Com um sininho de ferro na mão, voluntários dão as boas-vindas a quem chega a pé pela lateral da rodovia Presidente Dutra na altura de São José dos Campos, São Paulo. O tilintar no metal compete com o ruído do motor dos caminhões que cruzam a via mais movimentada do país, ligação entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
É perto do meio-dia, o termômetro marca 30°C. Muitos que chegam têm uma expressão de fadiga, mas se animam com a saudação. Eles carregam mochilas, um cajado e a imagem de Nossa Senhora da Aparecida nas mãos. Os dias que antecedem o feriado nacional dedicado à santa, 12 de outubro, mobilizam uma legião de romeiros que peregrinam até Aparecida, no interior paulista, sede do maior templo católico do país.
Celeste Miranda, 42 anos, já estava na estrada há 30 horas quando a reportagem da DW a entrevistou. Era a primeira vez que fazia o percurso a pé. Logo no início, recebeu a notícia do falecimento do pai, mas não desistiu da jornada.
"Eu vim para aprender a perdoar. Eu vivi uma situação difícil e não consigo perdoar. Eu estou aqui caminhando nesta intenção e muitas coisas passam na cabeça", explicou Miranda, que ainda percorreria 28 quilômetros naquele dia até a parada para dormir.
Neste ponto da Dutra, uma tenda montada por voluntários ampara quem passa por ali. Água, comida, banho e até sorvete são oferecidos. João Almeida recebe todos com um sorriso e incentiva os romeiros a parar, se hidratar e seguir em frente.
"Eu tenho só 15% de visão num olho, mas fiz esta mesma caminhada semana passada. Encontrei muitas pessoas boas que me serviram, agora, sou eu que sirvo", diz Almeida.
Peregrinação arriscada
Ao longo de todo o mês de outubro, cerca de 35 mil peregrinos são esperados nos acostamentos da via Dutra. Muitos grupos vestem a mesma camiseta, alguns vão solitários e concentrados, outros carregam grandes bandeiras e até cruz de madeira.
À medida que o feriado se aproxima, o fluxo aumenta e exige uma operação especial da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Diversas viaturas e agentes acompanham a passagem dos peregrinos em entroncamentos de rodovias, e os veículos são proibidos de trafegar pelas faixas adicionais em alguns trechos, que ficam isoladas para os pedestres.
O risco é grande. Antes do feriado nacional, pelo menos três pessoas morreram durante a romaria. Na sexta-feira (11/10), um ciclista de 76 anos foi atropelado por um ônibus depois de se desequilibrar e cair na pista. Dias antes, atropelamentos em pontos distintos da rodovia mataram dois romeiros e deixaram feridos.
A recomendação é que os peregrinos usem roupas claras, andem em fila indiana no sentido oposto ao dos veículos, não se distraiam com o celular e evitem caminhar à noite. Foi neste período que os acidentes registrados nesta temporada aconteceram.
Elza da Silva, 70 anos, caminha com um curativo no joelho. Ela caiu no acostamento na noite anterior e sente dores na região. Em grupo, Silva iria montar uma barraca de acampamento e descansar para chegar em Aparecida no dia seguinte, 42 quilômetros à frente.
"Eu faço a caminhada para agradecer um livramento que recebi. Eu bati feio o carro, mas fiquei bem e não matei ninguém. Fico emocionada só de pensar", conta Silva à DW enquanto troca a bandagem com a ajuda de uma enfermeira voluntária.
Massagem, dores e frustração
Sentado no acostamento da rodovia federal, Airton Junior, 33 anos, enrola uma faixa na coxa dolorida. Ele já caminhou 100 quilômetros e espera fazer os últimos 70 nas próximas 30 horas. É a segunda vez que faz o percurso e pretende cumpri-lo todos os anos como forma de devoção à santa.
"Sofri um acidente de moto, uma linha de pipa cortou meu pescoço e fiquei entre a vida e a morte. O médico falou que só Deus me salvaria. Eu prometi que, se sobrevivesse, faria a peregrinação até Aparecida para agradecer", explica Junior.
