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"Sabedoria na vida não depende da formação intelectual"

Em entrevista à DW, médico Drauzio Varella fala sobre a Amazônia e o que aprendeu na região que é tema de seu novo livro.

Por Deutsche Welle

Desde 1992, a Amazônia faz parte da rotina do famoso médico brasileiro Drauzio Varella. Mais especificamente a bacia do Rio Negro. De lá para cá, ele conta que empreendeu cerca de 150 viagens à região, coordenando um projeto de pesquisa farmacológica dentro do programa Escola da Natureza, iniciativa da Universidade Paulista (Unip).

"Na primeira vez [que lá estive] fiquei deslumbrado mesmo. E me sentindo culpado, porque nessa época eu já conhecia muitos países e ainda não conhecia a Amazônia de perto", comenta ele.

As viagens pela região renderam um livro O Sentido das Águas: Histórias do Rio Negro, que será lançado nesta quarta-feira (02/04) pela Companhia das Letras. A exemplo dos clássicos diários de viagem, a obra reúne histórias coletas e vividas pelo carismático médico em suas incursões pela mais importante floresta do planeta, destacando não só as paisagens naturais como, principalmente, os personagens humanos que compõem o ameaçado bioma.

Drauzio Varella se tornou celebridade no Brasil não só pelas suas qualidades como médico oncologista, mas pela facilidade de comunicação. De linguagem fácil, cuidadosa e acessível, ele é um dos principais divulgadores de informação médica no país, com quadros e aparições constantes em programas de TV, rádio e internet.

Aos 81 anos, Varella diz à reportagem que segue visitando a Amazônia pelo menos três vezes por ano — houve épocas em que as viagens ocorriam na média de uma por mês. Como fica claro na saborosa narrativa do livro, essa assiduidade transformou-o não só em um conhecedor daquela região, mas também em uma pessoa que transita e dialoga com muitos ribeirinhos, dos quais conhece nome, família e muitos causos.

O médico concedeu entrevista à DW na última sexta-feira, de sua residência em São Paulo, a partir de chamada de vídeo. Fez apenas uma exigência: que não fosse chamado de senhor, mas tratado simplesmente por você.

DW: Nesses mais de 30 anos de viagens à Amazônia, quais foram as principais transformações? O que se destacou mais para você em 1992 e que, agora, é diferente?

Drauzio Varella: O que me levou a essas viagens frequentes foi esse projeto de pesquisa. Na primeira vez fiquei deslumbrando mesmo. Realmente, me sentindo culpado. Nessa época eu já conhecia muitos países e não conhecia a Amazônia de perto. Vi aquele rio… Olha, que deslumbramento! Os rios europeus parecem riachos perto dos rios amazônicos. É um tipo de paisagem que tem impacto nos olhos da gente, uma imagem muito forte.

No decorrer dos anos, isso se modificou. Eu fiquei mais seletivo, meu olhar ficou mais detalhista. Aquilo é tão bonito que cega a gente, você não tem olhos para mais nada. À medida que o tempo vai passando, você olha mais para os reflexos do rio, para a floresta, para a composição da floresta. Essa coisa da biodiversidade é visível, não é teoria.

Quando mais você olha, mais perscrutador fica seu olhar, mais belezas você encontra. E isso depois se dirige aos habitantes da região, às pessoas, aos ribeirinhos, aos indígenas. Você começa a querer entender a história deles, de onde vem essa gente. Quando os portugueses chegaram, lá já havia milhões no Brasil.

Você menciona os celulares, que não começo não havia nenhum e agora toda criança, toda pessoa, está usando, todo mundo olhando para a tela. Como médico, acredita que esse uso abusivo seja uma doença uma epidemia?

Não sei se a gente pode chamar de doença isso. Eu sou um pouco cauteloso com esse termo. Para dar um exemplo: você mede sua pressão e deu 14 por 10. Tecnicamente, você tem hipertensão. Mas não posso dizer que você está doente. Posso dizer que você tem uma condição, que é a hipertensão, que poderá se transformar em doença. Você vai estar doente quando tiver um infarto no miocárdio, quanto tiver insuficiência renal.

Mas eu diria que essa é uma nova condição, uma condição devastadora, não só aqui nas grandes cidades como lá [na Amazônia] também. Porque essa tecnologia veio sem que nós nos preparássemos para ela. De repente, ela caiu e se disseminou numa velocidade impressionante. Aí você vê aquelas populações que viveram uma realidade completamente diferente dessa e isso dá uma impressão ruim, porque eles saem do universo em que viviam e passam a viver no universo das redes sociais.

