Um pesadelo se repete há dois meses por Beatriz Silva Rosa, de 29 anos: Ver o marido ser retirado envolto em papel alumínio, já sem vida, de um beco do Morro São Bento, em Santos. "Todo dia é um choro, uma lembrança, mas a gente tenta seguir, porque tem as crianças e eles também não estão bem", desabafa a mãe de três filhos, com três, seis e nove anos.
Leonel Andrade Santos foi morto em fevereiro aos 36 anos por um tiro disparado por um policial militar em meio à Operação Verão. Ele foi mais uma das 56 pessoas mortas pela PM paulista na Baixada Santista ente dezembro e o fim de março. Segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), todos eram "criminosos que entraram em confronto com as forças policiais e morreram".
Beatriz, no entanto, afirma que Leonel era incapaz de disparar contra os policiais. "Ele usava duas muletas para tudo, não conseguia andar sem elas, muito menos atirar", alega. "Vizinhos me contaram que mandaram ele jogar as muletas e sair correndo; ele tentou argumentar, não conseguiu, e levou um tiro no tórax quando se virou", diz a merendeira que até hoje não conseguiu localizar as muletas do marido, registradas junto com ele em uma foto tirada uma hora antes da sua morte.
"Tempos atrás meu filho mais velho disse que queria de presente as muletas do pai", diz com pesar. Beatriz agora busca na Justiça comprovar que o marido foi executado e exigir reparação.
Caso comprovado, seria mais um caso do que o pesquisador César Muñoz vê como indícios de execuções extrajudiciais e fraude processual para acobertamento de homicídios por policiais na Baixada Santista.
"Observamos vítimas que foram removidas já mortas pelo Samu, ou que chegaram nas autópsias nuas, em uma forma de destruir a evidência, já que a roupa pode ter resíduo de pólvora", diz Muñoz, diretor associado da ONG Humans Rights Watch.
Guerra de vingança em vez de inteligência
Muñoz e Beatriz eram duas das centenas de pessoas presentes na Audiência Pública convocada pela Ouvidoria das Polícias de SP para debater as operações Escudo e Verão, que ao todo deixaram um saldo de mais de 80 mortos em comunidades pobres de Santos, Guarujá e São Vicente desde agosto do ano passado. Entre os órgãos participantes também estava o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que há 18 anos estuda a dinâmica do crime e resposta policial no país.
Para o coordenador de projetos da entidade, David Marques, as 2,6 toneladas de drogas apreendidas junto de 119 armas de fogo, segundo dados oficiais da SSP, são um resultado muito pequeno para uma operação desta magnitude. Além das apreensões, a SSP afirma que 1.025 pessoas foram detidas, metade destes, procurados pela Justiça.
"Calcula-se que apenas em cocaína passa pelo Brasil atualmente R$ 64 bilhões; isso corresponde a quase 4% do PIB brasileiro, no qual o Porto de Santos tem uma centralidade junto com o Aeroporto Internacional de Guarulhos", destaca.
"Você olha os territórios nos quais estão concentradas as mortes, são áreas extremamente vulnerabilizadas, e compara com esse cenário geral que eu estou descrevendo, você passa a se perguntar que tipo de combate efetivo ao crime organizado é possível com esse tipo de operação", questiona o doutor em sociologia.
Questionamento semelhante é feito pelo pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV) Bruno Paes Manso. Ele compara os oito meses de operação Escudo e Verão na baixada com as informações e resultados obtidos por um único infiltrado da Polícia Federal nas grandes rotas do narcotráfico.
Se passando por intermediário, o agente Edmilson Lincoln Jardim Filho (pseudônimo criado pela polícia) ajudou na apreensão de 10,8 toneladas – quatro vezes o apreendido na operação paulista – e colocou a Polícia Federal no encalço de 33 traficantes internacionais de cocaína.
