“Paraíso da impunidade”, dizem atingidos de Mariana sobre absolvição de empresas

Nove anos após o rompimento da barragem da Samarco, Vale e BHP, com 19 mortes imediatas e contaminação do rio Doce, Justiça livra empresas e 22 pessoas de responsabilização criminal. Ministério Público irá recorrer.

Por Deutsche Welle

O decisão da Justiça Federal que absolveu as empresas Samarco, Vale e BHP Billiton das acusações de crimes ambientais e outros delitos pelo rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, pegou os atingidos de surpresa.

Depois de nove anos do desastre, ocorrido em 5 de novembro de 2015, a sentença foi publicada na madrugada desta quinta-feira (14/11) e absolveu as três mineradoras, uma empresa de geotecnia e 22 pessoas que figuravam como réus.

Segundo a juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho, as acusações são improcedentes, as provas reunidas no processo são falhas e não há como ligar possíveis riscos apresentados pela estrutura da barragem ao seu colapso, que matou 19 pessoas imediatamente. À DW, o Ministério Público Federal em Minas Gerais informou que vai recorrer.

Ao saberem do desfecho dado pela Justiça, muitos atingidos ouvidos pela reportagem disseram sentir uma mistura de revolta, tristeza e choque. Estima-se que até 700 mil pessoas tenham sido impactadas pelo colapso da estrutura, que despejou 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos no ambiente. Os restos da mineração escorreram pelo rio Doce até o Atlântico, na costa do Espírito Santo. É como se 1,3 milhão de contêineres marítimos cheios de lama tivessem sido despejados numa avalanche.

"É muita tristeza. Aquilo foi um crime, todos tinham que estar na cadeia. Foi um crime premeditado, porque as empresas sabiam que ia romper", diz José do Nascimento de Jesus, seu Zezinho, como é conhecido.

Ele era um dos moradores do distrito Bento Rodrigues, o mais próximo à barragem e o mais destruído. "Eles mataram 19 pessoas e poderia ter sido muito mais. Só não foi pior porque nós mesmos nos salvamos. É o paraíso da impunidade."

"Como assim eles não são culpados?"

A decisão da Justiça saiu enquanto muitas pessoas que viviam ao longo do rio Doce ainda buscam serem reconhecidas como vítimas. É o caso de moradores do Quilombo 14, em Naque, a 260 quilômetros de Mariana. Os moradores relatam dificuldade de acesso à água, empobrecimento e ausência de qualquer reparação.

"Não acredito! Como assim eles não são culpados?", reagiu Geraldo Batista Rodrigues, morador do quilombo, quando soube da absolvição, ao ser questionado pela DW.

Segundo Rodrigues, os produtos e alimentos feitos pela comunidade são rejeitados até hoje por consumidores, que têm medo de uma possível contaminação. "A gente está nas conversas, nas reuniões, mas nunca recebemos auxílio", diz.

No Espírito Santo, muitos casos de pessoas atingidas desde a tragédia foram registrados pela Defensoria Pública do estado. "Compartilhamos o sentimento de frustração das comunidades atingidas. Processos de reparação sem responsabilização clara, concreta e célere, como, infelizmente, ocorreu no desastre do rio Doce, enfraquecem o sistema de Justiça", diz à DW Rafael Portella, defensor público.

"Presente para as empresas"

Os técnicos das assessorias independentes nomeadas pela Justiça para ajudar moradores nas zonas impactadas em busca de reparação ouvidos pela DW se dizem frustrados com a sentença.

"É um presente para as empresas nove anos depois do desastre", declara Rodrigo Pires Vieira, da Cáritas de Mariana, que presta assessoria técnica na região desde outubro de 2016. "É uma impunidade muito bem arquitetada."

