No clássico infanto-juvenil Caçadas de Pedrinho (1939), de Monteiro Lobato (1882-1948), os netos de Dona Benta decidem sair à caça de uma pintada que rondava o capoeirão dos Taquaruçus, nas cercanias do Sítio do Pica-Pau Amarelo. O alerta foi dado pelo Marquês de Rabicó, após encontrar rastros esquisitos quando fuçava fungos nos troncos da mata. O medroso leitão não avistou o animal, mas deduziu que era onça – para ele, "um gatão assim do tamanho dum bezerro". Só no reino ficcional do Pica-Pau Amarelo seria possível comparar a um bezerro o maior predador terrestre das Américas.
Confrontada com outras espécies da mesma família, a onça-pintada é ligeiramente maior que o leopardo e só perde em escala para o leão e o tigre. Em compensação, possui a mordida mais potente entre todos os felinos do planeta. Além de importante indicador biológico da saúde ambiental, reina absoluta tanto no plano real quanto no imaginário de toda América Latina, desde a era pré-colombiana.
Em Meu destino é ser onça (2023), o escritor Alberto Mussa reconstitui literariamente o mito originário dos tupinambás, em que a antropofagia cumpre papel ritual baseado em peripécia dos feiticeiros rivais Maíra e Sumé. É a vingança do mais valente sobre o inimigo capturado, que lhe serve de alimento após a execução com um golpe de porrete na nuca. Segundo o autor, o jogo canibal consistia em "matar, comer, ser morto e vingado", visando a preparação para lutar contra as provas da morte e atingir a terra-sem-mal.
No livro em que registra as viagens empreendidas ao Brasil do século 16, o aventureiro alemão Hans Staden (1525-1576) reproduz uma conversa com o líder tupinambá Cunhambebe. À pergunta do europeu se não lhe incomodava comer outro homem, o indígena respondeu de pronto: "eu sou onça!"
No imaginário popular
Figura central nas cosmogonias dos povos originários do continente, a onça estaria vagando pela terra desde o alvorecer do mundo. Para várias tradições, sua pelagem simboliza o firmamento e suas pintas as estrelas. Está presente na mitologia maia como o deus jaguar Balam, emblema de poder e ambivalência, costurando dia e noite; caos e ordem.
Técnicos do Instituto Nacional de Antropologia e História do México (INAH) encontraram no início da década de 1930 em uma das pirâmides de Chichén Itzá, na Península de Yucatán, uma relíquia arqueológica considerada das mais preciosas do país: um trono de pedra em forma de jaguar vermelho. Para os maias, esse trono permitia que seu governante se transformasse espiritualmente no animal para proteger a cidade e seus habitantes.
Já no Brasil, recolhido pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss e transcrito no primeiro volume da série Mitológicas (1964), o mito da criação do fogo segundo os kaiapós traz igualmente o felino como protagonista, representado como entidade caçadora munida de arco e flechas e responsável pela salvaguarda do fogo. Botoque, um jovem indígena que havia adotado, acaba entregando para sua tribo o segredo das armas e o fogo. Enquanto os kaiapós mastigam carne cozida pela primeira vez, o jaguar passa a odiar a humanidade. Ressentido com a traição, jura comer apenas carne crua daí em diante e, das labaredas que lhe foram roubadas, sobra apenas o reflexo que faz brilhar seus olhos. Mesmo se tratando de um mito brasileiro, o francês Lévi-Strauss usa o nome jaguar, da mesma forma como é conhecida por toda a América hispânica a onça-pintada.
Uma das maneiras usadas pelos colonizadores para nominar animais desconhecidos era repetir foneticamente a maneira como os indígenas os chamavam. Nesse traslado algumas incorreções acabaram institucionalizadas. Ya'wara, na verdade fera em tupi, virou jaguar para os europeus.
Pelo menos até meados do século 19, nossa onça era também chamada genericamente de tigre, como registrado em anotações e gravuras publicadas por artistas e exploradores, a exemplo do francês Jean-Baptiste Debret e dos alemães Johann Moritz Rugendas e Carl Friedrich Philipp von Martius. Curiosamente, o nome pelo qual a conhecemos no Brasil vem do francês once, uma derivação de lynceus, palavra em latim para lince. Em regiões do sul do Brasil, Argentina e Paraguai, é chamada também de jaguaretê, corruptela do tupi ya'ara-ete (fera verdadeira).
