Marina Silva: 'Parece que a UE ainda trata governo Lula como se fosse Bolsonaro'

Ministra destaca queda no desmatamento e critica novas exigências da União Europeia para concluir acordo com o Mercosul

Por Deutsche Welle

Marina Silva: 'Parece que a UE ainda trata governo Lula como se fosse Bolsonaro'
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente
Adriano Machado/Reuters

Para a ministra brasileira do Meio Ambiente, Marina Silva, a União Europeia (UE) continua negociando a conclusão do acordo de livre comércio com o Mercosul como se o Brasil ainda fosse governado por Jair Bolsonaro. Ela avalia que as novas metas ambientais exigidas pelo bloco europeu são baseadas numa premissa equivocada de que a maior economia da América do Sul continua a não ter compromissos sérios na área.

"Parece que os governos da União Europeia ainda estão tratando o governo do presidente Lula, nesse aspecto, como se fosse o governo Bolsonaro (...). Mas agora nós temos um governo que tem resultados ambientais altamente relevantes e tem o compromisso com o Acordo de Paris na sua total implementação”, argumenta Marina.

Uma das evidências nesse sentido, diz Marina, é a queda de 48% no desmatamento da Amazônia nos primeiros oito meses de 2023. Bolsonaro encerrou seu governo com aumento de 59,5% da taxa de destruição no bioma em relação aos quatro anos anteriores.

O resultado, segundo a ministra, foi possível devido ao retorno das ações de comando e controle e da sinalização política dada já nos primeiros dias do novo governo Lula. A fiscalização em campo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o fim da militarização dessas atividades influenciaram o cenário, aponta Marina.

"Os militares eram completamente ineficientes. [...] Se você fizer um levantamento do que foi gasto com aquelas operações, pelo vice-presidente [Hamilton] Mourão, e o que foi gasto agora com as operações do Ibama, a eficiência é incomparavelmente maior. Eles usavam muitos recursos e [não havia] nenhum resultado porque o desmatamento só crescia.”

DW Brasil: Nos primeiros seis meses de 2023, a queda do desmatamento na Amazônia foi perceptível, acima dos 40%. A que deve essa mudança de cenário?

Marina Silva: É um conjunto de fatores que, combinados, levam a resultados que mostram que políticas públicas bem desenhadas, bem implementadas, dão certo.

Começamos o governo já com uma série de medidas que deveriam ser tomadas no primeiro dia de governo, que foram os decretos assinados pelo presidente Lula. Dos dez decretos que ele assinou, cinco eram da área de meio ambiente. Isso é uma sinalização forte e concreta da importância que a agenda ambiental tem para o governo. Essa sinalização política, por si só, já tem um efeito de dissuadir aqueles que estavam acostumados com um governo que incentivava o crime ambiental e enfraquecia as instituições públicas e os agentes de proteção ambiental.

Um outro aspecto importante foi a retomada do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia [Ppcdam], que foi restabelecido em tempo recorde.

O Ibama entrou em campo com o apoio de outros órgãos do governo e aumentou em quase 200% a sua capacidade de fiscalização. Uma coisa é um Ibama sendo pressionado, assediado pelo governo anterior; outra coisa é o Ibama sendo apoiado e suportado para o cumprimento das suas responsabilidades institucionais e sem nenhum tipo de constrangimento.

Tem ainda um terceiro fator. Havia um processo de militarização da política ambiental que não era eficiente. Completamente ineficiente. Os militares podem ser bons para suas atribuições constitucionais, mas eles não entendem de meio ambiente. Quem entende de como se faz um auto de infração, de como se planeja uma ação de fiscalização é o Ibama. Essa competência antes estava sendo substituída por quem não tinha expertise para isso.

Se você fizer um levantamento do que foi gasto com aquelas operações, pelo vice-presidente Mourão, e o que foi gasto agora com as operações do Ibama, a eficiência é incomparavelmente maior. Eles usavam muitos recursos e [não havia] nenhum resultado porque o desmatamento só crescia.

A senhora é favorável ao acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia?

Eu sou favorável. É importante que os blocos econômicos regionais possam se suplementar em atividades comerciais. O que nós precisamos é fechar o acordo, porque ele estava praticamente fechado no governo Bolsonaro, que não tinha nenhum compromisso, nem ações, nem resultados na área ambiental – e muito menos com o Acordo de Paris. Agora nós temos um governo que tem compromissos ambientais sérios, tem resultados ambientais altamente relevantes e tem o compromisso com o Acordo de Paris na sua total implementação.

