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O que é constelação familiar, polêmica terapia que é muito popular no Brasil

Método pseudocientífico, que se popularizou quando passou a ser usado em mediações de conflitos na Justiça e integra o SUS

Por Deutsche Welle

O que é constelação familiar, polêmica terapia que é muito popular no Brasil
Anitta mostra nova tatuagem
Reprodução/Instagram

A constelação familiar voltou a ser tema de discussões nas redes sociais, após a cantora Anitta explicar o significado de uma tatuagem feita em homenagem aos pais. No X, antigo Twitter, o tema ficou em alta durante todo o fim de semana. Mas afinal, o que é constelação familiar e porque ela gera tanta polêmica?

Os defensores do método dizem que a constelação familiar é uma prática terapêutica que consiste na resolução de um problema ou trauma por meio da representação do sistema familiar. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a técnica tem sido utilizada no Brasil desde 2012 para a mediação de conflitos envolvendo divórcio, guarda, alienação parental e pensão alimentícia.

Sociólogos e psicólogos alertam, porém, que se trata de um método pseudocientífico que não só ignora as ciências sociais e a psicologia como viola os direitos humanos, reforça estereótipos sobre os papéis sociais do homem e da mulher e "pode desencadear ou agravar estados emocionais de sofrimento ou de desorganização psíquica".

Mesmo assim, em 2018, o Ministério da Saúde aprovou a inclusão da constelação familiar no rol de Práticas Integrativas Complementares ofertadas nos postos de saúde. A portaria nª 702 de 2018 descreve que "a constelação familiar é indicada para todas as idades, classes sociais, e sem qualquer vínculo ou abordagem religiosa, podendo ser indicada para qualquer pessoa doente".

Em resposta a um pedido feito pela Lei de Acesso à Informação, o ministério comunicou que em 2022 foram feitas mais de 11 mil sessões de constelação familiar pelo SUS em todo o Brasil e que a pasta não oferece cursos de formação na prática aos profissionais de saúde.

O uso dessa técnica que não se baseia na ciência no serviço público é contestado por conselhos de classe e acadêmicos, que alertam para os riscos de sofrimento psíquico dos participantes e pedem que seja banida.

Sessão para "recriar o problema"

Para tratar os conflitos apresentados pelos "constelados", a abordagem usa outras pessoas ou bonecos, que representam os pacientes como numa espécie de teatro. A maneira como eles se comportam e se posicionam na sessão diante do problema que é recriado seria uma representação das emoções dos "constelados". 

O mediador interpreta essa representação para chegar à solução do conflito. "Não temos instrumentos para explicar isso de forma científica, mas não quer dizer que não seja real", explica o mediador, ou "constelador", Mateus Santos.

Na sessão da qual Pamela participou, ela e o filho seriam representados por duas outras pessoas. O ex-marido faria o próprio papel. 

"Tinha uma mulher gritando e rolando no chão. O constelador disse que eu era assim como ela: louca", relata. Ela diz que se recusou a se ajoelhar e pedir perdão ao homem depois da ordem do constelador. "Fui considerada rebelde, doente mental, um perigo para o meu filho."

Santos diz que essa não é a conduta correta para consteladores. "Isso não é ético", afirma. Ele defende que a técnica é eficaz, mas que, no serviço público de saúde, a aplicação deve ser supervisionada para evitar os riscos. "Entrar na intimidade do ser humano no nível anímico exige a máxima postura de respeito. É um cuidado que se deve ter com as vítimas."

Na sentença do caso de Pamela, a juíza a mandou afastar-se do filho, com tratamento psiquiátrico. "Não o vejo há 8 anos", diz a mãe. 

A juíza não afirma categoricamente que se baseou apenas na dinâmica da constelação familiar para tomar a decisão, mas menciona que não houve conciliação, além de levar em conta um laudo psiquiátrico e o relato do pai de que não se entendia com Pamela, que seria alienadora.

Poema para Hitler

O método da constelação familiar foi proposto pelo missionário católico alemão Bert Hellinger em 1978. Ao propor a abordagem, ele reuniu referências de psicologia com a sua experiência de 16 anos de trabalho na África do Sul com zulus e leituras taoístas. Ele considera que a origem dos conflitos nas relações está ligada à ancestralidade e que esses problemas podem se manifestar em várias gerações.

Com isso, Hellinger estabeleceu as três ordens do amor que seriam a base da estrutura familiar: o direito ao pertencimento à família, a hierarquia e o equilíbrio entre dar e receber.

