Por que a decisão da Fifa de sediar Copa 2034 na Arábia Saudita gera polêmica

Reino do Golfo foi escolhido pela Fifa para receber o mundial masculino de futebol – apesar de histórico problemático de violações de direitos humanos, liberdade de expressão e direitos trabalhistas.

Por Deutsche Welle

A confirmação da Arábia Saudita nesta quarta-feira (11/12) como sede da Copa do Mundo de 2034 pela Fifa alarmou defensores dos direitos humanos e trabalhistas dentro e fora do reino do Golfo.

A proposta saudita foi avaliada pela Fifa com uma nota recorde de 419,8 de um total de 500 pontos possíveis.

A situação dos direitos humanos no país do Oriente Médio foi avaliada como de "médio" risco pela entidade, apesar de diversas organizações de direitos humanos terem apresentado tanto à Fifa quanto às autoridades sauditas evidências que contam uma história bem diferente.

Lina al-Hathloul, chefe de monitoramento e advocacy na ALQST, organização saudita de direitos humanos, diz que o mundo não deveria se deixar distrair da real situação no país por um torneio esportivo.

Segundo ela, "todo mundo sabe" que para ir parar na prisão basta dizer algo que soe diferente de um "aplauso às autoridades".

"Você não conseguirá ouvir vozes reais sauditas de dentro do país, porque a autocensura se tornou regra", diz à DW. "Então, é muito importante ouvir a gente, ouvir o que temos a dizer, e ser solidário com os prisioneiros políticos sauditas e todos que são vítimas das autoridades sauditas."

Críticos veem falhas em relatório "independente" sobre direitos humanos na Arábia Saudita

A AS&H Clifford Chance, uma associação entre dois escritórios de advocacia sauditas, foi contratada para produzir um relatório independente à Fifa sobre a situação de direitos humanos no país.

A análise considerou apenas 22 instrumentos internacionais de direitos humanos, escolhidos em comum acordo com a Fifa e a Federação Saudita de Futebol (SAFF, na sigla em inglês), e se baseou fortemente em padrões estabelecidos por leis nacionais – que frequentemente estão em descompasso com padrões globais de direitos humanos, especialmente no que diz respeito aos direitos das mulheres, à liberdade de expressão, aos direitos de pessoas LGBTQ+ e ao tratamento de trabalhadores imigrantes.

Na prática, o escopo limitado da análise também significou a desconsideração de diversos problemas, como desaparecimentos forçados e violações de direitos trabalhistas – que, na avaliação da ONG Human Rights Watch, equivalem ao que no Brasil é definido como trabalho análogo à escravidão.

Segundo Al-Hathloul, cuja irmã foi presa na Arábia Saudita por lutar pelos direitos das mulheres de dirigir, a Fifa e a AS&H Clifford Chance não consultaram diretamente nenhuma organização de direitos humanos para a confecção do relatório.

"Está se tornando um padrão realmente não consultar organizações de direitos humanos", lamenta a ativista, que acusa a Arábia Saudita de não se abrir ao escrutínio dessas entidades.

"A ALQST é uma das poucas organizações restantes que realmente conseguem obter informação in loco, porque até mesmo entrar em contato com organizações de direitos humanos é algo criminalizado e considerado um ato terrorista."

Fifa é acusada de se "esquivar" de suas responsabilidades

Em 2016, a Fifa aderiu aos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos e incluiu a responsabilidade de respeitar os direitos humanos no Artigo 3 de seu estatuto.

Na época, a entidade foi elogiada por ser o primeiro órgão esportivo global a se comprometer com os direitos humanos. O gesto deveria ter desencadeado um processo de análise dos riscos de direitos humanos relacionados aos torneios que a entidade promove, além de garantir que os países interessados em sediá-los explicassem claramente como reagiriam a esses riscos.

Mas o chefe de Direitos Trabalhistas e Esporte da Anistia Internacional, Stephen Cockburn, aponta que os processos de escolha das sedes das Copas do Mundo de 2030 e 2034, ambos com candidaturas únicas, podem ter ajudado a Fifa a se esquivar dessas responsabilidades.