O acordo precisa ser finalizado até para dar coerência ao discurso de preocupação com as mudanças no clima. Porque se é justo para os países desenvolvidos fazerem a transição sem os efeitos indesejáveis, que levam à perda de emprego e de qualidade de vida das pessoas, é igualmente justo para os países em desenvolvimento. E a forma de conseguirmos evitar os efeitos indesejáveis é abrindo mercado para os produtos da nossa economia.

Já estamos trabalhando para que a agricultura seja de baixo carbono, dando incentivo aos produtos da bioeconomia, para o uso correto e sustentável dos nossos recursos florestais, tanto madeireiros quanto não madeireiros e, sobretudo, a grande possibilidade que o Brasil tem de ser um grande exportador de energia limpa, com hidrogênio verde.

O acordo está travado no momento e um dos motivos é a carta que a União Europeia enviou para o Mercosul, uma side letter, fazendo novas demandas ambientais. Como a senhora recebeu essas demandas novas da UE? E como avalia a contraproposta que será enviada pelo Mercosul?

Parece que os governos da União Europeia ainda estão tratando o governo do presidente Lula, nesse aspecto, como se fosse o governo Bolsonaro. Os governos [da EU] iam ver o fechamento do acordo num contexto completamente desfavorável ao Acordo de Paris, à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas. O presidente Lula tem um compromisso com a questão da mudança climática, com o Acordo de Paris, que não é só retórico. Ele está sendo realizado na prática. Nós estamos liderando pelo exemplo.

Nós acabamos de reduzir o desmatamento nesses oito primeiros meses em 48%. Nós acabamos de evitar lançar na atmosfera 196 milhões de toneladas de CO2 em função dessa redução do desmatamento.

Há uma divergência em relação ao fato de que a UE, que tem seus mecanismos de aferição em relação ao desmatamento, que é legítimo, internamente dentro de seus países. Mas, no Brasil, o órgão que faz a aferição do que é desmatamento legal e ilegal é o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele tem uma série histórica de avaliação da dinâmica do desmatamento na Amazônia e em todos os biomas brasileiros, que é reconhecida como técnica e cientificamente adequada pelo mundo inteiro.

Não faz sentido para o Brasil, que já viu o mundo inteiro mencionar os dados do Inpe, que esses mesmos dados só sirvam para um aspecto. E não sirvam para a aferição se aquela produção vem de área de desmatamento legal ou ilegal. É uma contradição que o Brasil obviamente não aceita, porque isso seria uma desqualificação da ciência brasileira.

O presidente Lula, logo após a Cúpula da Amazônia, mencionou que as pessoas poderiam "continuar sonhando” com a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. É possível combinar proteção ambiental, desenvolvimento sustentável e explorar petróleo na região? Por que investir numa fonte fóssil nesse momento de crise climática?

Em primeiro lugar: é uma contradição. Mas ela não é só do Brasil. É uma contradição do mundo. A China está empenhada em resolver o problema da mudança do clima. Os EUA também. A União Europeia também. O Reino Unido também. O Japão, o Canadá. Mas todos ainda não conseguiram substituir as fontes fósseis por fontes renováveis.

O mundo ainda não consegue prescindir 100% da energia fóssil. A diferença é que o Brasil pode ter uma matriz energética 100% limpa. O presidente Lula tem dito reiteradas vezes que trabalha para que a nossa matriz energética seja 100% limpa. Agora, nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ele reencaminhou os projetos que são de alto impacto ambiental para estudos e não para fazerem parte direto das obras do PAC. Projetos como Angra 3, Ferrogrão, BR-319 e Margem Equatorial foram encaminhados para estudos.

Não há uma contradição em termos políticos. Há um esforço muito grande para que se aumente cada vez mais a energia limpa na nossa matriz energética, que já é mais de 40% limpa e, ao mesmo tempo, uma busca para que o Brasil seja grande fornecedor de energia limpa para o mundo. Usar a energia limpa que nós já temos para produzir hidrogênio verde.

E para mim, o que foi muito corajoso da parte do governo foi o fato de ter encaminhado para estudos e não colocado nas obras do PAC como projetos a serem já implementados.