Dia internacional da onça-pintada
Desde 2018 comemora-se o dia internacional da onça pintada em 29 de novembro. A data foi instituída durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas(COP14) realizada no Egito. Na ocasião, além do reconhecimento do papel da onça no equilíbrio dos biomas que habita, sugeriu-se a criação de um corredor de preservação, com destaque para 30 sítios prioritários do México à Argentina.
Extinta nos Estados Unidos, Uruguai e El Salvador, a sobrevivência da espécie segue em risco nos 18 países da América Latina em que ainda está presente, devido à conversão de seus habitats para uso agropecuário e conflitos com os humanos, como a caça ilegal e retaliação a prejuízos causados à propriedade de pecuaristas.
Quase metade da população de onças do continente está no Brasil, concentrada principalmente na região amazônica e no Centro-Oeste. Maior predador terrestre do país, carrega o status de espécie ameaçada de extinção, segundo o Ministério do Meio Ambiente.
Animal de hábitos solitários e territorialistas, se movimenta a partir do crepúsculo, mas pode se mostrar ativa durante o dia, quando instalada em habitats de mata fechada – como que confirmando aquela ambiguidade atribuída a ela pelos antigos maias. O rugido inconfundível, conhecido como esturro, é usado para a comunicação entre uma onça e outra, especialmente na época de reprodução.
A obra de artistas visuais indígenas como Jaider Esbell (1979-2021), Tamikuã Txihi e Denilson Baniwa se coloca na linha de frente da defesa da onça-pintada. O lugar de destaque ocupado pelo felino no ecossistema ambiental e cultural brasileiro é explorado gráfica e reiteradamente, sem que se perca a perspectiva de sua dimensão simbólica ligada à memória, resistência, sabedoria e força.
Micheliny Verunschk e a raiva santa do rugido da onça
Em O som do rugido da onça (2021), livro vencedor do Prêmio Jabuti de romance literário, a escritora e historiadora pernambucana Micheliny Verunschk recupera a história real dos indígenas adolescentes Iñe-e e Juri. Levados do Brasil pelos cientistas alemães Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e Johann Baptist von Spix (1781-1826) em 1821, foram batizados de Isabella Miranha e Johann Juri e morreram em Munique alguns meses após a chegada. Após os crimes cometidos em nome da ciência, a redenção de Iñe-e vem por meio da justiça das onças, com o esturro reverberando na busca da identidade de outras vidas, através dos séculos.
Verunschk confirma que há muito o que aprender com as onças e "a raiva santa de seu rugido", como costuma dizer: "O Brasil, como território marcado profundamente pela ferida colonial, foi fundado em meio à resistência, à insubordinação. No entanto, sob o signo da ‘ordem e progresso', entramos em um modo de pensamento que retira a força política da indignação e desobediência, que desmobiliza essa capacidade. Quando falo em raiva santa, é dessa força que estou falando, uma força capaz de se afirmar no cenário político, social e mesmo ambiental."
"A noção ideologicamente construída do brasileiro pacífico diante das forças que o oprimem não nos ajuda enquanto povo. Mas ora, estou pregando a revolução? Creio que não, estou pensando em construção de consciência. É diferente", acrescenta à DW.
Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, "no Brasil todo mundo é índio, só não é índio quem não é". É uma frase que Verunschk tem o hábito de parafrasear, afirmando que "no Brasil todo mundo é onça, exceto quem não é". Mas quem não é, então? Para a autora, "não é onça quem se vende aos poderes que espoliam esse país. Quem não entende a grande importância da floresta em pé, de um território seguro para todos. Não é onça quem usa a etiqueta de patriota para se vender melhor e mais barato no mercado."
Nessa jaguaretama, terra de onças chamada Brasil, nosso destino está atrelado ao delas. Como explicou o ex-onceiro que se definia como parente de onça em Meu tio o Iauaretê (1961), o conto assombroso de Guimarães Rosa (1908-1967), "onça, elas também sabem de muita coisa. Tem coisas que ela vê, e a gente vê não, não pode. Ih! Tanta coisa..."
Autor: Alexis Parrot