Depois de reunir milhares de soldados ao longo da fronteira, a Rússia iniciou os ataques contra a Ucrânia, bombardeando a capital, Kiev, além de cidades no leste e no sul do país. A invasão russa pode se transformar no maior conflito militar em solo europeu em décadas. Mas por que a Rússia quer invadir a Ucrânia?
A invasão começou pouco antes do amanhecer desta quinta-feira (24). Putin justificou o ataque afirmando que seria uma “operação militar especial” para "desmilitarizar" a Ucrânia. O bombardeio começou enquanto o Conselho de Segurança da ONU realizava uma reunião de emergência.
Putin já reconheceu a independência das províncias separatistas de Luhansk e Donetsk, que ficam na fronteira. Com isso, a Rússia poderia usar a defesa das reivindicações territoriais para lançar uma invasão ao restante do território ucraniano, afirmando que está protegendo os dois “novos Estados”.
“O que nós temos hoje é claramente uma situação que era originalmente uma tentativa de colocar a Ucrânia sob o controle russo, que extrapolou para uma campanha [militar] muito mais ampla", explicou o ex-embaixador do Brasil em Kiev, Renato Marques, em entrevista ao BandNews TV.
Na avaliação de Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas), “o recado russo é de que a entrada da Ucrânia na Otan é completamente inaceitável da perspectiva russa”. “Se for garantido que a Ucrânia não fará parte da Otan, não entrará para a União Europeia e que o país terá um papel de neutralidade no Leste Europeu, assegurando as fronteiras da Rússia, não há razão para Moscou manter a presença militar na região”, avalia Casarões.
Hoje, parte da população ucraniana (e mais nacionalista) que vive na região ocidental do país apoia uma maior integração com a Europa, enquanto a comunidade do leste, principalmente de língua russa, defende laços mais estreitos com Moscou.
A Ucrânia era parte da extinta União Soviética até declarar independência em agosto de 1991. O país era parte estratégica da URSS –era a segunda mais populosa das 15 repúblicas soviéticas e concentrava grande parte da produção agrícola, industrial e dos aparatos militares da região, incluindo a Frota do Mar Negro e parte do arsenal nuclear soviético.
Mas os dois países possuem laços históricos que datam de séculos atrás e remetem à própria fundação de Kiev, a capital ucraniana, e das cidades russas.
Com o fim da União Soviética, a Ucrânia tinha o 3º maior arsenal atômico do mundo, embora não tivesse o controle operacional destas armas nucleares. Na década de 1990, EUA e Rússia trabalharam para desnuclearizar o país --Kiev abriu mão de suas ogivas nucleares para a Rússia, com garantias de que não seria atacada e suas fronteiras seriam respeitadas.
Com o colapso da URSS, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) iniciou a sua expansão para o leste, incorporando países ex-soviéticos, como Lituânia, Letônia, Estônia, além de Polônia, Romênia e outros países próximos da Rússia. Em 2008, quando autoridades da Otan sugeriram a entrada da Ucrânia, uma linha foi cruzada para Putin, já que o país era considerado área de influência russa.
Em seu discurso que reconheceu a independência das províncias separatistas ucranianas, Putin descreveu a desintegração soviética como uma catástrofe que tirou da Rússia o direito de estar entre as grandes potências do mundo.
Em suas mais de duas décadas no poder, Putin investiu na reconstrução das Forças Armadas da Rússia e na reafirmação da influência geopolítica do Kremlin. Ele insiste que a Ucrânia é fundamentalmente parte cultural e histórica da Rússia.
Putin quer garantias de que a Ucrânia e a Geórgia --outra ex-república soviética invadida pela Rússia em 2008-- não serão parte da aliança militar atlântica formada por 30 países. O presidente russo afirma que a expansão da Otan é uma ameaça existencial ao seu país.
O tratado que constituiu a criação da Otan afirma que um ataque a qualquer país integrante aliança é tratado como uma ameaça ao grupo todo. Isso significa que qualquer movimento militar russo contra uma hipotética Ucrânia dentro da Otan colocaria o Kremlin em conflito com os EUA, o Reino Unido, a França e outros países europeus.
Hoje a Ucrânia é quarto maior receptor de financiamentos militares dos EUA, e os serviços de inteligência dos dois países cooperam ativamente.
