Ao longo do ano passado, houve muitas idas e vindas entre autoridades alemãs e a organização de ajuda alemã Kurve Wustrow, que tentava salvar seus projetos em andamento com a Zochrot e a New Profile, duas organizações israelenses de direitos humanos focadas na antimilitarização e nos direitos de palestinos.
A organização teve conversas por telefone e reuniões pessoais com funcionários públicos. Respondeu a perguntas por e-mails. Enviou declarações das organizações israelenses explicando suas posições.
Mas nada dissuadiu as autoridades alemãs de cortar todo o financiamento do governo para a organização. Em meados de dezembro, a decisão foi confirmada. O esforço inútil deixou o diretor interino da Kurve Wustrow, John Preuss, "cansado e frustrado".
A Kurve Wustrow tem parceiros em vários países, inclusive no Sudão e em Mianmar. Mas, segundo Preuss, essa foi a primeira vez que o governo alemão retirou o financiamento de um de seus projetos em andamento.
Preuss, que estava há dias angustiado com sua decisão de ir a público, e seus parceiros israelenses tiveram que adivinhar contra o quê exatamente estavam tentando se defender.
As autoridades alemãs nunca deram à organização uma explicação oficial sobre o motivo da decisão de rescindir o financiamento de projetos que haviam sido aprovados ou renovados no ano anterior.
Tendência de corte de financiamento a grupos de direitos humanos
A equipe de jornalismo investigativo da DW analisou e-mails e documentos confidenciais e conversou com dezenas de fontes do setor de cooperação para o desenvolvimento na Alemanha, em Israel e na Cisjordânia ocupada.
O resultado indica que o corte de financiamento da Zochrot e da New Profile faz parte de um padrão mais amplo de interromper a destinação de fundos públicos federais para organizações de direitos humanos que têm criticado as políticas do governo israelense e a guerra em Gaza.
Desde os ataques terroristas a Israel liderados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, a Alemanha também deixou de financiar pelo menos seis organizações palestinas. Todas as fontes com quem a DW conversou avaliaram que a medida foi política, uma tentativa de silenciar vozes críticas em um momento de encolhimento do espaço da sociedade civil em Israel. Elas também afirmaram que a decisão da Alemanha foi tomada sob pressão israelense.
Em uma declaração à DW, o Ministério do Exterior da Alemanha rejeitou essa alegação como "imprecisa", e disse que continua a financiar "inúmeras ONGs em Israel e nos territórios palestinos que criticam a política de ocupação israelense".
Trabalho da Zochrot e da New Profile é polêmico em Israel
O trabalho realizado pela New Profile e pela Zochrot é controverso em Israel, especialmente sob um governo que está politicamente mais à direita do que qualquer outro na história do país.
O corte de financiamento da Alemanha encerrou projetos em andamento que haviam sido iniciados no final de 2023.
Zochrot, que significa "Lembrando" em hebraico, defende a responsabilização pela Nakba, termo usado por muitos para se referir à expulsão e ao deslocamento dos palestinos antes e durante a guerra árabe-israelense de 1948. A organização também faz campanha pelo direito de retorno dos refugiados palestinos e seus descendentes, ao qual o atual governo israelense se opõe fortemente.
Sua diretora, Rachel Beitarie, disse à DW que se reuniu com autoridades alemãs antes da decisão final sobre o corte de financiamento. "O passado alemão, o regime nazista, foi mencionado repetidas vezes nessas conversas", disse. As autoridades alemãs, acrescentou, disseram-lhe que era importante para a Alemanha apoiar Israel por causa da história da Alemanha.
Foi por isso que a Zochrot escreveu uma declaração ao governo alemão, na qual abordou a pergunta de se a organização havia questionado "a existência de Israel", dizendo que categoricamente não havia feito isso.
Beitarie disse que a Zochrot perdeu cerca de 100 mil euros – cerca de um quarto de seu orçamento. O corte de fundos "definitivamente nos prejudica, mas não nos impedirá de fazer esse trabalho", afirmou.
A New Profile, uma organização formada por voluntários, oferece apoio a pessoas que alegam objeção de consciência e correm o risco de serem presas em Israel, onde o serviço militar é obrigatório para homens e mulheres. A organização disse que perdeu cerca de metade de seu financiamento total.
