Uma das maiores ameaças à transição pacífica de poder na Síria está no noroeste do país. Enquanto muitos sírios-árabes celebram a queda do regime liderado pelo ditador Bashar al-Assad e o fim da longeva guerra civil no país, os sírios de origem curda na região enfrentam uma crise existencial.
Os confrontos entre os combatentes sírios apoiados pela Turquia e as forças curdas sírias preocupam sobremaneira, alertou recentemente o enviado especial das Nações Unidas na Síria, Geir Pederson. Os demais motivos de preocupação imediata são as incursões israelenses no território sírio e a proteção das minorias no país árabe.
Qual a situação no noroeste do país?
Os combates entre facções rivais em meio à guerra civil estavam há anos estagnados. Os grupos de oposição que controlavam suas respectivas áreas no norte da Síria tendiam a evitar os confrontos. Mas eles ressurgiram nos últimos dias.
Após a queda de Assad, o chamado Exército Nacional Sírio (SNA), um grupo de combatentes apoiado pela Turquia, tentou avançar sobre áreas controladas por curdos sírios.
O governo turco se opõe à presença curda em sua fronteira. Ancara os considera uma ameaça, dada a longeva e frequentemente violenta luta dos curdos por independência na Turquia.
À medida que avançavam as milícias apoiadas pela Turquia, as forças curdas sírias, conhecidas como Forças Democráticas Sírias (SDF), perdiam território. A Turquia também usou ataques aéreos com aviões e drones para apoiar os avanços do SNA.
Na semana passada, as duas partes disseram que negociaram um acordo de cessar-fogo, com a ajuda dos Estados Unidos, que deverá envolver a retirada das forças curdas sírias de algumas das áreas que controlavam anteriormente.
Outro grupo rebelde, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), também conhecido como Organização para a Libertação do Levante, assumiu o controle da cidade de maioria árabe de Deir al-Zour, de onde as SDF se retiraram após uma revolta local. O Exército Livre Sírio (SFA), treinado pelos EUA, também ganhou algum terreno na região.
As SDF se dizem agora abertas a participar de um novo processo político na Síria.
A origem das tensões
O povo curdo é frequentemente descrito como um dos maiores grupos étnicos do mundo sem um país próprio. Se tivessem um território, ele estaria nas áreas de maioria curda na região onde o Iraque, o Irã, a Síria e a Turquia se encontram.
Em cada um desses países há um movimento de independência curda, cujos membros fizeram lobby ou até lutaram por um Estado independente ou por uma autonomia, com níveis diferentes de sucesso.
Cada um destes movimentos de independência curda foram reprimidos pelos seus respectivos governos, também com graus variados de sucesso. Na Turquia, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) recorreu à violência para tentar atingir seus objetivos.
Na Síria, por volta de 2012, no início da guerra civil, as forças de Assad se retiraram das áreas de maioria curda no nordeste e no leste da Síria sem impor muita resistência. Essa movimentação não foi isenta de controvérsias.
Os revolucionários árabes sírios disseram que não aceitavam que os curdos se tornassem independentes da Síria e insistiam que o país deveria permanecer unido.
Houve também acusações de que os curdos teriam traído os objetivos originais dos revolucionários da Síria – de derrubar o regime – e que, em uma tentativa de perseguir seu próprio objetivo de independência, os curdos teriam mantido uma neutralidade na guerra civil.
Os curdos nunca realmente lutaram contra as forças de Assad. Essa suposta "traição" gerou hostilidades entre árabes sírios e curdos sírios, que se somaram a tensões étnicas e atitudes racistas que já ocorriam anteriormente.
Durante a guerra civil, que já dura quase 14 anos, os EUA se aliaram aos curdos da Síria para combater a organização extremista autodenominada "Estado Islâmico" (EI). Surgido no Iraque, o grupo se aproveitou do caos gerado pela guerra civil e estabeleceu a "capital síria" de seu planejado "califado" na cidade de Raqqa.
As forças americanas e curdas foram os principais atores na luta contra o EI na Síria. Enquanto combatiam os extremistas, os curdos sírios também expandiam o território sob seu controle, incluindo áreas de maioria árabe, como Raqqa e Deir al-Zour.
Os moradores dessas regiões protestaram contra a liderança curda, assim como ocorreu há poucos dias, quando exigiram que os curdos permitissem a entrada de outros grupos rebeldes.
Todas essas questões, passadas e presentes, permanecem na raiz dos problemas enfrentados agora pelos curdos sírios. Com o fim do regime de Assad, eles se veem espremidos entre grupos sírios árabes e a Turquia, com os EUA como seu único aliado.
Uma das questões que mais preocupa os curdos da Síria é o que será da aliança com os americanos depois que o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, retornar à Casa Branca. Há temores de que o novo governo retire seus soldados da Síria por completo, abandonando os curdos. Atualmente, ainda há cerca de 900 soldados americanos no país.
Por que isso importa?
Estima-se que 4,6 milhões de pessoas vivam na Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria (AANES), controlada pelos curdos. A área também é frequentemente chamada de Rojava pelos curdos locais, abrigando ainda curdos do Iraque, Turquia e Irã.
A ONU estima que mais de 100 mil pessoas, a maioria delas curdas, fugiram da região desde o início da ofensiva rebelde contra al-Assad, no final de novembro. Várias centenas de pessoas foram mortas nos confrontos.
Além dos aspectos humanitários, o território ocupado pelos curdos incluía a maioria dos campos de petróleo da Síria, além de ser um grande produtor de trigo. O controle sobre os campos de petróleo, em especial, será fundamental para o novo governo. A renda obtida com a exploração petrolífera deverá ajudar a devastada economia do país.
Especialistas também sugerem que os avanços do SNA apoiado pelo Turquia para tomar o máximo de território possível deve ir além dos objetivos turcos de remover os curdos da fronteira. O controle territorial também é uma questão de influência e poder, em meio à formação do próximo governo sírio.
Além disso, as SDF curdas administram grandes campos de prisioneiros no nordeste da Síria, que abrigam milhares de extremistas do EI. Anteriormente, os combatentes das SDF disseram que, se forem atacados, serão forçados a deixar os campos de prisioneiros desprotegidos.
Autor: Cathrin Schaer