Opinião: A Justiça tem nome de mulher?

Antes de mais nada, o 8 de março é um dia de luta e deve celebrar as conquistas das mulheres, para construir um futuro sem medo e contra a longa lista de injustiças que elas sofreram, opina Ynaê Lopes dos Santos.

Por Deutsche Welle

Dez anos.

Uma década.

Esse foi o tempo que Ana Paula Oliveira esperou para testemunhar o julgamento sobre o assassinato de seu filho, o jovem Johnatha de Oliveira Lima, morto em 2014 durante uma das tantas ações policiais que terminam com jovens corpos negros estirados no chão, sem vida.

Morador da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, Johnatha, de 19 anos, foi baleado nas costas por um policial da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) durante um tumulto entre a polícia e os moradores da favela. Embora tenha sido atendido na UPA mais próxima, ele não resistiu e faleceu.

Indignada, Ana Paula Oliveira iniciou uma longa jornada por justiça pelo seu filho. Uma das primeiras medidas foi a criação do grupo Mães de Manguinhos, que tem como objetivo denunciar os crimes cometidos pelo Estado. O assassinato de seus filhos era um desses crimes.

A espera foi longa, assim como a expectativa em fazer deste julgamento uma espécie de exemplo de como a Justiça poderia tardar, mas não falhar.

No entanto, o julgamento ocorrido no 3º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro tipificou o crime como homicídio culposo, quando não há intenção de matar, frustrando assim a acusação, que advogava que o crime deveria ser enquadrado como homicídio doloso (quando há intenção de morte).

Ana Paula Oliveira foi arrebatada pelo sentimento de injustiça. Um sentimento que caminha lado a lado com tantas mulheres brasileiras, sobretudo as negras e periféricas. E, na força da sua indignação, essa mãe escreve uma carta aberta para toda a sociedade brasileira, na qual diz o que já sabemos: o sistema de Justiça brasileiro é a cara da nossa elite – masculino, branco, rico, eurocentrado e, consequentemente, racista.

No entanto e, infelizmente, a dor das mães negras e periféricas que perdem seus filhos porque para a polícia "todo negro é um suspeito" e, "bandido bom é bandido morto" não são as únicas injustiças as quais nós, mulheres, estamos submetidas diariamente.

Podemos lembrar um caso recente, no qual o Sistema de Justiça espanhol prevê que um homem condenado por estupro possa amenizar sua pena mediante alguns milhares de euros. Mas não precisamos ir tão longe.

No Brasil, foi apenas em 2021 que o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a tese de "legítima defesa da honra" contraria a Constituição.

Essa tese defendia que qualquer homem que sentisse sua honra atacada estaria agindo em legítima defesa em casos de feminicídio, por exemplo.

Trocando em miúdos, por quase 200 anos (afinal, a defesa da honra masculina consta no Código Criminal desde 1830), os homens tinham direito de agredir e até mesmo de matar suas mulheres em nome da preservação da sua masculinidade.

Quatro mulheres assassinadas por dia

Não é por acaso que, no ano de 2023, uma mulher foi morta a cada seis horas no Brasil, segundo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Essa é uma longa e terrível história que também é organizada pelas questões de raça, classe e sexualidade – basta lembrar como os índices brasileiros de violência contra lésbicas, travestis e trans são igualmente alarmantes.

Nesse mesmo Brasil, as mulheres seguem sendo criminalizadas e impedidas de fazerem abortos com segurança, enquanto parcela significativa da sociedade é absolutamente complacente com os pais que abandonam seus filhos e/ou não pagam pensão.

Uma complacência muito semelhante a que recai sobre famílias (essas sim, geralmente chefiadas por homens), que transformam suas empregadas domésticas em verdadeiras escravizadas do século 21, lhes negando todos os direitos trabalhistas, a possibilidade de estudar, constituir laços de amor, afeto e família que transcendam as senzalas modernas. E é impressionante como o sistema de Justiça é moroso em julgar e condenar aqueles que mantém terceiros em condições análogas à escravidão, principalmente quando esse terceiro atende pelo nome de mulher.

Não podemos nos esquecer que há seis anos seguimos perguntando:quem mandou matar Marielle Franco e por quê?

Hoje é dia 8 de março. Dia Internacional da Mulher. Um dia que muita gente (homens principalmente) tenta reduzir a uma caixa de bombom ou a um ramalhete de flores com um belo laço vermelho.

Mas esse é um dia de conquistas das mulheres, e por isso deve ser lembrado e celebrado, servindo como andaime para a construção de um futuro sem medo para as mulheres (em toda sua diversidade).

Porque, enquanto a Justiça for apenas uma alegoria feminina que se mantém cega para o fato que gênero, raça, classe e sexualidade são aspectos que determinam os índices de violência e de criminalidade, dia 8 de março seguirá sendo, antes de mais nada, um dia de luta!

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

Autor: Ynaê Lopes dos Santos

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