Em uma longa declaração ao governo alemão, a New Profile explicou que seu trabalho com aqueles que se recusam a servir no Exército de Israel era "estritamente de acordo com a lei israelense".
Sergeiy Sandler, tesoureiro da organização, disse que o corte de financiamento foi programado "para causar o maior dano possível ao nosso trabalho". E deixou a organização com dificuldades para encontrar financiamento alternativo em um momento em que soldados israelenses estavam sendo enviados para lutar em Gaza e, até recentemente, no Líbano.
Ambas as organizações vinham recebendo ajuda de cooperação para o desenvolvimento por meio de vários parceiros alemães há cerca de duas décadas. Até agora, disseram fontes à DW, seu trabalho aparentemente nunca havia suscitado preocupações entre as autoridades alemãs.
Ambiente de financiamento alemão mais restritivo
Beitarie, diretor da Zochrot, acredita que a "pressão do governo israelense" provavelmente levou à decisão das autoridades alemãs de cortar o financiamento da Zochrot e de outros grupos.
É um procedimento padrão da Alemanha revisar regularmente e de forma preventiva a destinação de fundos federais para cooperação para o desenvolvimento e ajuda humanitária, especialmente em regiões envolvidas em conflitos armados e turbulências políticas. Mas quando se trata de Israel e dos territórios palestinos, há uma camada adicional de complexidade.
Em novembro, o Parlamento alemão aprovou uma resolução que havia sido elaborada a portas fechadas, condicionando o recebimento de verbas públicas à adesão a uma definição controversa de antissemitismo. Críticos consideram que a resolução confunde qualquer crítica ao governo israelense com antissemitismo, pois lista termos amplos como "fazer comparações da política israelense contemporânea com a dos nazistas" ou "afirmar que a existência de um Estado de Israel é um esforço racista" como exemplos de antissemitismo.
Isso foi colocado em prática no que o Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha, em uma declaração de dezembro de 2023, chamou de "exame minucioso" dos parceiros na região, um procedimento para garantir que as organizações parceiras da Alemanha não tenham vínculos com grupos terroristas, nem façam declarações ou ações antissemitas que tornem "indesejável" apoiá-las. Isso significa que as organizações não devem apoiar o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), incitar a violência contra Israel ou negar o direito de Israel de existir.
Dezenas de fontes de organizações da sociedade civil disseram à DW que o governo alemão tem se tornado cada vez mais restritivo quando se trata de financiamento desde 7 de outubro de 2023, quando o Hamas e outros militantes palestinos lançaram uma série de ataques brutais, matando cerca de 1.200 israelenses e fazendo 254 reféns. Em resposta, o governo israelense desencadeou ataques primeiro em Gaza e depois no Líbano. Dezenas de milhares de palestinos foram mortos na ofensiva israelense, segundo as autoridades locais.
Trabalhadores do setor humanitário elaboraram uma lista de pelo menos 15 organizações, incluindo a Zochrot e a New Profile, que perderam o financiamento do governo alemão nos últimos meses. A maioria delas é palestina e muitas tinham parcerias de longa data com organizações alemãs.
Embora o Ministério do Exterior alemão não tenha confirmado que 15 organizações tenham tido seu financiamento cortado, a DW conseguiu verificar que pelo menos oito passaram por isso recentemente.
Reviravolta na política de financiamento
Muitas fontes de ONGs concordaram que uma decisão é particularmente sintomática da postura cada vez mais restritiva da Alemanha: a de cortar discretamente o financiamento de seis organizações palestinas após os ataques do Hamas no final de 2023.
Israel já as havia considerado ligadas a terroristas em 2021, embora muitos países, inclusive a França e, antes, a Alemanha, tivessem afirmado que essas alegações não tinham fundamento.
Uma das organizações, a Al-Haq, ganhou destaque em 2014 por testemunhar contra Israel ao Tribunal Penal Internacional, que em novembro de 2024 emitiu um mandado de prisão contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, citando acusações de crimes de guerra e contra a humanidade. Muitas fontes da sociedade civil disseram que foi provavelmente devido a esse testemunho de 2014 que a Al-Haq entrou na lista de terroristas de Israel.
