Por que o Desenrola ainda não surtiu efeito sobre a inadimplência?

Cerca de 30% das famílias brasileiras seguem com dívidas vencidas no orçamento, embora dados oficiais apontem que 11 milhões de pessoas renegociaram despesas.

Por Deutsche Welle

Quando o governo federal colocou em vigor o programa Desenrola Brasil, na metade de julho deste ano, três em cada dez famílias brasileiras estavam com ao menos uma conta atrasada (29,6%), segundo a Confederação Nacional das Indústrias (CNC). Dessas, cerca de 12% diziam, pior do que isso, não ter condições momentâneas de pagar as dívidas vencidas. Cinco meses depois, essas proporções permanecem praticamente intactas: no fim de novembro, 29% dos lares do país estavam inadimplentes e, desses, 12,5% não tinham como quitar suas despesas atrasadas.

Desenhado justamente para ressecar essas duas listas, o Desenrola esperava atingir, de imediato, a vida financeira de 70 milhões de brasileiros. Na primeira etapa, iniciada em julho, a meta era tirar 30 milhões dessa situação – muitas delas com dívidas altas com bancos e cooperativas de crédito – por meio de canais de renegociação. Na segunda, que começou em outubro, estava a parcela da população para qual o programa foi efetivamente criado: aquela com renda mensal de até R$ 2,2 mil e que convive há algum tempo com dívidas médias (até R$ 5 mil). O método é o mesmo: colocar instituições e devedores frente a frente até que saia um acordo vantajoso para ambos.

Esse, aliás, é o perfil mais inadimplente hoje no país, de acordo com a CNC: em novembro, cerca de 36% de famílias com renda média de até R$ 3 mil tinham contas atrasadas. Na faixa de quem ganha acima de R$ 10 mil, esse número caía para 14%.

Segundo dados do Ministério da Fazenda divulgados no começo de dezembro, perto de 11 milhões de pessoas participaram efetivamente do programa nas duas primeiras fases, renegociando em torno de R$ 29 bilhões em dívidas.

Conjuntura econômica

Mas, então, o Desenrola surtiu o efeito esperado?

Para o economista Guilherme Dietze, a resposta é não – e a explicação está em uma conjuntura econômica que ainda não se adaptou aos propósitos do projeto inicial: mesmo com as vantagens oferecidas pelos bancos, as pessoas estão sem recursos em mãos para liquidar as contas. “Não é um problema de desconto, mas de condição”, diz ele. “Desde a pandemia de covid-19, o acesso ao crédito está facilitado. Muita gente foi pegando dinheiro emprestado e rolando essas dívidas para frente. Quando a inflação subiu [em 2020], elas ficaram sem ter como pagá-las. Agora, mesmo o valor da dívida com desconto permanece alto para a condição financeira que elas possuem hoje”, continua Dietze.

Pelo relatório do Ministério da Fazenda, o grosso das contas renegociadas de julho até outubro foram com o sistema financeiro: mais de R$ 3,3 bilhões. Na segunda posição aparecem as seguradoras (R$ 513 milhões).

Mas não é só isso: o economista, que assessora a FecomercioSP, em São Paulo, vê como a mesma conjuntura estimula mais o consumo do que a renegociação de dívidas atrasadas. Com o ciclo de queda dos juros básicos (Selic), a partir de agosto, aliado ao aumento da renda durante o ano e o cenário de retração do desemprego – no mês passado, o país ultrapassou a marca de 100 milhões de pessoas formalmente empregadas –, Dietze nota que os brasileiros das classes mais baixas têm priorizado retomar o padrão de vida pré-pandemia.

“A parcela de menor renda já convive com dívidas há muito tempo. Não é uma novidade para ela. Depois de experimentar uma alta significativa nos preços de alimentos e combustíveis ao longo da pandemia, esse grupo tem agora a chance de voltar a consumir com mais tranquilidade – e prefere muito mais fazer isso do que pagar as dívidas do orçamento”.

Isso se expressa, por exemplo, no endividamento – situação de oito em cada dez (76,6%) das famílias brasileiras em novembro. Quase a totalidade dessas dívidas ativas (87,7%) são com a fatura do cartão de crédito – modalidade rápida e popular de empréstimos no ambiente econômico brasileiro.