"Com inteligência e estratégia você consegue resultados que desestruturam os grupos criminosos, não com essa guerra de vingança, essa guerra contra pobre que até mancha a imagem da polícia com a qual muitos passam a achar que polícia é bandido"” critica o pesquisador. "Você pode ter um balanço com números de drogas tal, mas do ponto de vista estratégico é como enxugar gelo".
Policiais vulneráveis
No dia 30 de março o cabo da PM Raonei Vieira foi morto por colegas policiais na zona sul de São Paulo. Segundo Beatriz, ele seria um dos policiais envolvidos na morte do seu marido na baixada. Sua morte acaba fazendo parte do que Paes Manso chama de "teatro macabro", com aplicação de uma política de segurança pública nociva até mesmo para os agentes públicos.
Desde o ano passado vem aumentando o número de policiais militares e civis mortos em SP. Apenas no primeiro mês de 2024 o número de PMs assassinados supera o total de agentes mortos por criminosos em todo o primeiro trimestre de 2023 em São Paulo, revelando a exposição sofrida pelos agentes em meio à política voltada para o confronto.
"Temos esse crescimento na vitimização policial mostrando que este discurso acaba colocando os policiais em condição de maior vulnerabilidade lá na ponta; policiais se arriscando e também estando mais evidenciados, acabam sendo mais vítimas", destaca David Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em paralelo a isso, 31 policiais cometeram suicídio no ano passado, segundo dados obtidos pela Ponte Jornalismo. Trata-se do maior número em 11 anos, e um aumento de 63% em relação ao ano anterior. Foi a segunda causa mais frequente de mortes de policiais, atrás de morte natural (32).
"É uma situação muito estressante para estes profissionais; com o fim da Operação Verão, ficam algumas questões como qual será a situação dos policiais destacados para a região, atuando muitas vezes longe de casa, em territórios pouco conhecidos? O crime foi embora?", questiona Marques.
Passada a operação, a Pasta afirma que "a estratégia para combater o crime organizado por meio da asfixia financeira do tráfico de drogas agora dá lugar à ampliação de efetivo de 341 PMs que passam a atuar de maneira permanente nas cidades da região".
Retrocesso
Quem também fica na região para lidar com os resultados letais das operações são os moradores das favelas da Baixada Santista. Pessoas como Camila* (nome fictício), que também enterrou o marido no mês de fevereiro, morto de manhã em casa. "Ela conta que por duas horas foi impedida de entrar em sua casa, na Vila Pantanal. Assistiu ao corpo do marido ser retirado de sua casa, reconhecendo-o somente pelo pé exposto.
"Meu filho hoje quando vê um policial começa a tremer todinho e implora para não ser morto, falando 'não me mata, sou só uma criança'", diz a cozinheira, que acusa policiais de torturarem seu companheiro antes de matá-lo. Um ferimento profundo no braço de dele não foi registrado pela perícia, conforme observou a reportagem no laudo pericial fornecido por ela.
Ela conta que uma semana antes do marido ser morto dentro de casa, policiais já haviam visitado o imóvel de manhã perguntando se ele tinha passagem pelo sistema prisional.
No ano passado, as mortes cometidas por policiais militares e civis em serviço cresceram 39,6% no Estado de São Paulo em 2023. Foram registrados 384 óbitos desse tipo, ante 275 no ano anterior.
Números que para especialistas são resultado direto das políticas do Secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite (PL) e do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
"São Paulo era um caso de sucesso na segurança pública", afirma Muñoz, da HRW. "Faz 20 anos que víamos progressivamente uma redução da criminalidade no Estado, especialmente nos homicídios; até 2022 vimos também a redução muito importante da letalidade policial e da morte de policiais em serviço, fruto de vários fatores, como a implantação das câmeras corporais, uma política que surgiu do próprio comando da PM."
