
Nossa missão é unir o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre.
O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o multilateralismo.
Como não me canso de repetir, o Brasil está de volta.
Nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais.
Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos.
A comunidade internacional está mergulhada em um turbilhão de crises múltiplas e simultâneas: a pandemia da Covid-19; a crise climática; e a insegurança alimentar e energética ampliadas por crescentes tensões geopolíticas.
O racismo, a intolerância e a xenofobia se alastraram, incentivadas por novas tecnologias criadas supostamente para nos aproximar.
Se tivéssemos que resumir em uma única palavra esses desafios, ela seria desigualdade.
A desigualdade está na raiz desses fenômenos ou atua para agravá-los.
A mais ampla e mais ambiciosa ação coletiva da ONU voltada para o desenvolvimento – a Agenda 2030 – pode se transformar no seu maior fracasso.
Estamos na metade do período de implementação e ainda distantes das metas definidas.
A maior parte dos objetivos de desenvolvimento sustentável caminha em ritmo lento.
O imperativo moral e político de erradicar a pobreza e acabar com a fome parece estar anestesiado.
Nesses sete anos que nos restam, a redução das desigualdades dentro dos países e entre eles deveria se tornar o objetivo-síntese da Agenda 2030.
Reduzir as desigualdades dentro dos países requer incluir os pobres nos orçamentos nacionais e fazer os ricos pagarem impostos proporcionais ao seu patrimônio.
No Brasil, estamos comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, de maneira integrada e indivisível.
Queremos alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente.
Lançamos o plano Brasil sem Fome, que vai reunir uma série de iniciativas para reduzir a pobreza e a insegurança alimentar.
Entre elas, está o Bolsa Família, que se tornou referência mundial em programas de transferência de renda para famílias que mantêm suas crianças vacinadas e na escola.
Inspirados na brasileira Bertha Lutz, pioneira na defesa da igualdade de gênero na Carta da ONU, aprovamos a lei que torna obrigatória a igualdade salarial entre mulheres e homens no exercício da mesma função.
Combateremos o feminicídio e todas as formas de violência contra as mulheres.
Seremos rigorosos na defesa dos direitos de grupos LGBTQI+ e pessoas com deficiência.
Resgatamos a participação social como ferramenta estratégica para a execução de políticas públicas.
Senhor presidente
Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas.
Os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima. A emergência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado.
Não é por outra razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas.
São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima.
Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera.
Nós, países em desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo.
No Brasil, já provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável é possível.
Estamos na vanguarda da transição energética, e nossa matriz já é uma das mais limpas do mundo.
87% da nossa energia elétrica provem de fontes limpas e renováveis.
A geração de energia solar, eólica, biomassa, etanol e biodiesel cresce a cada ano.
É enorme o potencial de produção de hidrogênio verde.
Com o Plano de Transformação Ecológica, apostaremos na industrialização e infraestrutura sustentáveis.
Retomamos uma robusta e renovada agenda amazônica, com ações de fiscalização e combate a crimes ambientais.
Ao longo dos últimos oito meses, o desmatamento na Amazônia brasileira já foi reduzido em 48%.
O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si.
Sediamos, há um mês, a Cúpula de Belém, no coração da Amazônia, e lançamos nova agenda de colaboração entre os países que fazem parte daquele bioma.
Somos 50 milhões de sul-americanos amazônidas, cujo futuro depende da ação decisiva e coordenada dos países que detêm soberania sobre os territórios da região.
Também aprofundamos o diálogo com outros países detentores de florestas tropicais da África e da Ásia.
Queremos chegar à COP 28 em Dubai com uma visão conjunta que reflita, sem qualquer tutela, as prioridades de preservação das bacias Amazônica, do Congo e do Bornéu-Mekong a partir das nossas necessidades.
Sem a mobilização de recursos financeiros e tecnológicos não há como implementar o que decidimos no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade.
A promessa de destinar 100 bilhões de dólares – anualmente – para os países em desenvolvimento permanece apenas isso, uma longa promessa.
Hoje esse valor seria insuficiente para uma demanda que já chega à casa dos trilhões de dólares.
