Ódio a padre Júlio Lancellotti é atestado de "pobrefobia"

Quem acha errado um humanista alimentar quem não tem comida quer o quê? Que os pobres morram? Infelizmente, acho que sim.

Por Deutsche Welle

"Esse padre vai ter que vir aqui prestar esclarecimento na Câmara. Vou arrastar ele para cá em coercitiva, nem que seja algemado. Vamos investigar a fundo, nos mínimos detalhes". Essa fala agressiva, ameaçadora e que parece dirigida a um criminoso perigoso, foi feita por um vereador de São Paulo.

O alvo, pasmem, é o padre Júlio Lancellotti, um dos maiores nomes dos direitos humanos no Brasil. Aos 74 anos, padre Júlio é pároco de uma igreja na Mooca e coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo. Ele literalmente alimenta a população sem teto da cidade. Os acolhe. Denuncia os abusos e os trata como irmãos.

O autor da ameaça é Rubinho Nunes, vereador pelo partido União Brasil, um dos fundadores do MBL e representante do bolsonarismo na Câmara Municipal de São Paulo. O vereador convocou o padre para depor na Frente Parlamentar em Defesa do Centro e pretende criar uma CPI das ONGs do Centro, que visa, segundo ele, investigar a ligação do padre com ONGs que trabalham na cracolândia. O padre afirma que não trabalha para essas organizações.

De acordo com a vereador, o padre deve dar depoimento até o dia 14 de dezembro, esta quinta-feira. No momento, há um abaixo-assinado em apoio ao padre e contra ele ter que dar explicações na Câmara. Ao mesmo tempo, dois vereadores denunciaram Rubinho Nunes à Corregedoria da Câmara por quebra de decoro, abuso de prerrogativas do mandato, incitação à discriminação, ofensas morais e desrespeito à dignidade de todo cidadão.

Não podemos, ainda, afirmar se o padre irá até o plenário se explicar ou não. E nem sei se esse é de fato o objetivo do vereador. Acho que o que ele quer é simplesmente "despertar ódio" contra o padre. Por isso, ele ofende Lancellotti em vários vídeos nas redes sociais.

Ele parece obcecado pelo que chama de "máfia da pobreza". O fato de as pessoas ajudarem os pobres porque têm empatia parece fora de cogitação para essas pessoas. Talvez porque achem que todo mundo é como eles e só agem por interesse.

Lei Padre Júlio Lancellotti

Os ataques ao padre servem à extrema direita porque causam ódio. E uma das coisas que aprendemos com o bolsonarismo é que o ódio causa um sentimento de união e gera engajamento nas redes sociais.

O vereador não insistiria na campanha de ódio contra o padre se não houvesse eco e muitas pessoas preparadas para apedrejar Júlio Lancellotti, o que é assustador.

Mas ele é odiado por quê? Por que um padre que segue os princípios do cristianismo como pouquíssimos é vítima de ataques? Quem acha errado um padre alimentar quem não tem comida quer o quê? Que os pobres morram? Infelizmente, acho que sim.

Essas pessoas sofrem do que o próprio padre chama de "aporofobia", ou pobrefobia, o ódio aos pobres, aos miseráveis, uma prática constantemente denunciada por Lancellotti.

E que agora, inclusive, motivou a criação de uma lei. A importância do trabalho do padre é tão grande que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou nesta segunda-feira o decreto que regulamenta a Lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a arquitetura hostil. Como, por exemplo, o ato de colocar pedras ou outros obstáculos embaixo de viadutos para que a população de rua não possa dormir no local. Sim. Tem gente que faz isso. Essa prática já foi denunciada por Lancellotti diversas vezes.

A lei deve ter deixado os odiadores do padre e de pobres ainda mais furiosos. Para essas pessoas, cuidar dos vulneráveis seria "alimentar bandidos". E deixar que eles se abriguem da chuva embaixo de um viaduto, quando todo mundo devia ter direito a uma casa, um "paternalismo com bandidos e vagabundos". E, para eles, claro, bandido bom é bandido morto.

Em tempos de tanto ódio e irracionalidade, é importante lembrar que moradores de rua não são necessariamente bandidos ou vagabundos. E mesmo os bandidos merecem, sim, um prato de comida. Não, não existe pena de morte no Brasil. Muito menos por inanição.

No caso de São Paulo, o padre trabalha diretamente com moradores da cracolândia, uma área de São Paulo onde usuários de crack vivem em condições degradantes e que é muito violenta. A cracolândia é um problema seríssimo, superdifícil de solucionar. Mas podemos afirmar com certeza que o drama dos viciados, e toda a violência que é desencadeada pelo consumo de crack, não será resolvido se eles pararem de serem assistidos por humanistas como padre Júlio.

Esta não é a primeira vez que Júlio Lancellotti é atacado. Muito pelo contrário, ele vive constantemente sob ameaças. No início do mês, ele denunciou que funcionários da prefeitura de São Paulo pegavam moradores de rua para trabalhar praticamente de graça em shows. "Agora mesmo estava aqui perto de nós um carro buscando pessoas. Quando me viram, falaram: 'você faz críticas, cuidado que isso é perigoso'". Em agosto, uma carta com ameaças e xingamentos foi deixada na paróquia onde o padre trabalha.

Em setembro de 2020, ele fez um apelo nas redes sociais e registrou um boletim de ocorrência. "Se alguma coisa acontecer comigo, já sabem", escreveu, depois de ser xingado por um motoqueiro que também o ameaçou. Na época, o padre era atacado pelo então candidato a deputado estadual e candidato a prefeito de São Paulo Arthur do Val, o "Mamãe Falei."

Na época, e também agora, muitos temeram que algo terrível acontecesse com o padre. O temor não é sem razão.

Os que odeiam padre Júlio são pessoas sem limites. Aqueles mesmos que continuam atacando Marielle Franco mesmo depois de sua morte. É uma gente movida pelo ódio. Deve ser realmente difícil para eles conviver com o fato de que existe quem exercite o "amor aos próximos" com a intensidade de um padre Júlio Lancelotti…

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

Autor: Nina Lemos

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