Há décadas, as cenas se repetem em São Paulo. Nas ruas da "Cracolândia”, na região central da capital paulista, multidões se aglomeram, num movimento que tem como ponto central o comércio e o uso do crack. A situação causa também temor na população que vive e trabalha nos arredores, por causa dos altos índices de criminalidade e da violência.
Para tentar controlar a situação, o governo de São Paulo e a prefeitura da capital têm executado operações policiais para coibir o tráfico na região.
Mas, para Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), esse tipo de abordagem pouco contribui para resolver a situação da Cracolândia paulista. Segundo ele, tanto a truculência policial quanto a truculência médica, por meio de internações involuntárias, por exemplo, são incapazes de atingir o cerne do problema.
Segundo o médico, que trabalha há 40 anos com dependentes químicos, inclusive na própria Cracolândia, a questão central é a vulnerabilidade social, que se torna um fator de risco para pessoas em situação de rua abusarem das substâncias.
"Esse nome Cracolândia é péssimo. É um mix de Disneylândia com crack. Soa como se fosse uma grande diversão. Mas não é uma diversão. Uma pessoa que usa droga pra fugir da situação de miséria social não está se divertindo, está apenas aliviando um sofrimento”, diz Silveira, que vê nas políticas de redução de danos uma saída.
DW Brasil: Por que a Cracolândia existe ali no centro de São Paulo? O que motiva esse tipo de situação social ligada ao consumo de uma droga como o crack?
Dartiu Silveira: Toda grande metrópole tem algo equivalente à Cracolândia. Porque toda grande metrópole vai ter uma população desfavorecida que se encontra em situação de rua, pessoas que não conseguiram o mínimo para se estabelecer dentro do esquema da nossa sociedade.
Claro que os países mais desenvolvidos e que têm uma consciência social maior do que o Brasil têm mecanismos muito mais eficazes de lidar com isso. E o Brasil, nesse ponto, é péssimo em termos de administrar os seus aspectos negativos e sombrios.
Então, ele culpabiliza o desfavorecido. Fica uma coisa de depositar a responsabilidade daquela situação de exclusão no próprio indivíduo.
E é aí que entra na droga como um prato cheio, como bode expiatório: ‘Ah, ele está na rua porque ele se droga, ele perdeu tudo e ele jogou tudo fora, então ele não consegue se inserir socialmente'. Quando, na verdade, não é isso que observamos. A droga é a sequência da situação de exclusão, não a causa dela.
Estamos falando de exclusão social, mas em que sentido? Quem são essas pessoas? Elas são todas viciadas?
Não, não são todas [viciadas]. Esse nome Cracolândia é péssimo. É um mix de Disneylândia com crack. Soa como se fosse uma grande diversão. Mas não é uma diversão.
Uma pessoa que usa droga pra fugir da situação de miséria social não está se divertindo, está apenas aliviando um sofrimento.
As pessoas que trabalham com populações excluídas, tanto na Cracolândia como em outros lugares do mundo, veem que dentro dessa população não são todos que usam droga.
A principal droga de abuso não é o crack, é o álcool. Sempre falamos que atrás da Cracolândia há uma ‘Álcoolândia' que ninguém cita.
Mas o fato é que, por exemplo, a manchete ‘Álcool coloca as pessoas numa situação de exclusão social' não dá muito Ibope. É mais interessante culpar uma droga ilícita por esse tipo de situação.
Os estudos epidemiológicos mostram que a grande maioria dos usuários de droga, seja de uma droga lícita como álcool, seja uma droga ilícita como a cocaína ou crack, não se tornam dependentes. Você vai se tornar dependente quando você tem um fator de agravo.
Por exemplo, se você tem uma doença depressiva, isso é um fator de risco para você deixar de ser um usuário controlado para se tornar um dependente. Se você tem um desfavorecimento social, se você mora na rua, se você é vítima de agressão, isso é um fator de risco para você se tornar dependente.
Já vimos repetidas vezes operações policiais ocorrendo na região para a repressão do tráfico e da criminalidade na Cracolândia. Recentemente, o governador de São Paulo [Tarcísio] e o prefeito da capital paulista [Ricardo Nunes] também citaram a internação voluntária como uma possível solução para resolver o problema no centro da cidade. O que a administração pública pode fazer no caso da Cracolândia?
Esse tipo de estratégia que está sendo preconizada agora já foi amplamente utilizada em várias cidades do mundo, inclusive aqui em São Paulo, e foi absolutamente mal sucedida. A truculência policial é justificada em cima de coibir o tráfico, mas a quantidade de substâncias apreendidas é ridícula.
E não é assim que se combate tráfico. Se combate o tráfico é através de serviço de inteligência, monitorando a rede de tráfico e o controle desse mercado ilícito.
