Quem vive em Teresina conhece bem a realidade do transporte público. O tempo de espera longo, a superlotação e sucateamento da frota de ônibus são reclamações frequentes entre os usuários, problemas que decorrem de anos e que não mudaram com a inédita licitação de 2015. Para os passageiros, a esperança de melhora do sistema parece estar cada vez mais distante.
São milhares de trabalhadores, estudantes, cidadãos que precisam se deslocar para irem às compras, ao médico, a um evento cultural no Centro. A demanda é grande, mas o serviço deixa a desejar. O relato é de um dos vários usuários indignados por receberem um serviço de transporte questionável, ao preço de R$ 4 a passagem inteira e R$ 1,35, a estudantil.
“A quantidade de ônibus não é suficiente para a população que necessita dele. Os ônibus, em qualquer hora, estão extremamente lotados. A minha parada é perto da parada final, mas, às vezes, não para porque não tem espaço”, lamentou a acompanhante terapêutica e passageira Lara Araújo.
Terminais para motoristas particulares
Nesse contexto, uma intervenção polêmica da prefeitura de Teresina dividiu a opinião pública. Um decreto municipal, em caráter experimental, determinou que os oito terminais de ônibus da capital piauiense sejam usados por taxistas, mototaxistas, motoristas que trabalham por meio de aplicativos (carro e moto) e entregadores.
Para usarem as dependências dos terminais, os trabalhadores precisarão pagar uma taxa anual de R$ 120, dinheiro que custeará a manutenção e vigilância dessas estruturas. Isso garantirá acesso a banheiros, espaço para alimentação e ponto de descanso aos motoristas.
Veja o decreto publicado no Diário Oficial do Município
Sem operação desde a pandemia
Segundo a Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito (Strans), a medida se justifica pela inoperação dos terminais desde a pandemia, quando o então prefeito Firmino Filho (PSDB) decidiu fechá-los para evitar contaminações causadas pela aglomeração. No entanto, mesmo com o fim da crise sanitária, as estruturas seguiram sem o uso principal: embarque e desembarque dos usuários de ônibus.
O complexo de terminais de Teresina é recente, iniciado em 2016 e entregue em 2018, sob o custo de mais de R$ 30 milhões. Batizado de “Inthegra”, o sistema ainda possui corredores exclusivos e estações de ônibus espalhados pela cidade. Sem o devido funcionamento, o município busca alternativas para as estruturas, a exemplo do uso por motoristas de aplicativo e taxistas.
“Hoje, para Teresina, como é uma cidade não tão grande e os trajetos não são longos, esses terminais de integração ficaram em desuso. Por quê? No meu ponto de vista, os terminais de integração foram construídos em locais onde não deveriam ser construídos”, avaliou Felipe Leal, diretor de Transporte Público da Strans, em entrevista ao Band.com.br.
244 ônibus para cidade de 800 mil
Com uma população superior a 800 mil, atualmente, Teresina conta com uma frota de 244 ônibus, responsável por atender 97% dos bairros, ante 150 que operavam em 2021. Segundo a prefeitura, no contexto pré-pandemia, a capital era atendida por 400 veículos. A redução se deu, conforme expôs Leal, pela queda no número de usuários.
O diretor da Strans ainda reconheceu as deficiências no sistema teresinense e cobrou a “renovação urgente” da frota “sucateada”, em que o ideal seria a circulação de 320 a 350 ônibus na cidade. Atualmente, segundo Leal, são repassados R$ 4,7 milhões em subsídios para as empresas que operam em Teresina.
A gente tem ciência do que está acontecendo, que os ônibus estão sucateados. [Teresina] precisa da renovação de frota urgente. A última renovação de frota foi em 2018. De lá para cá, nunca mais um empresário comprou um ônibus novo (Felipe Leal, diretor de Transporte Público da Strans)
Baixa adesão popular aos terminais?
Outra justificativa que reforçou a destinação dos terminais para motoristas particulares tem a ver com a baixa adesão da população aos ônibus nesses locais, conforme apontou o diretor da Strans. Leal explicou que uma pesquisa de satisfação, realizada pela pasta, revelou que 92% dos teresinenses são contrários à reativação dessas estruturas de embarque e desembarque de passageiros.
“Todos os terminais de integração estão construídos dentro dos bairros na cidade de Teresina, onde o passageiro faz um deslocamento curto. Como exemplo, tem passageiro que faz um deslocamento de 500 metros. Sobe no ônibus e, 500 metros depois, está no terminal de integração para o transbordo. Então, isso gera, além da perda de tempo, transtorno. No meu ponto de vista, esses terminais de integração teriam que ser feitos num destino de todas as linhas, que é o Centro da cidade”, considerou o técnico da Strans.
“Frota insuficiente”
Diariamente, para quem depende de ônibus, a frota composta de 244 veículos é insuficiente. Entrevistadas pelo Band.com.br, duas teresinenses, dependentes do transporte público para irem ao trabalho, relataram tempo de espera que varia de uma a duas horas, fora do horário de pico. Para elas, o baixo número de coletivos é o que mais incomoda.
“O tempo de espera, dependendo do bairro e do horário, pode chegar a duas horas, visto a redução da frota, que já é pequena fora dos horários de pico. À noite, após as 18h, 19h, só ficam os ônibus que fazem rota para os shoppings”, criticou a gestora comercial Rosária de Carvalho.
Rosária perde, em média, 3 horas do dia para ir e voltar do trabalho, se considerar o tempo de espera dos ônibus para fazer o trajeto entre os bairros Residencial Jacinta Andrade, na Zona Norte, e Porto Alegre, na Zona Sul. Por conta desses problemas, chega a ter um gasto mensal de R$ 300 com aplicativos de transporte, uma maneira de contornar a escassez de coletivos na cidade.