Senhor presidente
O princípio sobre o qual se assenta o multilateralismo – o da igualdade soberana entre as nações – vem sendo corroído.
Nas principais instâncias da governança global, negociações em que todos os países têm voz e voto perderam fôlego.
Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução.
No ano passado, o FMI disponibilizou 160 bilhões de dólares em direitos especiais de saque para países europeus, e apenas 34 bilhões para países africanos.
A representação desigual e distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é inaceitável.
Não corrigimos os excessos da desregulação dos mercados e da apologia do Estado mínimo.
As bases de uma nova governança econômica não foram lançadas.
O BRICS surgiu na esteira desse imobilismo, e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes.
A ampliação recente do grupo na Cúpula de Joanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21.
Somos uma força que trabalha em prol de um comércio global mais justo num contexto de grave crise do multilateralismo.
O protecionismo dos países ricos ganhou força e a Organização Mundial do Comércio permanece paralisada, em especial o seu sistema de solução de controvérsias.
Ninguém mais se recorda da Rodada do Desenvolvimento de Doha.
Nesse ínterim, o desemprego e a precarização do trabalho minaram a confiança das pessoas em tempos melhores, em especial os jovens.
Os governos precisam romper com a dissonância cada vez maior entre a “voz dos mercados” e a “voz das ruas”.
O neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias.
Seu legado é uma massa de deserdados e excluídos.
Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas.
Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário.
Repudiamos uma agenda que utiliza os imigrantes como bodes expiatórios, que corrói o Estado de bem-estar e que investe contra os direitos dos trabalhadores.
Precisamos resgatar as melhores tradições humanistas que inspiraram a criação da ONU.
Políticas ativas de inclusão nos planos cultural, educacional e digital são essenciais para a promoção dos valores democráticos e da defesa do Estado de Direito.
É fundamental preservar a liberdade de imprensa.
Um jornalista, como Julian Assange, não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima.
Nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos.
Aplicativos e plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos.
Ao assumir a presidência do G20 em dezembro próximo, não mediremos esforços para colocar no centro da agenda internacional o combate às desigualdades em todas as suas dimensões.
Sob o lema "Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável", a presidência brasileira vai articular inclusão social e combate à fome; desenvolvimento sustentável e reforma das instituições de governança global.
Senhor presidente,
Não haverá sustentabilidade nem prosperidade sem paz.
Os conflitos armados são uma afronta à racionalidade humana.
Conhecemos os horrores e os sofrimentos produzidos por todas as guerras. A promoção de uma cultura de paz é um dever de todos nós. Construí-la requer persistência e vigilância.
É perturbador ver que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor novas ameaças.
Bem o demonstra a dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino.
A este caso se somam a persistência da crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão.
Na Guatemala, há o risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas.
A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU.
Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz.
Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo.
Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaço para negociações.
Investe-se muito em armamentos e pouco em desenvolvimento.
No ano passado os gastos militares somaram mais de 2 trilhões de dólares.
As despesas com armas nucleares chegaram a 83 bilhões de dólares, valor vinte vezes superior ao orçamento regular da ONU.
Estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade.
A ONU nasceu para ser a casa do entendimento e do diálogo. É perturbador ver que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor novas ameaças.
Bem o demonstra a dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino.
A este caso se somam a persistência da crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão.
Na Guatemala, há o risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas.
A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU.
Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz.
Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo.
Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaço para negociações.
Investe-se muito em armamentos e pouco em desenvolvimento.
No ano passado os gastos militares somaram mais de 2 trilhões de dólares.
As despesas com armas nucleares chegaram a 83 bilhões de dólares, valor vinte vezes superior ao orçamento regular da ONU.
Estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade.
A ONU nasceu para ser a casa do entendimento e do diálogo.
A ONU precisa cumprir seu papel de construtora de um mundo mais justo, solidário e fraterno.
Mas só o fará se seus membros tiverem a coragem de proclamar sua indignação com a desigualdade e trabalhar incansavelmente para superá-la.
Muito obrigado.