A maioria das pessoas que são abordadas [na Cracolândia] e de uma forma truculenta e agressiva pela polícia não são traficantes. Os traficantes são uma minoria quase que ínfima. Porque o traficante não vai lá dentro. O traficante está lá no seu apartamento, na avenida Paulista, não é ele que está lá. Quem está lá é o usuário ou o intermediário que precisa dessa droga porque também se tornou dependente. Então, essa justificativa policial de coibir o tráfico, isso é uma furada.
O que tem que ser feito é um monitoramento internacional através do serviço de inteligência fora do território. No território, você tem que dar qualidade de vida para essa população excluída.
Até que ponto o tráfico de drogas está alimentando esse problema e até que ponto a administração pública não está agindo para coibi-lo?
Bom, o tráfico de drogas é um problema muito mais genérico, não é um problema da Cracolândia. A diferença é que o indivíduo de classe média ou classe alta faz o uso do delivery e chama o traficante numa moto, que entrega em 15 minutos a droga que ele quer na porta da casa dele. E como ele não é miserável e não está em situação de rua, a polícia não entra na casa dele e bate nele.
No caso da Cracolândia, aquela população é altamente vulnerável e predisposta a abusar de drogas, porque vive em situação de exclusão e miséria social. Acho que é a função do Estado proteger essas pessoas e o que a gente vê que o nosso Estado está fazendo é agir com uma tremenda truculência – truculência policial e truculência médica também através das internações involuntárias, porque não existe evidência científica de eficácia de internação involuntária.
Tem estudos mostrando que mais de 95% de quem é internado involuntariamente recai e volta a usar droga depois de menos de dois meses. Então, como é que você pode preconizar ou adotar um modelo que não tem comprovação de eficácia?
Por que temos, no Brasil, uma ‘cracolândia', mas não uma ‘cocainolândia', 'heroinolândia' ou até ‘alcoolândia', como o senhor mesmo citou?
Esse termo serve para culpabilizar o crack por essa situação de miséria social. Eu já trabalhei três anos na Cracolândia, tenho alunos meus ainda lá trabalhando, e vemos que o problema do álcool é tão ou mais grave que o do crack lá, só que o álcool não tem esse apelo midiático de autorizar a truculência policial – como é que a gente vai utilizar o álcool como justificativa?
O crack não, porque o crack é diabolizado como uma droga que destrói as pessoas, o que na verdade não é bem isso, porque existem usuários controlados de crack, então não é a droga que faz o indivíduo perder o controle. É a finalidade para qual ele está usando.
E no caso específico do crack, essa grande prevalência, e do álcool também, na cracolândia, é pelo custo. É muito mais barato você fumar crack do que você cheirar cocaína entre os brasileiros. E o álcool que se consome na cracolândia é um álcool muito barato também, é por isso que pessoas em situação de miséria social vão usar as drogas mais baratas disponíveis.
Como é tratado esse problema em outras ‘cracolândias' ou pontos de uso de drogas distintas em vários lugares do mundo? Temos exemplos bem-sucedidos?
Tem vários modelos que foram bem-sucedidos. Um dos primeiros foi em Vancouver, no Canadá, da chamada redução de danos – quando você provém ao indivíduo uma condição melhor de moradia, de alimentação, de trabalho, de reinserção social, acrescido de um atendimento médico-psicológico.
Você não exige a abstinência, mas a abstinência é algo que vem na sequência automaticamente – isso é muito interessante. Os estudos mostram que os modelos que exigem que o indivíduo pare de usar drogas para ser atendido não funcionam, porque o problema é não conseguir parar de usar droga. Como é que você exige um pressuposto que é justamente a doença dele?
A grande sacada desses programas de redução de danos que deram certo foi isso. Você não exige abstinência. Parece até paradoxal, mas não é. A médio prazo, nos programas que não exigem abstinência, 80% das pessoas param de usar drogas, sem essa exigência a priori.
Falando do estado brasileiro em geral, em todas as instâncias, temos os meios para poder implantar isso que foi implantado no Canadá, por exemplo?
Tem, e é muito mais barato um programa de redução de danos. Na verdade, no Canadá, a medicina é socializada, ou seja, não existe essa coisa de que saúde é um produto que é vendido para as pessoas ricas, como nos Estados Unidos. O governo canadense assume toda a responsabilidade do tratamento médico e psicológico da população canadense.
É um governo que quer ver o que é mais eficaz e menos custoso. É por isso que eles fizeram estudos bem feitos. Porque não existia interesse financeiro em valorizar a internação.
Aqui existe interesse, porque tem muita gente lucrando com essas internações involuntárias da população da Cracolândia. As comunidades terapêuticas lucram muito com isso e não tem evidência de eficácia, como os próprios estudos canadenses mostraram.
Autor: Fábio Corrêa