Em suas muito debatidas Reflexões sobre a guilhotina, de 1957, o Nobel de Literatura Albert Camus fez críticas e argumentou vigorosamente contra as execuções, penalidade abolida oficialmente na França apenas em 1981.
Para o escritor e filósofo francês, a pena capital não era um meio de justiça, mas uma expressão de vingança e retaliação. Se analisarmos os números mais recentes da Anistia Internacional (AI) com isso em mente, podemos concluir que a justiça global atravessa tempos difíceis.
De acordo com o relatório anual da ONG de direitos humanos, pelo menos 1.153 pessoas foram executadas no mundo no ano passado: decapitadas, enforcadas, baleadas ou envenenadas. A cifra equivale a um aumento de 31% em relação a 2022, quando foram contabilizadas 883 execuções. É o maior número "que a Anistia Internacional registrou em quase uma década” e o mais alto desde 2015, quando houve 1.634 execuções.
China à frente do Irã e da Arábia Saudita
Dos 16 países que realizaram execuções, apenas alguns são responsáveis pelo extremo aumento de casos: o Irã responde por quase três quartos (853) de todas as execuções, e a Arábia Saudita, por 15% (172). A Somália (ao menos 38) e os EUA (24) também executaram mais sentenças de morte que no ano anterior. O número de novas sentenças de morte decretadas no mundo aumentou em 20%, chegando a 2.428 em 52 países.
A Anistia Internacional acredita que a maior quantidade de execuções aconteça da China. Devido ao sigilo estatal imposto por Pequim, o relatório sobre pena de morte não contém nenhuma informação sobre as possíveis milhares de pessoas executadas no país. O mesmo se aplica à Coreia do Norte e ao Vietnã, que também são suspeitos de realizar execuções em larga escala.
"O aumento dramático das execuções em todo o mundo é chocante. Os números da Anistia Internacional mostram apenas a ponta do iceberg, pois não há dados precisos disponíveis em alguns países", diz Renata Alt, avaliando as estatísticas de mortes. Deputada do Partido Liberal Democrático (FDP) , ela é a presidente do Comitê de Direitos Humanos e Ajuda Humanitária do Parlamento alemão.
"Execuções sanguinárias"
Para a AI, um ponto positivo é fato de ter havido uma queda na quantidade de países em que foram executadas penas de morte. "Cada vez mais países abandonam a essa prática cruel", relata Julia Duchrow, secretária-geral da AI na Alemanha. O número de países caiu de 20 em 2022 para 16 em 2023, sendo que Belarus, Japão, Mianmar e Sudão do Sul não tiveram mais registros. Até o momento, 144 países aboliram a pena de morte.
No entanto, em alguns outros países foram realizadas ainda mais execuções, "de modo que não houve apenas uma ou duas execuções por país, mas números de execução de dois a três dígitos”, diz Max Meißauer para a DW. O especialista em pena de morte da Anistia Internacional da Alemanha ainda reporta que "em alguns países, as execuções assumiram proporções quase sanguinárias”.
Outro motivo para o aumento: o fim da pandemia de covid-19. "Durante a pandemia, o número de execuções caiu em todo o mundo devido às precauções sanitárias nas prisões”, explica Meißauer. "Também havia menos recursos materiais para a prática, fazendo com que as execuções não fossem mais prioridade. Isso não se aplica mais em 2023.”
Pena capital como meio de opressão
Alguns países também usam a pena de morte como um instrumento político. "As execuções públicas sempre foram um meio de repressão política e dissuasão social”, diz Meißauer. Isso é acentuado no Irã. De acordo com o relatório, as autoridades do país estão usando cada vez mais a pena de morte para amedrontar a população e se consolidarem no poder.
Das execuções, mais de 60% foram realizadas por delitos que não deveriam ser punidos com a pena de morte, de acordo com o direito internacional, incluindo, crimes relacionados a drogas. Houve pelo menos 246 execuções no Irã em 2020, diz Meißauer. "Em nosso relatório atual, houve agora mais de 853 no país. Esses são números que representam quase em crescimento exponencial.”
Em entrevista à DW, Renata Alt, presidente do Comitê de Direitos Humanos, pede que a União Europeia exerça mais pressão sobre o regime dos mulás iranianos. "Infelizmente, os membros da UE nem sempre estão de acordo, caso contrário, a UE já teria colocado a Guarda Revolucionária do Irã em sua lista de terroristas há muito tempo", afirma Alt.
No entanto: "Graças à pressão pública e ao apoio financeiro de políticos do Ocidente, foi possível obter perdão para alguns dos condenados à morte", diz Alt.
Confissões por meio de tortura na Arábia Saudita
Do outro lado do Golfo Pérsico, na Arábia Saudita, o país com o terceiro maior número de execuções, a situação só melhorou à primeira vista, de acordo com ativistas de direitos humanos. Embora o número de sentenças de morte executadas tenha caído 12%, chegando a 172, o relatório da Anistia afirma que os réus confessaram serem culpados por meio de tortura e que as sentenças de morte foram proferidas contra a lei internacional e após processos injustos.
Por exemplo, no caso de Mohammad al-Ghamdi. O ex-professor foi condenado à morte em julho de 2023. Seu crime: publicações nas mídias sociais que criticavam o governo. A Arábia Saudita foi o único país a decapitar pessoas com espada no ano passado.
Meißauer ressalta que também há execuções para crimes que tem conceitos muito vagos no Irã e na Arábia Saudita. Isso significa que, embora a lei descreva o crime, ela não o especifica todos os detalhes. Isso deixa uma grande margem de interpretação para os tribunais. "Por exemplo, há uma pena de morte para o crime de "inimizade contra Deus". Ou, como Cingapura, tema de destaque no ano passado, onde houve tentativas de controlar o problema das drogas por meio do uso excessivo da pena de morte", explica Meißauer.
Preocupação com os EUA e a África Subsaariana
A Anistia Internacional também está preocupada com os EUA, onde o número de execuções aumentou de 18 para 24. Projetos de lei foram apresentados nos estados americanos de Idaho e Tennessee para permitir execuções por fuzilamento, enquanto Montana está considerando expandir a lista de substâncias usadas para injeções letais.
Uma tendência que parece estar se mantendo este ano. "Em janeiro, Kenneth Smith foi morto pelo método de asfixia por gás nitrogênio no estado do Alabama, 14 meses depois de sobreviver a uma tentativa de execução fracassada", de acordo com o Relatório de Pena de Morte da Anistia Internacional.
A Somália ocupa o quinto lugar nas estatísticas de pena de morte. A Anistia Internacional registrou um "aumento dramático dos números das execuções": de seis, em 2022, foram para 38, em 2023. Na região da África Subsaariana, as sentenças de morte registradas aumentaram "drasticamente" em 66%: 494 vidas foram ceifadas.
Diplomacia na luta contra a pena de morte
A Alemanha tenta exercer pressão sobre os países com pena de morte, principalmente em conversas bilaterais, por meio de notas oficiais de protesto e levantando a questão da pena de morte durante visitas de Estado e reuniões internacionais. Mas, isso não é suficiente para a Anistia Internacional. "Gostaríamos que o governo alemão desse ainda mais importância à luta contra a pena de morte e que fizesse o acompanhamento com consequências diplomáticas claras no caso dos países que ainda a aplicam", diz o especialista de direitos humanos Meißauer.
Ele também concorda com Albert Camus. "As pessoas tentam dar à pena de morte a aparência de justiça. Mas, na realidade, trata-se de satisfazer os instintos mais animalescos da sociedade. Não tem nada a ver com justiça. É e continua sendo vingança."
Autor: Ralf Bosen