Ariano Suassuna estava em casa no Recife quando, no comecinho dos anos 1950, recebeu a visita de um amigo dramaturgo. "Ouvi dizer que você está escrevendo uma peça?", perguntou o visitante, corroendo-se de curiosidade. "Estou sim", respondeu o anfitrião, refestelado na cadeira de balanço. "A ação se passa onde?", indagou um. "No sertão da Paraíba", respondeu o outro.
"Tem seca?"
"Tem!"
"E cangaceiro?"
"Também!”
"Rapaz, ninguém aguenta mais isso não!”, decretou o amigo.
"Azar o meu!", o dono da casa deu de ombros.
O interrogatório parecia ter chegado ao fim. Só que não: "E como é o nome dos personagens principais?", tornou a perguntar a visita. "João Grilo e Chicó", voltou a responder o anfitrião, já impaciente. "E como vão traduzir isso lá no exterior?", quis saber o impertinente. "Sei lá, rapaz!", Ariano perdeu as estribeiras. "Sou escritor brasileiro. Escrevo para o meu povo!" E deu por encerrada a prosa torta.
Quase 70 anos depois da publicação de O auto da compadecida (1955), o "texto mais popular do moderno teatro brasileiro" – nas palavras do crítico Sábato Magaldi – volta aos cinemas nesta quarta-feira (25/12), em 829 salas espalhadas pelo Brasil – já no dia seguinte, 26, esse número sobe para mais de mil.
A título de comparação, O auto da compadecida (2000), quando estreou, foi exibido, de acordo com a distribuidora Columbia Tristar Pictures do Brasil, em 87 salas.
A versão cinematográfica da microssérie de TV, filmada em 35 milímetros e exibida originalmente um ano antes, entre os dias 5 e 8 de janeiro de 1999, atraiu um público de 2,1 milhões de espectadores – a maior bilheteria do cinema nacional no ano 2000.
"O principal concorrente de O auto da compadecida 2 é O auto da compadecida 1", brinca a diretora Flávia Lacerda. "Mas, isso está longe de ser um problema. É uma honra ser comparado ao original e surpreender o público."
Obra original foi inspirada em cordéis
Ariano Suassuna nunca escondeu que O auto da compadecida (1955) foi escrito a partir de três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, fragmento de O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros; A história do cavalo que defecava dinheiro, obra anônima registrada por Leonardo Mota; e O castigo da soberba, do próprio Suassuna.
Na hora de transformar a peça de teatro em microssérie em quatro episódios, os roteiristas Guel Arraes, João Falcão e Adriana Falcão fizeram algo parecido: foram buscar inspiração em outras obras do autor, como Torturas de um coração (1951) e O santo e a porca (1964). Da primeira, saíram Vicentão e Cabo 70, interpretados por Bruno Garcia e Aramis Trindade. Da segunda, Rosinha e o Major Antônio Noronha de Brita Morais, papéis de Virginia Cavendish e Paulo Goulart.
Vinte e cinco anos depois, Guel e Falcão repetiram a estratégia: pegaram Clarabela, personagem de Fabiula Nascimento, de A farsa da boa preguiça (1960). "O tema do filme é a amizade entre João Grilo e Chicó", define Guel. "E a moral da história, a fé como elemento essencial na luta pela sobrevivência."
Adaptação para o cinema
Guel conheceu Ariano, ainda menino, no Recife. Seu pai, o futuro governador de Pernambuco, Miguel Arraes, era "vizinho de porta". Um dia, tomou coragem para pedir: "Gostaria de adaptar O auto da compadecida". Ouviu como resposta: "Vou guardar para você!".
Dez anos depois, o sonho virou realidade. "No primeiro dia, Ariano assistiu ao episódio no quarto. No segundo dia, foi para sala. No terceiro, chamou os amigos…", recorda o diretor, aos risos, no programa Conversa com Bial em 2017.