“Eu costumo dizer que Teresina nem é capital, visto que uma capital que não possui transporte público não é capital. A frota não atende a necessidade da população. Como utilizo transporte público entre duas zonas distintas da cidade, posso afirmar que, na Zona Sul, é bem pior. Os ônibus só circulam, em sua maioria, nos horários de pico”, disparou a entrevistada.
Gestão anterior comenta
O Band.com.br procurou o ex-chefe da Strans Weldon Bandeira, último indicado pela gestão do prefeito Firmino. Apesar de rebater as críticas do atual diretor de Transportes da pasta quanto aos locais onde os terminais foram construídos, ou seja, nos bairros, concordou com a justificativa de que a redução no número de passageiros, sobretudo após a pandemia, prejudica a operação completa do sistema.
Para o ex-superintendente, o sistema chamado “tronco-alimentador” (ônibus que saem dos pontos finais para os terminais, onde os passageiros embarcam em outro veículo para irem ao Centro) foi criado para atender 8,5 milhões de viagens mensais. Nessa projeção, a frota total de 408 coletivos seria suficiente para atender a demanda dos terminais.
“Com essa quantidade de viagens, teríamos uma frequência ideal, onde teríamos ônibus saindo do terminal para o Centro da cidade, com intervalos de, no máximo, 10 minutos. E, nas linhas alimentadoras, na linha mais distante, haveria uma frequência de, no máximo, 30 minutos. Isso é o ideal, em termos de frequência. Porém, com a demanda que nós temos hoje, é impossível colocar o sistema tronco-alimentador da forma que foi projetado para funcionar. Por isso, retornou-se ao sistema radial, numa quantidade de ônibus bem inferior, algo em torno de 240 ônibus”, explicou Weldon.
Weldon também relembrou que o “Inthegra” possibilitou a retirada de parte da frota do Centro da cidade. Na prática, o sistema inaugurado em 2018 também possibilitaria a redução no congestionamento em pontos específicos da capital, já que os coletivos dos bairros parariam nos terminais.
Defesa de novo plano diretor
O ex-chefe da Strans defende a organização de um novo plano diretor voltado ao transporte público teresinense, focado na atual realidade dos usuários. Pelo que expôs na entrevista, dificilmente, o sistema “tronco-alimentador” será reincorporado, dados os altos custos para se manter os 408 ônibus necessários, num contexto redução no número de passageiros.
Dificilmente, o sistema tronco-alimentador funcionaria nessa nova realidade, a não ser que tivéssemos um subsídio bem maior [algo em torno de R$ 18 milhões a R$ 20 milhões, previu] (Weldon Bandeira, ex-chefe da Strans).
"Aí é onde entra a prefeitura, se consegue ou não manter dessa forma. Acredito que qualquer solução tem que ser discutida com a sociedade, com os usuários do transporte”, ponderou o antigo gestor da Strans.
Ação movida pelo MP em 2021
Essas insatisfações populares ganharam atenção do Ministério Público do Piauí, quando, em 2021, entrou com uma ação contra a administração municipal e as empresas de ônibus de Teresina. Na época, a petição cobrava 100% da circulação da frota e expôs o resultado de uma pesquisa que avaliou a percepção dos passageiros. Abaixo, veja alguns destaques do levantamento:
- “quantidade de veículos suficiente para atender a demanda” foi considerado ruim por 92% dos entrevistados;
- “o preço pago está de acordo com a qualidade do serviço oferecido” foi considerado ruim por 84,5%;
- “as viagens são cumpridas no horário” foi considerado ruim por 65,3% dos questionados;
- “a quantidade de passageiros dentro do ônibus não excede mais que 2,5 (pass/m²)” foi considerado ruim por 87,6% dos entrevistados.
O questionário eletrônico foi aplicado pela 32ª Promotoria de Justiça, entre maio e junho de 2018. O formulário possuía 17 perguntas e avaliou itens relativos ao conforto, confiança, conveniência, comunicação, segurança, acessibilidade, entre outros. A pesquisa foi respondida por 548 pessoas.
Em vídeo de 2018, prefeitura prometia ônibus a cada 12 minutos dos terminais da Zona Sul para o Centro. Assista abaixo!
Necessidade de atrair passageiros
Para o engenheiro José Falcão, especialista em engenharia de tráfego com experiência em mobilidade urbana, os terminais de Teresina facilitam a conexão entre os bairros teresinenses. Ao mesmo tempo, o profissional relembrou que a operação dessas estruturas foi abalada pela pandemia, em sintonia com a justificativa dada pelo diretor da Strans.
Falcão também defendeu a necessidade de atrair o passageiro para o sistema de transporte público, mais sustentável e econômico, com foco na qualidade do serviço prestado. Ele acredita que cabe às autoridades a oferta de mais veículos e viagens, otimização das rotas e melhoria da frota, como a climatização e renovação dos ônibus.
Uma palavra para o futuro em toda área é ‘sustentabilidade’. Deve-se buscar soluções para adequar as cidades ao transporte público. O transporte coletivo deve ter prioridade sobre o individual (José Falcão, engenheiro especialista em engenharia de tráfego)
Sem resposta dos empresários
O Band.com.br procurou o vice-presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Urbanos de Passageiros de Teresina (Setut), Marcelino Lopes, para se pronunciar. O empresário informou que a entidade não repassa informações para veículos de imprensa que não são da capital piauiense.
A equipe do Band.com.br também procurou o Setut, via assessoria de imprensa, mas também não obteve resposta aos questionamentos.