Por que a Rússia ameaça a Ucrânia desta vez?
A atual crise entre Rússia e Ucrânia é uma sequência do conflito iniciado em 2014 --na ocasião, Moscou ocupou a Crimeia. Mas os recentes acontecimentos políticos na Ucrânia, nos EUA, na Europa e na Rússia ajudam a explicar o motivo pelo qual Putin elevou o tom agora.
Em 2014, protestos derrubaram o presidente ucraniano aliado de Moscou Viktor Yanukovych. Rapidamente, a Rússia invadiu e anexou a Crimeia, região da Ucrânia onde fica a base naval russa de Sevastopol e a Frota do Mar Negro.
Na ocasião, o Kremlin também fomentou as rebeliões separatistas de grupos pró-Russia em parte da região de Donbas, na fronteira entre Rússia e Ucrânia –conflito que já matou quase 15 mil pessoas. Este já é o conflito mais sangrento desde as guerras dos Balcãs, nos anos 1990, de acordo com o Council on Foreign Relations, think thank com sede nos EUA.
Foi durante os confrontos de 2014 que um avião da Malaysia Airlines com quase 300 pessoas a bordo foi derrubado por um míssil. Investigações apontaram que a aeronave foi derrubada por um projétil lançado por movimentos separatistas.
Os acordos de Minsk, assinados em 2014 e 2015, previam um cessar-fogo entre o governo ucraniano e os separatistas apoiados pela Rússia, definindo um plano para as eleições nas regiões separatistas de Luhansk e Donetsk, dando um status especial, com mais autonomia para as duas províncias e, ao mesmo tempo, reintegrando-as ao controle da Ucrânia.
Mas a Rússia sempre apostou que os acordos de Minsk trariam as repúblicas separatistas para sua esfera de influência, visto que os governos locais –separatistas-- são alinhados ao Kremlin. Assim, uma restauração do controle por parte de Kiev ficaria inviável. Mas o acordo nunca foi colocado em prática.
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Assim como a Crimeia, Luhansk e Donetsk são duas regiões ucranianas cuja maioria da população é etnicamente russa –em algumas áreas, o russo é o idioma predominante. Além disso, a intervenção da Rússia na Ucrânia em 2014 provou ser imensamente popular entre a população, elevando os índices de aprovação de Putin acima de 80%.
Para a Europa e os EUA, as ações na Ucrânia são importantes porque funcionam como um indicador da influência e das intenções russas no resto da Europa, segundo explica o jornal The New York Times. O país não faz parte da União Europeia, mas recebe apoio financeiro e militar dos europeus. Neste caso, se a Rússia iniciasse uma guerra na Ucrânia, poderia ser um sinal de que Putin estaria disposto a ameaçar outras outras ex-repúblicas soviéticas que hoje são integrantes da aliança atlântica, como Estônia, Letônia e Lituânia.
O que é o gasoduto russo Nord Stream 2?
Entre as sanções anunciadas pelos europeus pela decisão russa de reconhecer a independência das províncias separatistas ucranianas, o chanceler alemão Olaf Scholz suspendeu a permissão para a abertura do gasoduto Nord Stream 2. Até agora, Berlim resistia em pausar o projeto, apesar da forte pressão dos Estados Unidos e de alguns países europeus.
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A Rússia depende há décadas dos oleodutos que passam pela Ucrânia para bombear gás natural para clientes na Europa, e paga bilhões de dólares por ano em taxas de trânsito para Kiev. No entanto, no ano passado, Moscou concluiu a construção de seu gasoduto Nord Stream 2, que corre sob o Mar Báltico até a Alemanha. Ele foi construído paralelamente ao Nord Stream, que está funcionando desde 2011.
De acordo com a BBC, juntos, esses dois gasodutos podem fornecer 110 bilhões de metros cúbicos de gás para a Europa todos os anos. Isso é mais de um quarto de todo o gás que os países da União Europeia usam anualmente.
Embora a Rússia ainda vá utilizar os gasodutos que passam pela Ucrânia pelos próximos anos –até mesmo décadas—o temor é de que o Nord Stream 2 poderia permitir que a Rússia tenha maior influência geopolítica na Europa. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, afirma que o Nord Stream 2 é "uma arma política perigosa".