Quem tem medo de literatura negra brasileira?

Há um medo histórico que paira sobre a literatura feita por negros deste país. Porque, no fundo, nem todos querem ver o avesso da pele.

Por Deutsche Welle

Palavrões, palavras de baixo calão e descrição de cenas sexuais. Qual adolescente brasileiro já teve contato com esse tipo de coisa? (Contém ironia)

Pois bem, esses foram os argumentos utilizados em municípios do Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso e Santa Catarina para censurar o livro O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório.

Para quem não sabe, o livro publicado em 2020 foi vencedor do Prêmio Jabuti, a premiação literária mais importante do Brasil, e passou pelo crivo do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Tal programa faz parte do Ministério da Educação e pode ser entendido como uma das mais importantes políticas públicas do país, já que é responsável por selecionar e distribuir gratuitamente livros didáticos em todas as escolas brasileiras.

Tudo isso para dizer que a entrada deste livro em bibliotecas de escolas públicas brasileiras não foi feita por mero acaso, ou por conta do gosto literário de meia dúzias de pessoas. Estamos falando de dois instrumentos avaliativos (com teor diferente), que se apoiam em técnicas e conhecimentos específicos tanto para realizar o exame de obras literárias, quanto para decidir sobre sua possível aderência na formação cidadã dos jovens brasileiros.

E aqui não estou dizendo que o livro esteja acima de críticas, porque elas sempre existem e, quando bem-feitas, tem uma função importante. Também não acho que o livro deva ser uma unanimidade na preferência literária brasileira, afinal toda unanimidade é burra. Acontece que utilizar um moralismo baixo para censurar uma obra literária é muito mais perigoso do que qualquer palavrão que tenha saído da boca dos seus personagens.

E o fato é que o livro é bom. Muito bom. E talvez esse seja o grande problema.

Uma das pistas da grandiosidade do livro está no seu título. Ao mostrar o avesso da pele, Jefferson Tenório faz, com maestria, algo que é difícil e ao mesmo tempo urgente no Brasil: ele humaniza os sujeitos que são vítimas do racismo. O livro é narrado por um jovem rapaz, Pedro, que conta a vida e a morte de seu pai, um homem negro.

São aproximadamente 180 páginas nas quais podemos acompanhar os sofrimentos, as angústias, os devaneios, sonhos, sombras de felicidade e os amores vividos e interrompidos deste personagem. Tudo isso talhado pela ponta afiada do racismo – uma constante que acompanha as vidas negras na ficção e na realidade.

Dupla denúncia

Há uma dupla denúncia na obra de Jefferson Tenório: a primeira diz respeito ao já conhecido racismo brasileiro, e a segunda é a insistência do autor em mergulhar nas estatísticas sobre as vidas negras, sem reduzi-las a números e gráficos. Há uma vida que respira, sangra, deseja e morre debaixo da pele negra.

Parece que isso foi demais para "a moral e os bons costumes" de alguns diretores e secretários de educação de regiões específicas no Brasil – e aqui valeria fazer um duplo mapeamento que sobrepusesse os locais onde o livro foi censurado e o resultado das últimas eleições presidenciais.

Mas, como costuma acontecer com tudo o que diz respeito à dinâmica racista brasileira, a censura ou o desmerecimento de obras literárias feitas por autores negros não é uma novidade.

Maria Firmina dos Reis precisou de quase 150 anos para ser reconhecida como a primeira autora de um livro abolicionista na América Latina. Machado de Assis teve que ser embranquecido pela elite brasileira para poder alcançar um dos maiores posto da literatura brasileira (e de toda língua portuguesa). Lima Barreto morreu sabendo de sua grandiosidade, mas não obteve nenhum reconhecimento pela opinião pública da época – algo que determinou sua vida e a precocidade de sua morte. Carolina Maria de Jesus só foi reconhecida em terras brasileiras quando já havia ganhado o mundo, e mesmo assim, só bem recentemente ganhou o espaço merecido na Literatura Brasileira, essa com letra maiúscula.

E embora estejamos vivendo uma efervescência de autores negros nos últimos anos (ainda bem), muitas vezes, há uma negação cínica em reconhecer o tanto de Brasil que suas obras narram, ficcionam e desnudam. Se não fosse isso, qual outro motivo para o número irrisório de autores e autoras negros na Academia Brasileira de Letras?

Há um medo histórico que paira sobre a literatura feita por homens e mulheres negros deste país. Porque, no fundo, no fundo, nem todos querem ver o avesso da pele.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

Autor: Ynaê Lopes dos Santos

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