A medida tomada em 2021 pelo governo israelense para designar as seis ONGs palestinas como terroristas foi "100% política", disse à DW o representante da União Europeia na Cisjordânia e em Gaza na época, Sven Kühn von Burgsdorff.
"Nenhuma das auditorias e controles financeiros chegou à conclusão de que qualquer uma dessas seis ONGs tenha infringido ou violado nossos acordos de financiamento ou obrigações contratuais", disse ele.
Nove ministérios de Relações Exteriores de países europeus chegaram a uma conclusão semelhante. Eles escreveram em uma declaração conjunta em julho de 2022 que "nenhuma informação substancial foi recebida de Israel que justificasse a revisão de nossa política em relação às seis ONGs palestinas". Um dos signatários era a Alemanha.
O financiamento continuou, mas em dezembro de 2023 o governo alemão realizou discretamente uma reversão completa da política e cortou todo o financiamento federal. Isso ocorreu alguns dias antes do Natal, explicou uma fonte, quando a maioria dos trabalhadores humanitários já estava na folga do final de ano.
A DW obteve uma cópia de um relatório interno e confidencial do Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha, que afirma que nenhuma nova cooperação com as seis agências seria autorizada. Também nesse caso, não foram apresentadas razões. A decisão ainda não foi comunicada publicamente.
Questionado sobre o que motivou a mudança repentina, um porta-voz do Ministério do Exterior disse à DW em uma declaração por escrito que o governo revisou e continua revisando todas as informações relativas às seis ONGs.
Governo alemão "está participando da opressão", afirma Zochrot
Em conjunto, o corte de fundos para as oito organizações israelenses e palestinas parece indicar uma decisão da Alemanha de ficar ao lado do atual governo israelense, avaliaram fontes do setor de cooperação para o desenvolvimento.
Isso ocorre em um momento em que o espaço para a sociedade civil crítica e a mídia em Israel já está diminuindo, disse o advogado israelense Michael Sfard, que defende e aconselha ONGs palestinas e israelenses, incluindo a Al-Haq. Ele acredita que restringir o financiamento de organizações de direitos humanos é parte de uma estratégia deliberada do governo israelense para sufocar a dissidência.
"É uma tendência que começou há uma década e meia, mas que atingiu seu ápice com o atual governo, especialmente após o dia 7 de outubro", disse. Ele afirmou que é "inacreditável como é difícil hoje em Israel criticar a política do seu governo".
A embaixada israelense em Berlim não respondeu a perguntas sobre medidas que enfraquecem a sociedade civil em Israel.
O governo alemão "está participando da opressão", disse Beitarie, diretora da Zochrot.
Sergeiy Sandler, da New Profile, concordou. Ele mora em Be'er Sheva, uma cidade no sul de Israel que fica entre dois aeroportos militares. A trilha sonora da guerra em Gaza, que ocorre a apenas 40 quilômetros de sua casa, é o barulho incessante de aviões indo ou voltando da Faixa de Gaza.
É um lembrete constante de que a guerra está tão perto de sua casa. "E o trabalho [da New Profile] pelo menos ajuda algumas pessoas a não participarem diretamente das atrocidades", disse, acrescentando que a entidade está recebendo cada vez mais solicitações de pessoas que querem se abster do serviço militar.
"Posso entender por que o governo israelense quer nos reprimir", disse. Mas, questionou, "é papel do governo alemão impor as demandas ideológicas do governo israelense aos cidadãos israelenses? (...) É papel do governo alemão tentar silenciar o dissenso?"
Em uma declaração por escrito à DW, o Ministério do Exterior alemão rejeitou todas as alegações de que a Alemanha estaria seguindo uma decisão de Israel de silenciar vozes críticas ao governo de Netanyahu, e as classificou como "imprecisas".
Colaborou: Tania Krämer em Be'er Sheva e Tel Aviv
Edição: Mathias Bölinger, Carolyn Thompson e Sarah Hofmann
Checagem de fatos: Carolyn Thompson
Assessoria jurídica: Florian Wagenknecht
Autor: Naomi Conrad, Birgitta Schülke