Para Vieira, a decisão brasileira favorece as mineradoras no julgamento em Londres que visa responsabilizar a anglo-australiana BHP Billiton. O processo tramita no Reino Unido desde 2018 e tem como reclamantes cerca de 620 mil pessoas, além de 46 municípios e 1,5 mil empresas afetadas no Brasil. O pedido de indenização chega a R$ 230 bilhões

Pouco antes de o julgamento no exterior começar, um acordo de repactuação de R$ 170 bilhões foi assinado no Brasil. A maior parte, 100 bilhões, será revertida para os governos federal, de Minas Gerais e Espírito Santo. O dinheiro tem que ser aplicado em medidas como reassentamentos, indenizações, infraestrutura e recuperação da bacia do rio Doce.

"Essa repactuação só favorece empresas e governos. Ela pode de fato reparar o estado e a segurança jurídica das empresas. Mas não vai beneficiar diretamente o atingido. Para os verdadeiros atingidos, que estão na calha do rio, a situação só piora. A injustiça se renova", analisa Vieira.

"Aqui tudo pode"

A professora Andréa Zhouri, fundadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) se diz estarrecida. "A decisão não observa o direito fundamental à vida, mostra insensibilidade e desprezo pelas perdas e o sofrimento dos atingidos. É uma reafirmação da injustiça", declarou à DW.

Como estudiosa dos desastres, a antropóloga afirma que a demora na reparação e no julgamento da ação sempre favorece as empresas acusadas, enquanto os atingidos têm urgência na reconstrução das suas vidas. "Do lado das empresas, o jogo é de prorrogação e de adiamento. A governança do tempo é instrumento da impunidade, e foi o que Samarco, Vale e BHP fizeram o tempo todo", pontua Zhouri.

Para a pesquisadora, que acompanhou todo o desenrolar dos impactos do rompimento de Fundão, a sentença envia um recado à população brasileira e ao mercado internacional. "A nossa Justiça favorece as elites que não se importam que o Brasil vire uma zona de sacrifício da mineração, com o afrouxamento da legislação ambiental e a absolvição de réus criminosos. Aqui tudo pode", critica.

Maria Teresa Corujo, ambientalista do Movimento pelas Serras e Águas de Minas, diz que chegou a ter esperança de que a história toda poderia se transformar em um caso de punição exemplar "coerente com a magnitude" da tragédia que aconteceu.

"O processo tem todos os elementos de que não havia fiscalização dos órgãos responsáveis, de que não foram tomadas providências para evitar o que aconteceu, tanto é que a sirene nem tocou. Não cuidaram direito de quem tinha que ser retirado, a gente viu e testemunhou que as pessoas se autossalvaram. Não tenho nem palavras, é muito violento", diz Corujo à DW.

"Não há justiça"

Acostumado a acompanhar as famílias em Mariana, o assessor técnico da Cáritas diz que a comunidade está indignada. Algumas se mudaram para os novos reassentamentos de Bento Rodrigues e de Paracatu, mas as obras ainda não foram finalizadas. Muitos reclamam da falta de terreno para plantar e criar animais, já que eles vêm de um contexto rural e viviam desse modo na região antes de a lama destruir tudo.

"É um desfecho que vai propiciar a repetição. E que pode ser ainda mais cruel, pode matar mais pessoas. É triste ver que o lucro está acima da vida. Está sendo muito difícil pra gente", diz Vieira à DW.

Das 334 barragens em Minas Gerais registradas no sistema da Agência Nacional de Mineração, ANM, 28 apresentam uma situação crítica, de risco alto.

Numa casa provisória há nove anos, Maria do Carmo Dangelo diz não ter ficado surpresa. "A Justiça aqui no Brasil é comandada pelo poder econômico. É injusta. E a gente estava mais ou menos esperando por isso", declara à DW.

Ex-moradora de Paracatu, distrito que havia no caminho dos rejeitos de Fundão, ela e a família esperam ser indenizadas para recomeçarem a vida do jeito deles. "Talvez eu vá embora da região. Atingido sofre muita discriminação", diz. "Estou há nove anos procurando o meu lugar."

Autor: Nádia Pontes

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