Alguns quilômetros adiante, na divisa entre Taubaté e Pindamonhangaba, centenas de romeiros descansam na sombra de uma grande tenda. Alunos de uma universidade prestam atendimento de saúde, tratam calos nos pés e fazem massagem.
Irenlda Neves está sobre a maca. Ela mora em Iraquara, Bahia, e começou a caminhada em São Miguel Paulista, distrito na zona leste de São Paulo. Com fortes dores, ela desiste de seguir a pé e vai pegar carona até Aparecida num ônibus de apoio.
"Eu vim agradecer a segunda chance que tive de viver. Sofro de depressão, minhas filhas também, também vim pedir forças", conta Neves à DW.
Perto da maca, Maria Afonsa Felicio de Jesus, 66 anos, e Ivo Silva de Jesus, 68 anos, montam a barraca para passar a noite. Ela convenceu o companheiro a acompanhá-la por 160 quilômetros a pé até o santuário nacional e se dizem surpresos com tanta solidariedade que encontram pelo caminho. Acostumados ao trabalho puxado de feirante, eles se consideram preparados fisicamente.
"É muito difícil, doloroso, mas a gente encontra muita gente de bom coração na estrada", diz Maria Afonsa, que faz sua terceira peregrinação. "Quando vim pela primeira vez, era um momento muito triste, de desemprego. Agora eu venho agradecer."
Início da devoção
A devoção popular à santa tem mais de 300 anos de história. Em 1717, três pescadores encontraram a imagem de Nossa Senhora Aparecida no rio Paraíba, próximo de onde hoje está construído o santuário. Com uma pesca abundante depois do aparecimento da santa, eles iniciaram a tradição de cultuar a imagem.
À época, a notícia se espalhou e logo surgiram as primeiras romarias até o local. A construção do atual templo pela Igreja Católica, com capacidade para abrigar 45 mil pessoas, só começou em 1955. Embora o feriado nacional tenha sido decretado em 1980 por ocasião da visita do Papa João Paulo 2º ao santuário de Aparecida, a data já fazia parte do calendário católico desde 1953, quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) escolheu o dia dedicado à santa.
Em 2024, o santuário espera receber 112 mil visitantes para a festa religiosa. O Brasil ainda é o país com maior número absoluto de católicos batizados, com cerca de 180 milhões. Em todo o mundo, 1,3 bilhão de pessoas adotam essa religião, apontam estatísticas divulgadas pelo Vaticano.
A emoção da chegada
Com 27 curativos protegendo bolhas nos pés, Elaine Germano avista de longe o templo católico. Ela percorreu 230 quilômetros em seis dias, de Campinas a Aparecida, cruzando duas rodovias. Pelo caminho, disse ter sentido calor, sede e viu duas companheiras do grupo de 17 pessoas desistirem.
Emocionada, ela conta ter peregrinado para agradecer pela saúde do irmão. Ele foi diagnosticado com câncer de intestino, enfrentou 1,5 ano de tratamento, fez cirurgia e se recupera bem.
"Eu só pedi à santa que ele não sofresse tanto nesse processo. Amanhã meu irmão vem me buscar de carro e eu nem consigo descrever o que estou sentido agora", diz Germano momentos antes de entrar no santuário.
Com um cajado na mão, mancando, Sílvia Sousa Tomaz celebra o término da romaria. No fim do percurso, iniciado em em Biritiba-Ussu (SP) 170 quilômetros antes, ela encontrou o marido e a filha, de 4 anos, que caminhou os últimos quatro últimos quilômetros de mãos dadas com a mãe.
Quando Tomaz nasceu, o diagnóstico de sopro no coração exigia uma cirurgia complexa. A mãe dela fez uma promessa à Nossa Senhora da Aparecida, e o quadro foi amenizado com o tempo, sem necessidade de operação, conta a peregrina.
"Já era devota por conta dessa história da infância. Mas eu decidi fazer a romaria depois que minha cunhada descobriu um câncer. Ela infelizmente não sobreviveu. Mas mantive a decisão de vir e foi uma experiência muito forte", conta à DW perto da porta da saída da igreja.
Autor: Nádia Pontes