Antes de chegar à TV, O auto da compadecida passou pelo teatro e pelo cinema. Nos palcos, foi encenada pelo menos seis vezes: quatro no Brasil e duas no exterior. Nas telas, ganhou duas adaptações: A compadecida (1969), de George Jonas; e Os trapalhões no auto da compadecida (1987), de Roberto Farias. Na primeira versão, Armando Bógus e Antônio Fagundes interpretaram João Grilo e Chicó. Na segunda, Renato Aragão e Dedé Santana, o Didi e o Dedé do quarteto mais famoso do Brasil.
Ariano gostou tanto da versão de Guel que pensou em fazer uma continuação: As peripécias de João Grilo e Chicó, entrega o mais velho dos 15 netos do dramaturgo paraibano. "O namoro só não virou casamento porque meu avô se encantou", explica João Suassuna, referindo-se à morte do avô, no dia 23 de julho de 2014, vítima de uma parada cardíaca.
Ariano morreu, mas a ideia de fazer a sequência de O auto da compadecida, não. Apenas cinco anos depois de seu encantamento – "os gigantes não morrem, eles se encantam", justifica o neto –, Falcão ligou para Guel. "O país estava vivendo um período muito triste", relata o roteirista. "Era hora de reviver João Grilo e Chicó".
Na dúvida, Guel agendou uma reunião. Foram convidados: a diretora Flávia Lacerda, os roteiristas João e Adriana Falcão, o produtor Edson Pimentel e os atores Selton Mello e Matheus Nachtergaele. "E se fizéssemos O auto 20 anos depois?", propôs Guel. Todos concordaram. "Nos motivava a ideia de que O auto da compadecida 2 pudesse ajudar o brasileiro a voltar a ter orgulho de si mesmo", afirma Flávia Lacerda. Até colocar o ponto final no roteiro, Guel Arraes e João Falcão levaram, com a colaboração de Adriana Falcão e Jorge Furtado, cerca de três anos.
Sequência de sucesso de bilheteria foi filmada no Rio
Em 1998, O auto da compadecida foi filmado em uma locação no município de Cabaceiras, a 180 quilômetros de João Pessoa. Em 2023, foi rodado em um estúdio no Rio, entre os meses de agosto e outubro. Telas em LED ajudaram a recriar a Taperoá dos anos 1950, vilarejo do sertão paraibano onde se passa a história.
"Por ter sido rodado em estúdio, eu diria que O auto da compadecida 2 é mais teatral e, portanto, mais fiel à obra de Ariano que o primeiro filme", observa Matheus Nachtergaele, que dá vida a Chicó na versão de Guel.
"Eu diria que o segundo filme é tão divertido quanto o primeiro", compara Selton, o João Grilo. "No entanto, é mais comovente."
Do elenco original, apenas Virginia Cavendish e Enrique Diaz, além de Selton e Matheus, voltaram a interpretar seus personagens: Rosinha e Joaquim Brejeiro. No papel que dá título ao filme, Taís Araújo substitui Fernanda Montenegro. Por incompatibilidade de agenda, a atriz precisou declinar do convite. Os atores Humberto Martins, Luís Miranda e Eduardo Sterblitch, que dão vida a Coronel Ernani, Antônio do Amor e Arlindo, completam o elenco principal.
Antes de ganhar as telas de cinema pelo Brasil, O auto da compadecida 2 arrancou risadas e aplausos dos espectadores em sua primeira exibição aberta ao público, no dia 7 de dezembro, durante a CCXP 24, o maior festival de cultura pop do mundo. Não bastasse, o longa-metragem teve cinco sessões de pré-estreia: em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Fortaleza e Salvador – todas com lotação esgotada.
"Toda vez que entro num táxi, ouço o motorista perguntar: 'Cadê seu amigo?'", diverte-se Selton Mello. "Não dá para traduzir em palavras a emoção que senti ao voltar a fazer o personagem mais marcante da minha carreira."
Matheus Nachtergaele assina embaixo. "Toda vez que ganho um sorriso nas ruas, não é para mim que as pessoas sorriem, é para o Chicó", emociona-se. "Tenho a esperança de que O auto da compadecida lembre a todos nós o quanto é bom ser brasileiro."
Autor: André Bernardo