"Sempre dissemos que a Arábia Saudita tem, como qualquer outro país, o direito de se candidatar a uma Copa do Mundo", frisa Cockburn. "Mas também precisa cumprir os padrões de direitos humanos esperados de outros países candidatos."

Segundo ele, a análise dos documentos de candidatura e das estratégias de direitos humanos apresentadas revela claramente "falhas profundas". "Não identificam os riscos e não os enfrentam adequadamente", pontua.

Para Cockburn, a Fifa colaborou para essa situação ao organizar "desde o início" processos com candidaturas únicas para as Copas do Mundo de 2030 e 2034. "Não houve consultas e não foram estabelecidos padrões mínimos reais", afirma.

"Ver a Arábia Saudita receber uma avaliação de risco médio e ainda assim obter uma pontuação tão alta é algo que descrevemos como uma impressionante maquiagem dos fatos. Agora, temos que continuar trabalhando para pressionar a Fifa e a Arábia Saudita. Do contrário, os custos humanos serão reais e enormes."

Quase 900 trabalhadores imigrantes mortos em seis meses

Estima-se que haja cerca de 13,4 milhões de trabalhadores migrantes na Arábia Saudita, número que deve aumentar substancialmente com os planos para construção de 11 novos estádios e reforma de outros quatro ao longo dos próximos 10 anos.

Baseando-se em dados governamentais, a Human Rights Watch aponta que entre janeiro e julho deste ano, muito antes de a Arábia Saudita ser oficialmente escolhida como sede da Copa do Mundo, o país já havia registrado 884 mortes de trabalhadores vindos de Bangladesh.

A Arábia Saudita tem poucas leis trabalhistas e não prevê salário mínimo para migrantes, que frequentemente chegam ao país já devendo a recrutadores.

Além disso, o sistema de Kafala, um regime de vistos praticado em vários países do Golfo, mantém os migrantes dependentes de seus patrocinadores, mesmo quando sofrem abusos.

O sistema é famoso por conceder controle quase total aos patrocinadores — que podem ser empresas ou cidadãos privados — sobre o emprego e o status migratório dos trabalhadores. Nele, patrocinadores podem reter os passaportes de empregados e decidir por conta própria sobre o pagamento e as condições de trabalho.

"Se pessoas do Ocidente estivessem entre os trabalhadores mortos, acho que ouviríamos falar muito mais sobre isso", afirma al-Hathloul. "Acho que a maioria dos países teria votado contra [a candidatura saudita à Copa do Mundo] se os prisioneiros políticos não fossem necessariamente árabes e sauditas."

"Estamos pedindo que vocês nos ouçam, se solidarizem conosco e diferenciem entre o povo e as autoridades", apela a ativista.

Arábia Saudita minimiza preocupações com direitos humanos

A Arábia Saudita não respondeu ao pedido da DW para comentar as críticas à candidatura do país à Copa do Mundo.

Em entrevista recente à agência de notícias Reuters, o chefe da candidatura saudita, Hammad Albalawi, dispensou essas preocupações: "Avançamos muito e ainda há um longo caminho a percorrer. Nosso princípio é desenvolver algo que seja adequado para nós", disse. "Nossa jornada começou em 2016, não por causa da candidatura à Copa do Mundo."

Outros dentro do país parecem indiferentes às críticas. Salman Al-Ansari, um analista político saudita proeminente, insiste que qualquer problema será esquecido quando o torneio começar.

"A Copa do Mundo de 2022 no Catar ensinou ao mundo que as acusações frequentemente desaparecem, enquanto as conquistas permanecem", diz à DW. "A Arábia Saudita usará essa oportunidade para mostrar sua jornada transformadora, quebrando estereótipos e unindo fãs globalmente sob a bandeira do espírito esportivo e da troca cultural."

Autor: Kalika Mehta (com colaboração de Mohamed Farhan)

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