Dados mostram que elas são efetivas, trazendo resultados positivos para a polícia e para a população. "O Tarcísio nunca explicou porque é contra, e eu gostaria de saber por que; que ele mostre com dados de que forma tirar as câmeras corporais da polícia vai melhorar a segurança pública de todos".
Nos últimos dois anos, Paes Manso vê um retrocesso, e a aplicação de uma política de segurança semelhante à do Rio de Janeiro, que na sua avaliação, se provou fracassada e ineficiente em muitos aspectos. Até o ano passado, o Rio de Janeiro possuía a maior taxa de letalidade policial do país, junto da maior mortandade de agentes em serviço. Ao contrário de conter o crime organizado, este se fortaleceu.
"Essa disposição para a guerra, para o confronto levou o crime organizado a bater de frente com a polícia ao vê-la como máquina de extermínio, começando a montar um discurso para seduzir a molecada a participar como se fossem jihadistas antissistema que não abaixam a cabeça para o sistema", defende. "A política de guerra produziu nossos homens bombas que preferem morrer antes dos 25 anos".
Beatriz assiste temerosa em casa ao surgimento de uma revolta contra a corporação. "Meu filho mais velho todo dia olha pra mim e fala: 'mãe, eu vou parar de estudar, eu quero matar os policiais que mataram meu pai'. Aí eu ensino pra ele que não pode, que quer ajudar as pessoas, que estude e vire advogado", conta. "Eles querem matar os pais na favela, esperando os filhos crescerem para trocar tiro com eles e matar os filhos também".
Carta branca para matar
Na avaliação de Paes Manso, autor do livro A República das Milícias, que conta a história dos grupos paramilitares no Rio de Janeiro, a implantação de ideologias de extrema direita na polícia e a carta branca para matar são um risco para a própria corporação.
O secretário Guilherme Derrite já havia sido afastado da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) nos anos 2010 por conta de sucessivos episódios de matanças em operações. Posteriormente ganhou notoriedade ao divulgar um áudio direcionado a praças e soldados no qual afirmava que achava "vergonhosa” a presença de policiais que ao longo de cinco anos não haviam matado mais de três pessoas. O áudio lhe rendeu uma punição. Em 2018, foi eleito deputado na onda conservadora que varreu o pleito naquele ano.
Após assumirem o governo e a pasta da Segurança paulista, em 2023, Tarcísio e Derrite realizaram a troca de mais da metade do comando da PM, incluindo o número 2 da corporação, em um ato inédito, trazendo para os postos mais altos coronéis alinhados com uma polícia mais combativa.
"Você sempre teve na PM paulista oficiais que a entendiam como uma instituição de Estado. De repente, tem um grupo armado em defesa da sua ideologia e do seu grupo político, politizando a Polícia Militar, o que é um problema que ela sempre tentou evitar", afirma Paes Manso. "Isso é veneno para qualquer corporação", compara ele com as Forças Armadas, cooptadas pelo governo de Jair Bolsonaro.
"Essa carta branca para matar é uma senha de que eles estão livres para fazer o que querem; o que você faz com esse poder de vida e morte das pessoas nas ruas? Você fica rico com isso e passa a se associar a quadrilhas, a se associar com o crime para matar o rival e ganhar dinheiro", diz ele. Foi em um cenário assim que se expandiu o chamado Escritório do Crime, comandado pelo ex-policial Adriano da Nóbrega na zona oeste do Rio.
"A violência policial vem junto com a corrupção policial, foi o processo central de formação das milícias no Rio; fragilizar o controle sobre a polícia e estimular o heroísmo segue neste caminho; dar carta branca para matar é o passo seguinte para empurrar mais pessoas para se associarem, ficarem ricos e ganharem poder", conclui Paes Manso.
A reportagem da DW solicitou entrevista com o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite, com o com o secretário-executivo da Pasta, Osvaldo Gonçalves, e com o chefe de Gabinete, Paulo Maculevicius Ferreira. Todos os pedidos foram negados.
Autor: Gustavo Basso