Se as redes sociais causam problemas para pessoas que cresceram nas grandes cidades, têm um impacto grande na formação de nossas crianças, adolescentes e de nós mesmos, adultos, imagina em populações que viveram em comunidades distantes e, de repente, migram para cidades que já têm uma certa cultura urbana, cultura nem sempre no bom sentindo de cultura. Isso é um impacto muito maior.

Ou seja: o uso do celular é uma condição, mas as consequências são as "doenças" que aparecem?

Sem dúvida. Acha que tem cabimento? O índice de suicidas entre indígenas que vivem em suas comunidades, não há estudos, pelo menos que eu conheça, é baixo, certamente. Eles migram para as cidades e aí as crianças começam a se matar com 13, 14, 15 anos. Não faz o menor sentido, não é verdade? Alguma coisa acontece aí que leva essas crianças… Eu acho que é a perda da identidade. Quando chegam à cidade, começam com celular, rede social e o diabo. Eles não são mais os indígenas que eram. Passam a ser nada. Perde a identidade completamente.

No seu livro, em comum, quase todas as histórias trazem lições de sabedoria das pessoa simples e sábias, conectadas à natureza. Como aprender mais com elas?

A sabedoria diante da vida não depende da formação intelectual. Um homem, uma mulher que vive aquela realidade e consegue entender aquela realidade que está vivendo tem muito a nos ensinar. Eu conto no livro a história de, quando estávamos com um barco para fazer coletas, tinha um indígena tucano sentado num tronco de árvore caído na beira do rio. Ele estava olhando, com o olhar perdido. Duas horas depois, quando passamos novamente, ele estava exatamente na mesma condição. Um de nós perguntou: o que você está fazendo aí? Ele respondeu: estou sentado. Que resposta mais lógica que ele poderia dar? A gente é que tem essa coisa de "você não está fazendo nada", de ter de estar fazendo alguma coisa. Temos essa pressão para fazer, para se mexer, para construir. Ele estava sentado olhando o rio, era o que ele estava fazendo. Essa sabedoria é muito interessante.

Seu livro dialoga com a produção contemporânea de nomes de destaque dentre os povos originários, como o próprio escritor Ailton Krenak. A solução para os males da natureza e os próprios males dos seres humanos está no retorno aos conhecimentos ancestrais?

Não sei responder. Mas acho que o abandono dos conhecimentos ancestrais, dessa filosofia de vida, empobrece a gente.

E a evolução do desmatamento? Os números chocam, é claro. Mas na vida real isso também é perceptível, visível?

É visível, sim. Você passa por um lugar, volta cinco anos depois e vê uma parte desflorestada. Temos uma parcela botânica que estudamos no baixo Rio Negro, [no entorno do] penúltimo afluente antes de chegar a Manaus. Você vê as pessoas tirando madeira de lá. É uma coisa feita assim, sem muito disfarce. É feito com uma certa discrição, mas não muda.

Você é otimista com relação a isso? O desmatamento tem cura?

Eu acho que o grande equívoco aqui, quando a gente pensa na floresta amazônica, é pensar em um lugar ermo, um tapete verde ou um inferno verde. Você conversa com as pessoas e aí o cara diz: quando eu cheguei aqui, há 30 anos, não tinha nada. Não tinha nada! Tinha uma floresta! Derrubou, aí pôs o gado e plantou uma gramínea ali para alimentar esse gado. Ou plantou soja. Agora que não tem nada.

Naquela época tinha muita coisa, tinha uma tremenda biodiversidade. Tinha uma floresta ali, o bem maior da natureza. Mas se você não leva em conta que a floresta é habitada e isso tem de fazer parte de todo o pensamento, de todas as políticas públicas da região, você não preserva. Porque se morássemos em um lugar desse, sem comida para dar para os filhos, e chega nas cheias não tem peixe, não acha peixe, também iríamos derrubar. Porque entre uma árvore e meu filho, eu nem tenho escolha a fazer. Então, enquanto nós não pensamos sobre isso, enquanto não tivermos políticas públicas que dê condição de sobrevivência para essas populações, esquece.

Esquece, porque não vai ser possível. Nessa região em que a gente vai [fazer as pesquisas] tinha um angelim [espécie de árvore] maravilhoso. Devia ter 30 metros ou mais de altura. E eu passava sempre e achava uma coisa incrível. Um dia passei por lá e ele não estava. Aí conversei com um homem que morava ali e ele: ah, eu troquei por um guarda-roupas, eu precisava e não tinha dinheiro para comprar. Trocou uma maravilha da natureza como aquela árvore por um guarda-roupas que eu vi e que eu poderia ter comprado para ele. Mas nunca me ocorreu comprar. Achei que [a árvore] era perto da casa dele e ele iria preservar. Por que ele iria preservar?

Autor: Edison Veiga

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