No dia 17 de março de 2014, agentes da Polícia Federal (PF) cumpriram mandados de busca e apreensão em seis estados e no Distrito Federal num inquérito sobre atos ilícitos em uma rede brasiliense de postos de combustíveis.
A operação, porém, acabou sendo o estopim de uma investigação que revelou um amplo esquema de corrupção em contratos públicos, tendo como epicentro a maior estatal do país.
As apurações, que começaram em Curitiba, se expandiram para São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, além de países no exterior. Após dez anos de seu início, o legado da Operação Lava Jato, encerrada em 2021, tem sido questionado sistematicamente por especialistas de direito e política, que veem em sua gênese má atuação do Judiciário e a ascensão de personagens que resultaram no fortalecimento da extrema direita no Brasil, sendo o principal deles o ex-presidente Jair Bolsonaro.
"Quando se compara as perdas e os ganhos, a perda é muito maior", aponta Fabio Kerche, professor de ciência política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). "A corrupção existiu, mas os procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e o juiz Sergio Moro perderam a mão quando chegaram ao núcleo empresarial e político. As correlações foram precipitadas, pessoas foram presas sem provas, tudo na base da delação premiada."
"Para que a Lava Jato pudesse ter considerados aspectos positivos seria necessário que seu legado fosse institucionalizado, e mesmo assim não seria necessariamente um legado positivo. Mas ela não teve preocupação em institucionalizar seus avanços, justamente porque se organizou como uma cruzada voluntarista e com interesses políticos bastante evidentes", argumenta Frederico Normanha, professor de ciência política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Lava Jato no imaginário social
Em 2017, uma pesquisa do antigo Ibope mensurou que a corrupção era a principal preocupação dos brasileiros, superando temas como segurança e saúde pública. O resultado era uma consequência do modo como a Lava Jato usou a imprensa para consolidar sua imagem perante o público – e também a agenda anticorrupção como o assunto mais importante do país.
No decorrer dos últimos anos, essa percepção foi mudando. Em dezembro 2023, uma pesquisa Datafolha mostrou que 8% dos brasileiros se preocupavam com corrupção. Na ocasião, saúde (23%), violência/segurança pública (10%) e educação (10%) lideravam a lista.
"A Lava Jato construiu isso no imaginário social ao colocar em lados opostos instituições estáveis, como o poder judiciário e o Ministério Público Federal, formadas por quadros com suposta formação técnica, e a classe política, que por sua vez estaria sempre poluída por interesses escusos", argumenta Mauricio Stegemann Dieter, professor de direito penal e criminologia na Universidade de São Paulo (USP).
"Ser contra a corrupção é algo elementar. É como ir para uma passeata dizendo ser contra o câncer. Quem se apropria desse discurso naturalmente coloca o outro lado na defensiva, neste caso os políticos perante a população, e acaba assumindo uma jornada quase messiânica dos bons contra os maus", complementa ele.
Kerche destaca o papel da imprensa na consolidação da Lava Jato no imaginário social "com uma quantidade enorme de matérias sem o devido contraponto". Esse efeito, garante ele, ainda pode ser notado, mesmo com o fim da operação e as revelações de má conduta dentro da investigação. "Por mais que não se tenha provado nada contra o Lula, nenhum dinheiro, documento, nada, as pessoas ainda o chamam de ladrão. Pegou e não sai mais".
Na pesquisa Datafolha do fim do ano passado, 59% dos brasileiros reprovavam o governo petista no tema combate à corrupção. Em outro levantamento, desta vez da empresa Quaest/Genial, divulgada no início de março, 44% dos brasileiros desaprovam a atuação de Moro, ante 40% de aprovação.
Por outro lado, a percepção positiva em relação às investigações segue, já que para 49% elas ajudaram a combater a corrupção, enquanto 37% analisam que elas não tiveram esse impacto.
Ascensão da extrema direita
O impacto político da Lava Jato é diverso. Seu surgimento há dez anos evidenciou a corrupção sistêmica em quase todos os partidos políticos do país, mas serviu de cruzada contra o PT, à época no poder com a presidente Dilma Rousseff.
As revelações de que a cúpula da legenda de esquerda pudesse estar envolvida em ilegalidades contribuiu decisivamente para o processo de impeachment de 2016, assim como para a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, posteriormente revogada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O desgaste da classe política como um todo suscitou o surgimento de novos personagens, que aproveitaram o discurso da moralidade imposto pelos procuradores de Curitiba para chegar ao poder.
