Em 2022, a jovem Jina Mahsa Amini, de 22 anos, foi presa pela polícia moral do Irã, acusada de usar incorretamente o hijab, e, três dias depois, foi declarada morta. O caso motivou protestos massivos que extrapolaram as fronteiras do país, e que rapidamente se transformaram na maior revolta popular vista pelo Irã em décadas.
A fissura que a morte de Amini deixou na sociedade iraniana inspirou a história da fissura de uma família fictícia, contada no drama A Semente da Figueira Sagrada, e que é um dos cotados, ao lado do brasileiro Ainda Estou Aqui, ao título de melhor filme internacional no Oscar 2025.
O longa, porém, chegou como uma produção alemã à lista dos 15 pré-selecionados da categoria, após seu diretor, o iraniano Mohammad Rasoulof — ele mesmo alvo do regime fundamentalista de Teerã — gravar a obra secretamente no Irã e fugir do país a pé.
Filme iraniano com produção alemã
Hoje, Rasoulof vive na Alemanha, onde a maior parte da edição do filme foi feita. O longa-metragem foi produzido pela Run Way Pictures, sediada em Hamburgo, recebeu financiamento de um conselho de cinema do norte do país e conta com um distribuidor alemão. Isso gabaritou a obra a concorrer pela indicação ao Oscar ao lado de outros 12 filmes alemães.
O júri considerou o último triunfo cinematográfico de Rasoulof um "trabalho excepcional de um dos grandes diretores do cinema mundial".
"Estou muito feliz que o júri ousou reconhecer que há pessoas com antecedentes migratórios que também se sentem em casa aqui", disse um dos produtores de A Semente da Figueira Sagrada à agência alemã de notícias DPA. O diretor e seus produtores disseram em um comunicado que a seleção "mostra como o intercâmbio intercultural pode ser poderoso em uma sociedade livre e aberta".
"A perspectiva dos agressores"
O filme acompanha Iman, um investigador do Tribunal Revolucionário do Irã que é leal ao regime. Devido ao seu cargo, o governo espera que suas filhas, ambas com menos de 21 anos, não usem redes sociais. As duas porém, começam a se envolver com causas políticas e aos poucos mergulham nos protestos "Mulheres, Vida, Liberdade". Iman aos poucos vai sendo tomado por desconfianças quando sua arma pessoal desaparece, e começa a criar regras duras em casa. Ao mesmo tempo, ele questiona a natureza arbitrária e sumária das sentenças de morte que ele mesmo é obrigado a assinar.
Em Cannes, Rasoulof disse que decidiu concentrar a história nos agressores, aqueles que impõem a repressão governamental no Irã, em vez de apenas nas vítimas, depois de conhecer um funcionário do governo na prisão que confessou sofrer por ser cúmplice do regime.
"Ele disse: 'Não pense que estamos felizes fazendo isso. Todo dia quando entro nesta prisão, olho para o portão e penso: Quando vou me enforcar na frente daquela porta? Todo dia, meus filhos me perguntam: Qual é o seu trabalho? O que você realmente faz?' Essa foi a semente desta história", lembra Rasoulof.
"Quem são essas pessoas que ajudam o regime? Quais são suas motivações? Tentei realmente me aproximar delas para entender a psicologia, a relação delas com esse sistema que elas alimentam", completou.
Como o filme chegou na Alemanha
Rasoulof acompanhou de dentro da cela da prisão a maior parte dos protestos pela morte de Amini. Ele foi encarcerado na famosa prisão de Evin por assinar uma petição que pedia às forças de segurança que não usassem violência contra os manifestantes.
Foi lá que ele teve a ideia de um thriller que explora a violência estatal, a paranoia e a censura. Quando foi transferido à prisão domiciliar, em fevereiro de 2023, Rasoulof iniciou secretamente as filmagens do longa-metragem, pois estava proibido pelo regime de gravar qualquer conteúdo no país desde 2017.
Na prisão, os companheiros de cela de Rasoulof lhe contaram sobre uma rota secreta pelas montanhas até a fronteira. "Olhando para trás, acho que tive muita sorte e privilégio de ir para a prisão porque foi lá que conheci pessoas que me ajudaram a cruzar a fronteira", disse o diretor em entrevista em maio deste ano, em Cannes, poucas semanas após sua fuga.
No festival francês, A Semente da Figueira Sagrada venceu o Prêmio Especial do Júri e o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci).
"Estava bem claro para mim que o que mais importava agora era continuar fazendo filmes e contando minhas histórias",afirmou. "Eu tinha mais histórias para contar, e nada poderia me impedir de contá-las", completou.
Um dissidente em exílio
Foi assim que, quando terminou as gravações, em maio de 2024, Rasoulof fugiu do país. Ele havia acabado de ser condenado a oito anos de prisão e chicotadas por suas críticas ao regime. Depois de atravessar a fronteira, o cineasta conseguiu solicitar asilo na Alemanha, onde já havia morado. Seu passaporte havia sido confiscado no Irã antes de sua fuga, mas suas informações já estavam arquivadas junto às autoridades alemãs.
Rasoulof sabe que é improvável que consiga retornar ao Irã e agora abraça a ideia de se tornar um artista exilado.
Diretor premiado, ele já venceu o Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim, em 2020, com There is no Evil. O longa também foi gravado em segredo, quando ele aguardava a confirmação de outra sentença de prisão. Mas esta é sua primeira indicação ao Oscar.
Gravações arriscadas
Em entrevista à revista Vanity Fair, os atores e o diretor do filme contam os detalhes das gravações. Segundo eles, em todas as etapas da produção havia o risco de serem descobertos por autoridades iranianas. Em cenas externas, a equipe usava uma estética de gravação similar a um filme patrocinado pelo estado.
Em alguns casos, era necessário extremo cuidado, pois as atrizes tiveram que gravar cenas sem o hijab, o que é considerado ilegal no Irã.
Os atores também foram escolhidos com cautela. Muitos já eram conhecidos por criticarem o regime publicamente. Em outros casos, foram necessárias reuniões secretas para encontrar profissionais que não denunciassem a obra, contou Rasoulof à Vanity Fair. O filme também inclui extensas filmagens reais postadas nas redes sociais iranianas da polícia reprimindo manifestantes após a morte de Amini.
Três atrizes do filme, Niousha Akhshi, Mahsa Rostami e Setareh Maleki, também tiveram que fugir do Irã e hoje vivem na Alemanha. Soheila Golestani, que faz o papel da esposa de Iman, continua no Irã e foi proibida de deixar o país. A produção é investigada por autoridades iranianas por disseminar corrupção e atentar contra a segurança nacional.
Força alemã no Oscar
No passado, o júri alemão escolheu histórias e produções locais. Entre elas, estão O Tambor (1979), de Volker Schlöndorff, A Vida dos Outros (2006), de Florian Henckel von Donnersmarck, e Nada de Novo no Front (2022), de Edward Berger, todos vencedores do Oscar de melhor filme internacional no ano seguinte ao lançamento.
Dos 15 filmes pré-selecionados anunciados em 17 de dezembro, cinco finalistas serão anunciados em 17 de janeiro. Os vencedores serão apresentados em março de 2025.
gq/ra (DW, ots)