Em 2020, a servidora pública Débora Cunha criou uma página em uma rede social para a filha Ana Catarina, que tinha nascido havia poucos meses. Portadora de uma doença rara chamada Acidúria Glutárica, o objetivo era compartilhar informações com outras mães e dividir a rotina de cuidados com a menina.
"Para chegar no diagnóstico foi um processo complicado. Fizemos diversos exames e os médicos investigavam o que poderia ser. Buscando na internet encontrei o perfil de uma mãe que falava sobre a doença do filho que tinha sintomas semelhantes. Levamos a história aos médicos, fizemos o teste genético e chegamos ao diagnóstico da Ana Catarina", conta.
"Eu fiquei grata por ter conhecido uma história que ajudou ao nosso diagnóstico precoce. E pensei em compartilhar nossa experiência para poder ajudar outras famílias", afirma Cunha à DW.
O que ela não imaginava era que golpistas se aproveitariam da situação. Poucos meses após a criação da página, a família descobriu que duas pessoas estavam usando fotos da menina em campanhas virtuais para arrecadar dinheiro.
"A rede social é um caminho para dar visibilidade a essas crianças que muitas vezes são esquecidas pelo poder público. É frustrante você ver pessoas aproveitando do seu sofrimento para lucrar com isso", desabafa a servidora pública.
Situações como a enfrentada por Cunha não são raras de acontecer e levantam a questão: quais os cuidados que os pais devem ter ao publicar fotos dos filhos nas redes sociais?
Um estudo da organização não governamental Humans Right Watch, divulgado em junho, apontou que ao menos 170 imagens de crianças e adolescentes brasileiros de dez estados estavam sendo usadas, sem conhecimento ou autorização dos responsáveis, para o treinamento de ferramentas de inteligência artificial (IA).
Segundo o relatório, as fotos foram coletadas na internet e inseridas em um conjunto de dados que empresas de IA utilizam para treinar algoritmos.
Imagens manipuladas e riscos
Mas não é só isso. Fotos inocentes e despretensiosas, como o bebê comendo ou da criança brincando na piscina, por exemplo, podem parar nas mãos de quadrilhas que manipulam as imagens e as vendem em plataformas e grupos que compartilham conteúdo com abuso sexual infantil.
"Ao publicar fotos, estamos sempre expostos a estes riscos e, quando pensamos em crianças, o risco aumenta, pois com o advento das deepfakes, basta algumas fotos para que seja possível montar um vídeo falso, por exemplo. Os danos podem ser sérios e profundos. Uma vez que as fotos estão online, é impossível garantir seu controle, pois elas podem ser copiadas, baixadas ou compartilhadas por qualquer pessoa", explica Fábio Diniz, presidente do Instituto Nacional de Combate ao Cibercrime (INCC).
Essa prática de compartilhar e divulgar fotos e vídeos dos filhos na internet tem nome: sharenting. O termo vem do inglês e é a junção de share (compartilhar) e parenting (paternidade).
Apesar de parecer uma forma inocente de registros familiares, as postagens também podem expor detalhes sobre o dia a dia da criança, hábitos da família, locais frequentados e outras informações pessoais.
"Os pais podem, sem saber, fornecer informações que facilitem o rastreamento da localização da criança, aumentando o risco de sequestro ou assédio. Fotos com uniformes de escolas, clubes ou com localização podem ser bastante perigosas", acrescenta Diniz.
Para proteger a privacidade dos menores, os especialistas recomendam que os pais ou responsáveis evitem postar fotos na internet e compartilhar a imagem das crianças em aplicativos de mensagens.
"Mesmo com o perfil privado, ainda existem riscos. Amigos ou seguidores podem compartilhar as imagens, fazendo com que elas circulem fora do controle dos pais. O perfil pode ser hackeado e acarretar na exposição das fotos e informações pessoais das crianças", explica Guilherme Guimarães, advogado especialista em direito digital e proteção de dados.
Educação digital
No combate ao sharenting, o Comitê Gestor da Internet no Brasil criou o guia Internet Segura para Seus Filhos. O material aborda temas como os riscos da internet; como ensinar os filhos a se protegerem no ambiente virtual; e o capítulo "Não seja você o vilão", direcionado aos pais, levanta a questão da exposição dos filhos.
Os especialistas afirmam ainda que os pais não são os únicos culpados pela exposição das crianças na internet. Para eles, há falta de instrução das famílias e da sociedade sobre o ambiente digital.
"Não há educação digital no Brasil. As famílias e a sociedade não sabem dos riscos. Cabe ao Estado esse cuidado através da criação de regulamentações específicas para o ambiente virtual. Também é necessário que haja um programa de educação digital", analisa Fernanda Las Casas, advogada e presidente da Comissão de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
A resolução 245/24 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (Conanda), aprovada em abril, aborda os direitos das crianças e adolescentes no ambiente digital. Ela trata principalmente dos cuidados que as plataformas e empresas devem ter com os dados dos menores.
"A privacidade de crianças e adolescentes deve ser respeitada e protegida, por padrão, em todos os ambientes e serviços digitais, inclusive quanto ao tratamento e armazenamento de seus dados pessoais", diz trecho do documento.
Já o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) garante a preservação da identidade e da imagem da criança para que ela não seja exposta a situações constrangedoras. Porém, não há lei específica para essa proteção no ambiente online.
Autor: Simone Machado