"Dar aula de educação financeira nas escolas públicas corrobora com o discurso da meritocracia e da culpabilização da pobreza." Ouvi algo parecido de uma colega de mestrado quando disse que seria importante haver a disciplina de educação financeira nas escolas.
No momento, confesso, eu não contra-argumentei e até me senti mal por ter proposto uma ideia do tipo. Poxa, cadê minha sensibilidade e meu tato da realidade? Me questionava, mas sentia, no fundo, que eu não estava tão equivocado assim.
Quero começar sinalizando um ponto bem importante para este texto: não sou um colunista de Faria Lima, como já fui chamado uma vez em um comentário. Sou nascido e criado no bairro com mais favelas da minha cidade. Conheço bem os sentimentos que a privação causa.
Meu ponto de provocação para esta coluna é que a abordagem sobre a educação financeira nos colégios não precisa ser oito ou 80, ou seja, não abordar o tema ou falar se pautando na meritocracia e na culpabilização do pobre pela própria pobreza. Há uma grande margem de trabalho entre esses dois polos.
Escassez gera o sentimento de privação
Sou graduado em economia pela USP e lembro de uma aula no início do curso, acho que era introdução à economia, o professor estava falando sobre os níveis de poupança de alguns países do mundo e frisava que no Brasil não há cultura de poupança.
Aquela frase me incomodou muito. Como assim poupar se a maioria do povo brasileiro ganha apenas o possível para a sobrevivência? Falei recentemente com uma amiga de infância que está com muita dificuldade no mercado de trabalho. Ela me relatou que comprou um creme de leite, quatro laranjas e se sentiu mal, pois gastou quase todo o dinheiro da semana. Tem meses em que, após pagar todas as contas, sobra para ela menos de R$ 100. Ela vai poupar o que?
O Brasil é um dos países com maior desigualdade de renda do mundo. Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) contínua mostram que a renda dos 10% mais ricos é 14 vezes maior do que a dos 40% mais pobres.
De um lado, temos um povo que, no geral, ganha apenas para a subsistência básica. De outro, um sistema capitalista e uma sociedade do consumo que se pauta em três pilares: crédito, publicidade e obsolescência programada.
A publicidade faz um excelente trabalho, inclusive neurológico, estimulando o desejo a produtos que não precisamos. Alinhado a isso, temos acesso fácil a um mercado de crédito que nos possibilita adquirir bens. Esses são, no entanto, propositalmente construídos para durar pouco. O resultado, em muitos casos, é uma vida de dívida após dívida.
Somos todos constantemente provocados por publicidades de viagens, bens, alimentos, serviços e lazer que nos brilham aos olhos, mas que não podemos adquirir. Claro que aqui cabe toda uma discussão sobre o fato de que não precisamos de verdade dessas coisas todas, mas esse não é o recorte da discussão.
Meu ponto é: a privação dói. Sei o que é passar semanas esperando o dia da pizza. Sei o que é precisar pedir para um amigo o dinheiro para comer um Mc Donalds. Sei o que é ver os pais pedirem o cartão da tia para comprar o tão sonhado material escolar. Sei o que é sonhar com andar de avião, com conhecer a praia, e com levar a família para passear e não poder.
Qual seria a abordagem de educação financeira nas escolas?
Dado todo o exposto até o momento, eu entendo quem vira os olhos com o discurso de educação financeira nas escolas. Seria uma maldade muito grande alguém chegar num colégio para fazer os alunos se sentirem mal sobre a pizza do final de semana ou sobre a vontade latente de comprar um tênis ou um celular.
Mas, ainda assim, precisamos ser honestos: o povo precisa sim de educação financeira. O que quero dizer? Sinto até hoje os impactos da privação de anos na forma como administro meu dinheiro. É incrível ganhar o primeiro salário e querer sair para comer fora várias vezes, proporcionar lazer para os sobrinhos, familiares e amigos, ir ao supermercado e comprar tudo o que sempre quisemos. O problema é quando seguimos com essa lógica com todos os outros salários.
É fato: eu compro muita coisa que não preciso. Vou gastando de pouco em pouco, sem qualquer tipo de estratégia ou controle e quando vejo, já é tarde demais. Digo com muita firmeza, eu adoraria ter tido algum tipo de educação financeira durante minha vida escolar. Sinto que me ajudaria hoje muito, enquanto adulto e alguém com alguma possibilidade de ascensão, a ter uma vida financeira mais saudável e confortável.
Vejo em minhas irmãs, amigos, conhecidos e também nas redes sociais o mesmo padrão. Quantos não se enrolam em prestações absurdas e com juros estratosféricos? Quantos não passam a vida saindo de uma dívida e entrando em outra? Tudo isso sem nem perceber, o que é mais triste ainda.
Muitos não sabem fazer contas básicas de juros, de prestações, de multas, de descontos e afins. Justamente por isso falham no planejamento e nas estratégias. O resultado é um ciclo vicioso que, não muito dificilmente, culmina em mais pobreza.
Portanto, é sim útil e necessário um projeto de educação e de conscientização financeira em toda a rede pública brasileira. Ele não precisa e nem deve ser pautado na meritocracia ou na culpabilização do povo pela própria situação. A ideia é um projeto pedagógico que parta da realidade da população.
O objetivo é munir o povo de noções básicas de juros, de parcelamento e seus pontos negativos e de instrumentos para um certo planejamento e conscientização acerca do próprio dinheiro e orçamento, independente do nível de renda. Não tenham dúvidas, ações tão simples quanto as descritas aqui podem salvar famílias, futuros e até vidas.
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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1
Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.
Autor: Vinícius De Andrade