O Brasil reativou este ano o Fundo Amazônia. Além disso, os países ricos também prometeram doar US$ 100 bilhões por ano para o Fundo Verde do Clima, embora isso ainda esteja no campo da promessa. Qual deve ser a contribuição dos países mais ricos para a proteção dos biomas tropicais e o combate às mudanças climáticas? A senhora acha que os mecanismos existentes são eficazes?

O Fundo Amazônia é um fundo privado dentro de um banco público, em que o pagamento é feito por resultados alcançados. Essa arquitetura nós desenhamos ainda quando eu estava no primeiro governo Lula. Criamos um mecanismo altamente inovador em que você faz uma doação para o resultado já alcançado.

Conseguimos, com o Ppcdam, reduzir o desmatamento em 83% por quase uma década. Isso nos deu a possibilidade de captar algo em torno de 20 bilhões de dólares para o Fundo Amazônia.

Nós conseguimos uma captação com a Noruega e a Alemanha de R$ 3 bilhões. Agora, com as novas captações que conseguimos, coincidentemente no governo do presidente Lula e na minha gestão, praticamente iremos dobrar o fundo quando esses recursos foram internalizados. Com o dinheiro da Alemanha, do Reino Unido e dos Estados Unidos, recursos que virão também da EU e outros que já estão, digamos assim, com compromissos assumidos, iria para 6 bilhões. Mas é um fundo não retornável, com pagamento para resultados alcançados em investimentos na área de proteção e desenvolvimento sustentável, pesquisa, tecnologia e inovação.

Em relação ao aporte de recursos que o mundo se comprometeu a fazer a partir da Conferência do Clima de Copenhague (2009), de alocação de recursos da ordem de US$ 100 bilhões por ano para a transição ecológica, sobretudo para países vulneráveis, países em desenvolvimento, é insuficiente. Os mecanismos podem ser aperfeiçoados, não tenho dúvida.

Mas o que precisa ser realizado é o compromisso assumido. Nós não estamos conseguindo o aporte de recursos que foi anunciado pelos países desenvolvidos. Ainda há uma complexidade muito grande para poder acessar o pouco recurso que se tem.

Quando a gente olha para o compromisso de estabilizar o aumento da temperatura global em no máximo 1,5°C, os investimentos que estão sendo feitos para mitigar e adaptar são insuficientes. É assustador porque a conta não fecha. Há uma insuficiência no cumprimento dos compromissos assumidos.

O presidente Lula vai para a Alemanha em dezembro. Qual deve ser a mensagem que ele levará, ou as exigências, as intenções no que diz respeito à colaboração na proteção ambiental, especialmente da Amazônia?

O Brasil deve priorizar a cooperação histórica que nós temos com o governo alemão. E essa cooperação tem rendido muitos frutos para a proteção do meio ambiente. Desde o Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7) a Alemanha era um parceiro importante.

Provavelmente, haverá o anúncio dos recursos que a Alemanha vai aportar novamente para o Fundo Amazônia e uma discussão mais estratégica de como fazer o enfrentamento da mudança do clima.

O Brasil, junto com a Indonésia e com a República Democrática do Congo são países mega florestais. Então nós temos que pensar num mecanismo inovador de como o mundo vai aportar recursos em um fundo, talvez, para a proteção dessas florestas, que são fundamentais para o equilíbrio do planeta.

O Brasil está fazendo a sua parte. Eu sei que vários países estão fazendo seus programas de transformação ecológica, mas eles precisam ser acelerados, porque não dá pra imaginar que nós vamos apenas adaptar o modelo insustentável de desenvolvimento que nos levou a essa crise ambiental sem precedentes.

Uma outra coisa importante é que é preciso que haja um alinhamento com esse novo ciclo de prosperidade de base sustentável, o enfrentamento das desigualdades sociais.

A transformação não é só econômica. Tem que ser uma transformação social. O presidente Lula tem insistido muito: nós não podemos criar um novo ciclo de prosperidade deixando os pobres para trás, deixando as mulheres para trás e os indígenas, os jovens. O novo ciclo de prosperidade tem que ser mais inclusivo, assimilando conceitos novos, como o caso da justiça climática e do racismo ambiental, porque é sobre as populações vulneráveis da África, da Ásia, da América Latina, do Caribe, que recaem as maiores consequências das mudanças do clima.

Autor: Astrid Prange, Bruno Lupion, Nádia Pontes

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