Nos EUA, nem sempre o mais votado leva a Presidência

Sistema de votação indireto e papel do Colégio Eleitoral abrem possibilidade para que "derrotado" no voto popular ainda consiga chegar à Casa Branca. Veja as cinco vezes em que isso já aconteceu.

Por Deutsche Welle

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Os Estados Unidos são palco nesta terça-feira (05/11) da sua 60ª eleição presidencial, desta vez disputada entre o ex-presidente republicano Donald Trump e a atual vice-presidente democrata Kamala Harris.

Mais de 200 milhões de eleitores estão aptos a votar. Porém, ao contrário do Brasil, no processo eleitoral americano não basta – ou nem é mesmo necessário – um candidato conquistar a maioria dos eleitores para chegar à Casa Branca.

Em cinco das 59 eleições anteriores da história do país o candidato "derrotado" na eleição geral acabou chegando à Casa Branca sem conquistar a maioria do eleitorado.

Isso ocorre porque no peculiar sistema eleitoral americano a eleição é indireta. Ou seja, o que conta não é necessariamente o voto popular – a soma dos votos entre o eleitorado geral –, mas sim a quantidade de delegados acumulados no chamado Colégio Eleitoral.

Por esse sistema, cada um dos 50 estados dos EUA, mais o distrito de Columbia – onde fica a capital, Washington – conta com um certo número de delegados de um total de 538. Os estados mais populosos têm mais, os menores, um número mínimo.

Em eleições presidenciais, na prática, os eleitores de cada estado votam para definir quem serão esses delegados – se republicanos ou democratas. E cabe a esses delegados representar o estado no Colégio Eleitoral para a escolha do próximo presidente.

Para ser eleito presidente, um candidato tem que garantir, no mínimo, 270 delegados. O sistema é propenso a distorções. A Califórnia – população 39 milhões –, por exemplo, conta com 54 delegados, enquanto o pequeno Wyoming – 576 mil – tem 3. Porém, proporcionalmente, Wyoming tem um delegado para cada 192 mil habitantes, enquanto a Califórnia tem um para cada 722 mil.

É essa discrepância que abre a possibilidade de um candidato levar menos votos na contagem nacional mas ainda assim ter chances de ser bem-sucedido no Colégio Eleitoral ou ainda – em casos mais raros – levar a disputa para uma decisão no Legislativo.

Veja as cinco vezes em que isso já aconteceu:

1824: Andrew Jackson x John Quincy Adams x William H. Crawford x Henry Clay

No atual sistema político dos EUA, dominado pelos partidos Republicano e Democrata, e que conta com apenas dois presidenciáveis competitivos a cada ciclo eleitoral, a eleição de 1824 pode parecer um tanto exótica: havia quatro candidatos com chances de ganhar. E mais peculiar: todos eram da mesma legenda, o hoje extinto Partido Democrata-Republicano.

Sem um partido rival na disputa, os democratas-republicanos se viram envolvidos em uma série de rivalidades internas, com um quarteto de políticos se lançando diretamente à presidência sem passar por um processo de primárias. Eram eles: o secretário de Estado John Quincy Adams – filho do ex-presidente John Adams –, o ex-presidente da Câmara Henry Clay, o secretário do Tesouro William Crawford e o general Andrew Jackson.

Ao final da contagem, Jackson havia recebido a maior fatia do voto popular (40,5%), à frente de Adams (32,7%), Clay (13%) e Crawford (11%). Jackson ainda havia ficado na liderança do Colégio Eleitoral, com 99 delegados, contra 84 de Adams, 41 de Crawford e 37 de Clay.

No entanto, Jackson não levou automaticamente a Presidência, já que os 99 delegados haviam ficado aquém dos 131 necessários à época para assegurar o cargo. Sem um vencedor claro, a decisão final sobre quem ocuparia a Presidência coube à Câmara dos Representantes, que organizou uma "eleição contingente" para selecionar um vencedor entre os três mais votados (Clay, o quarto colocado em delegados, foi eliminado de imediato).

A votação na Câmara ocorreu com as bancadas estaduais fazendo o papel de eleitores – à época, os EUA contavam com 24 estados, então eram necessários 13 votos para vencer. Jackson, líder no voto popular e no Colégio Eleitoral, esperava vencer facilmente. Mas, graças a uma série de manobras de bastidores, seu rival Adams conseguiu reverter a desvantagem inicial e conquistou os 13 votos necessários – para o choque de Jackson.

Adams conseguiu até mesmo levar o voto de bancadas de estados que haviam votado em Jackson na eleição geral, mas o apoio decisivo partiu de Clay (o quarto colocado), que garantiu os votos de aliados na Câmara. Depois de assegurar a Presidência, Adams nomeou Clay como seu secretário de Estado, o que deixou Jackson ultrajado. O general acusaria seus rivais de roubarem a eleição por meio de um acerto corrupto.

Jackson teria sua vingança: em 1828, ele se candidataria novamente e, de maneira decisiva, acabaria derrotando Adams, que buscava a reeleição, tanto no voto popular quanto no Colégio Eleitoral.