Entre os mais polêmicos ensinamentos do "psicoguru", como é frequentemente chamado pela imprensa alemã, está a de que as crianças vítimas de incesto pelo pai tenham compreensão para com o agressor e até mesmo aceitem o contato sexual: "A solução para a criança é que a criança diga para a mãe: 'Mamãe, por ti, eu o faço com prazer', e para o pai: 'Papai, pela mamãe, eu o faço com prazer'", "ensina" Hellinger.

As duas maiores associações de terapia sistêmica na Alemanha, a DGSF e a SG, externaram críticas aos métodos de Hellinger. "Também a prática real da constelação familiar deve ser vista de forma crítica, como eticamente inaceitável e perigosa para as pessoas afetadas", afirmou a DGSF em posicionamento oficial, em 2003, ao se distanciar da prática.

Na Alemanha, Hellinger é extremamente polêmico e já foi acusado de relativizar o nazismo. Ele é frequentemente lembrado como o autor de um controverso poema dedicado a Adolf Hitler, no qual pede ao leitor para que se identifique com o líder nazista, e até mesmo morou de aluguel, por algum tempo, no lugar onde ficava o segundo escritório de Hitler, em Berchtesgaden, no sul da Alemanha.

Riscos da prática

O sociólogo Mateus França, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que estuda a implementação da constelação familiar no serviço público, alerta que o uso do método leva a uma violação de direitos humanos, na medida em que molda decisões judiciais e tratamentos alternativos sob uma perspectiva conservadora que reforça papéis de gênero e vai de encontro a avanços no direito de família.

"Ignora as ciências sociais e reproduz violência de gênero ao partir do pressuposto de que pessoas violentas não podem ser excluídas do sistema familiar. Outro exemplo é que se cria um estereótipo de família: se acontece uma adoção por casais homoafetivos, um tem que assumir o papel masculino, e o outro, o feminino. É um retrocesso no direito de família", afirma.

"Coloca a culpa do conflito na mulher. São afirmações muito perigosas, de por exemplo não excluir da família o homem que a agrediu, ou então que um feto abortado falta na hierarquia da família por ter sido excluído."

Outro conceito aproveitado por Hellinger é o de campo morfogenético. Elaborado pelo biólogo Rupert Sheldrake, esse campo diz respeito a uma memória coletiva que seria captada pelos indivíduos de uma espécie. Seria assim que representantes teriam acesso às sensações dos constelados.

O professor de física Marcelo Takeshi, da Universidade Estadual de São Paulo, diz que a argumentação é uma estratégia para justificar as interpretações oferecidas na constelação e os conflitos entre as partes, mas que campos morfogenéticos nunca foram provados. 

"Isso se fantasia de ciência e não tem respaldo nenhum na física, nem respaldo em experimentos científico, é algo inventado, nunca teve nenhum indício de comprovação dessa hipótese."

O físico diz que a constelação familiar atende aos requisitos para ser considerada pseudociência: ter um autor que elaborou o tema para justificar a prática, evitar evidências conflitantes e resistir a testes, por exemplo.

Uso no serviço público

França diz ainda que "depender de crenças não é interessante para uma política pública, principalmente envolvendo questões sobrenaturais". Ele lembra que políticas públicas eficientes precisam ser alvo de pesquisas que atestem sua eficácia e garantam a segurança do método e a compreensão dos riscos envolvidos na sua aplicação.

A resolução nº 125 do CNJ permitiu que os tribunais aplicassem a constelação familiar como prática alternativa para agilizar a solução dos conflitos judiciais antes que chegassem ao litígio. Atualmente, pelo menos 16 tribunais se valem do método nas audiências e processos. 

Em outubro, o CNJ deu início a um julgamento para restringir o uso de alternativas terapêuticas no judiciário, como a constelação.

"É persuasivo para quem trabalha no Direito a ideia de celeridade, chegar a um acordo, baixar a pilha de processos, é um objetivo defensável, mas não deve ser um vale-tudo, precisa buscar formas seguras para quem acessa o sistema de justiça", afirma França. Por isso, o advogado propôs uma sugestão legislativa para banir a prática no serviço público. Agora, o texto aguarda que o relator, senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que é simpático à constelação, apresente um parecer sobre o assunto.

Esse cenário de disseminação da constelação familiar no serviço público motivou uma nota conjunta do Conselho Federal de Psicologia e acadêmicos. 

No documento enviado ao Ministério dos Direitos Humanos, o grupo afirma que a prática "pode desencadear ou agravar estados emocionais de sofrimento ou de desorganização psíquica, exigindo assim um acompanhamento profissional psicológico que não é oferecido durante as sessões".

O ministério pediu ao Conselho Nacional de Direitos Humanos que avalie o uso da prática. O colegiado ainda analisa o caso.

Autor: Jéssica Moura

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