Nas eleições de 2018, PSDB e PMDB perderam espaço no Congresso Nacional para o PSL e o PP, mas próximos do discurso em voga no período e menos identificados enquanto siglas tradicionais perante a população. E Bolsonaro, então no PSL, foi eleito presidente.
"É impensável que um deputado do baixo clero, defensor da ditadura, pudesse ter protagonismo com um discurso raivoso, xenofóbico e absolutamente autoritário, se o processo eleitoral não estivesse completamente fora da sua normalidade", assinala Stegemann Dieter.
"A crise do governo Dilma e a eleição de Bolsonaro não seriam possíveis sem a Lava Jato, embora não possam ser atribuídas exclusivamente a ela. É preciso considerar a ideologia conservadora e autoritária, além dos interesses políticos dos próprios agentes da Lava Jato, cujo alinhamento à extrema direita já aparecia em seus discursos desde 2014 e especialmente 2016, mas que se confirmam com as investidas políticas de Deltan Dallagnol e Moro", pondera Normanha.
Dallagnol e Moro entraram na política em momentos similares. O procurador paranaense símbolo da operação foi eleito deputado federal em 2022 pelo Podemos, acabou cassado em junho do ano passado.
Moro abandou a magistratura para ser ministro da Justiça de Bolsonaro após as eleições de 2018. Depois desentendimentos com o então presidente, deixou o governo em abril de 2021 e concorreu ao senado pelo Paraná no ano seguinte. Foi eleito e hoje é filiado ao União Brasil.
Apesar de usar o discurso a favor da operação, Bolsonaro e seu governo esvaziaram a atuação da Lava Jato. Além da demissão de Moro, o então Procurador-Geral da República e chefe do MPF, Augusto Aras, chegou a dizer que "o lavajatismo não poderia mais perdurar no país".
Acordos contestados
Os resultados da Lava Jato e seu modus operandi impactaram também a classe jurídica, sobretudo após as divulgações de mensagens do Telegram reveladas pela Vaza Jato e a Operação Spoofing, que mostraram o conluio entre procuradores do MPF e o ex-juiz Moro.
"Lamento o que aconteceu, porque talvez tenhamos desperdiçado a oportunidade de fazer um combate à corrupção, que efetivamente existiu. Mas esse combate precisava ser baseado na legalidade e respeitando as regras do jogo", avalia Kerche.
Ele ressalta que o país vivia um amadurecimento nos instrumentos de controle à corrupção, iniciado no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e continuado nas gestões petistas, com o fortalecimento da Controladoria Geral da União (CGU), alçada ao patamar de ministério, da Polícia Federal e do Tribunal de Contas da União (TCU).
"Mas Lava Jato vendeu a ideia de que aquela era a única forma de combater. O que aconteceu assim que Bolsonaro assumiu? Ignorou a lista tríplice. Lula, por razões óbvias, fez o mesmo. O Ministério Público Federal vai precisar se reconstruir em alguns sentidos", acrescenta.
Defensores da operação argumentam que, a despeito dos problemas revelados na Vaza Jato, as investigações surtiram efeitos positivos. Dados obtidos pelo jornal Valor Econômico mostram que os 27 acordos de leniência feitos com o Ministério Público somam R$ 12,98 bilhões. O MPF, no entanto, não informa quanto desse valor foi pago.
O gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, relator dos casos da Lava Jato na Corte, informou que 123 acordos de colaboração premiada e R$ 2 bilhões foram devolvidos aos cofres públicos.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) investiga desde o ano passado a atuação dos procuradores do MPF e do ex-juiz Moro nos acordos firmados. Segundo a revista Veja, um relatório deve ser divulgado em breve, mas as apurações iniciais indicam "falta do dever de cautela, de transparência, de imparcialidade e de prudência dos magistrados envolvidos na Operação Lava Jato."
"Recuperou um percentual, mas a que custo? Houve uma lesão profunda nos interesses econômicos brasileiros. A Petrobras perdeu valor de mercado, as empreiteiras perderam sua capacidade de engenharia, houve uma redução do emprego no país. Além disso, vários acordos de leniência já foram ou serão declarados ilícitos", pondera Stegemann Dieter.
No fim de fevereiro, o Supremo fixou prazo de 60 dias para renegociação de acordos de leniência firmados na Lava Jato. Segundo o jornal O Globo, as leniências das onze empresas beneficiadas pela decisão do ministro André Mendonça somam, ao menos, R$ 17 bilhões. De acordo com a reportagem, a Procuradoria-Geral da República está acompanhando as negociações.
Autor: Guilherme Henrique