Fôlego para famílias em situação mais crítica

O economista-chefe da consultoria de investimentos Warren, Felipe Salto, vai em outra direção. Para ele, a meta principal do Desenrola não era ressecar a lista da inadimplência, mas dar algum fôlego às famílias em situação mais crítica. A resposta dele seria “depende”. “É uma medida focalizada, cuja objetivo me parecer ser a limpeza do nome. A redução das dívidas deve ficar em torno de 10% a 20%”, diz ele, que foi secretário da Fazenda de São Paulo até o ano passado.

A experiência no comando da economia mais rica do Brasil, aliás, faz com que Salto adote um discurso de espera – na linha do que o governo federal tem adotado. “Os efeitos não são imediatos, e os efeitos agregados sobre a inadimplência e o comprometimento da renda das famílias não vão ser mágicos”, observa ele, alçando outro indicador importante na análise do Desenrola: o quanto o dinheiro do mês dos lares brasileiros vai para pagamento de dívidas.

Pelos dados da CNC, um terço (30%) do orçamento estava direcionado para despesas em novembro. Pesquisas paralelas, como a do instituto Plano CDE, de São Paulo, mostram que metade das famílias de classes médias e baixas do Brasil chegam ao fim de cada mês com mais gastos do que recursos. É por isso, inclusive, que o cartão de crédito se torna um álibi.

Salto acredita que não é o Desenrola que terá impacto significativo sobre o fenômeno, mas antes um debate macroeconômico que perdurou ao longo de 2023: a questão fiscal. Na visão dele, a inadimplência tenderá a cair com a redução dos juros básicos (hoje em 12,25% ao ano), o que depende do debate mais amplo sobre as contas públicas. “Se não cedermos a pressões que incidem sobre o novo arcabouço e a meta fiscal será possível ter um crescimento econômico razoável, o que também ajudará”, completa.

Ainda é cedo para avaliar

Julia Braga, que leciona na Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, adota uma visão ainda mais ponderada. Para ela, embora ainda seja cedo para avaliar o sucesso do programa, há indicadores que apontam para seus primeiros efeitos, como o desempenho positivo dos supermercados brasileiros mês a mês – mesmo com uma base de comparação alta herdada da pandemia. Em outubro, a alta nas receitas foi de 0,61% em comparação ao mesmo mês de 2022, segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Em julho, esse número chegou a 3,3%. A resposta dela seria que, sim, o projeto já dá mostrar de ter funcionando.

“Considerando que o Desenrola foi pensado para pessoas de baixa renda – e que o consumo delas é basicamente de itens essenciais –, o crescimento das vendas desse setor mostra um primeiro impacto. É um sinal de que elas estão voltando a consumir”, explica ela, que também é economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e tem se debruçado sobre os dados do programa desde a metade do ano.

Alguns dados do Ministério da Fazenda reforçam esse argumento, como a média alta de descontos nas renegociações, que ficaram em 90% nos casos de pagamento à vista, e nas várias reformatações de dívidas de consumo básico, como energia elétrica e água.

Ela nota efeitos na própria inadimplência: segundo o Banco Central, houve uma queda tímida de junho a setembro, deixando 6% das famílias na lista de inadimplentes (a pesquisa considera apenas crédito dentro do sistema financeiro, enquanto o estudo do CNC envolve dívidas diversas). Em junho, essa taxa beirava os 7%. “Ainda que seja uma variável pequena, ela já indica que o programa afetou o fenômeno de alguma forma. Conseguiremos saber melhor quando o governo divulgar os números oficiais”, completa.

O Ministério da Fazenda anunciou que vai adiar o fim do programa para março de 2024, entregando mais três meses para os brasileiros procurarem os bancos e renegociarem suas dívidas, aproveitando a ressaca do fim do ano. Se para Dietze é um indicador de que o Desenrola não teve a adesão esperada, para Julia Braga será o momento de avaliação mais oportuno. “É quando poderemos avaliar o Desenrola com mais precisão”, finaliza.

Autor: Vinicius Mendes

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