1876: Samuel Tilden x Rutherford B. Hayes

Eleições recentes nos EUA foram marcadas pela tensão. Mas o pleito de 1876 é um forte candidato ao posto de eleição mais conflituosa da história do país: marcada por corrupção, fraude, ataques pessoais, intimidação, linchamentos e supressão de voto. Tudo isso num cenário ainda extremamente tenso no Sul dos EUA, que ainda se recuperava da Guerra Civil (1861-1865).

Dois candidatos estavam na disputa: o democrata Samuel J. Tilden e o republicano Rutherford B. Hayes. Na primeira contagem geral, Tilden levou a maioria do voto popular: 50,9%, contra 47,9% de Hayes. Tilden ainda assegurou 184 delegados no Colégio Eleitoral, contra 165 de Hayes.

Mas havia um problema, ou melhor, dois: eram necessários 185 delegados para conquistar a Presidência, faltando apenas um para Tilden. Seria de esperar que a Câmara dos Representantes entraria em cena para escolher um vencedor, como havia ocorrido em 1824. Mas havia um problema adicional: as votações nos estados da Flórida, da Louisiana, da Carolina do Sul e de Oregon – que somavam 20 delegados – permaneceram contestadas, com os dois partidos reenvidando vitória.

À época não existiam mecanismos para lidar com contestações. Foi organizada então uma comissão de 15 membros – cinco deputados, cinco senadores e cinco juízes da Suprema Corte – para resolver a disputa. Numa decisão que é motivo de debate até hoje – e que ainda virou tema de um célebre livro do escritor Gore Vidal –, a comissão decidiu entregar os 20 votos contestados para o republicano Hayes, o segundo colocado tanto no voto popular quanto na contagem de delegados. Dessa forma, Hayes somou 185 votos, contra 184 do democrata Tilden.

O episódio ficaria conhecido décadas depois como o "Acordo de 1877". Historiadores ainda debatem se os democratas, que à época tinham sua base eleitoral no Sul, cederam a Presidência aos republicanos para conseguir em troca a saída das tropas federais que ainda ocupavam parte da região mais de dez anos após a Guerra Civil. O fim da ocupação acabaria por deixar a população negra da região efetivamente à mercê dos supremacistas brancos que vinham tentando recuperar influência após a emancipação dos escravizados.

1888: Grover Cleveland x Benjamin Harrison

Tal como havia ocorrido pouco mais de uma década antes, a eleição de 1888 também foi marcada por acusações de corrupção. Na disputa estavam o presidente democrata Grover Cleveland, que buscava a reeleição, e o senador republicano Benjamin Harrison – neto do ex-presidente William H. Harrison.

Ambos os partidos foram acusados de comprar em massa eleitores para mudar o rumo da eleição. A prática recebeu destaque depois que um jornal do estado de Indiana publicou uma carta, aparentemente escrita por um funcionário do Comitê Nacional Republicano, que instruía filiados sobre como comprar eleitores.

Na contagem final dos votos, Cleveland, que tinha como base o Sul dos EUA, obteve 48,6% do voto popular, contra 47,8% de Harrison. Mas o presidente democrata acabaria por ficar para trás no Colégio Eleitoral, perdendo para o rival republicano por 168 a 233. À época, eram necessários 201 votos no Colégio Eleitoral para assegurar a vitória.

No entanto, Cleveland estava longe de ser um "injustiçado" pelo sistema. Historiadores apontaram que sua vantagem no voto popular (91 mil a mais que Harrison) só foi obtida graças à supressão de votos de centenas de milhares de eleitores negros nos estados do Sul controlados pelos democratas.

Apesar da derrota, a carreira política de Cleveland não chegaria ao fim. Em 1892, ele disputaria novamente a Presidência e acabaria vencendo de maneira incontestável, tornando-se o primeiro – e até o momento o único – político dos EUA a ocupar a Casa Branca por dois mandatos não consecutivos.

2000: Al Gore x George W. Bush

Após a tumultuada eleição de 1888, pelos próximos 112 anos os pleitos presidenciais dos EUA seguiram um curso majoritariamente previsível: o mais votado entre a população também levou a maioria dos votos no Colégio Eleitoral.

Mas aí veio a eleição de 2000, disputada entre o democrata e vice-presidente Al Gore e o republicano George W. Bush, governador do Texas e, assim, como o distante antecessor John Quincy Adams, filho de um ex-presidente.

Na noite da eleição, em 7 de novembro de 2000, a disputa começou a se revelar apertada, com Gore somando 255 votos no Colégio Eleitoral, contra 246 de Bush – com nenhum dos dois alcançando o mínimo de 270. Ficou rapidamente claro que a disputa final seria decidida no estado da Flórida, que à época contava com 25 votos no colegiado.

No voto popular em todo o país, Gore tinha uma vantagem de 540 mil votos, ou 48,4% do total, contra 47,9% de Bush.

Redes de TV inicialmente projetaram que Gore havia ficado em primeiro na Flórida e levado os 25 votos do estado – e, portanto, a presidência. No entanto, duas horas depois, as redes voltaram atrás e apontaram que a disputa ainda estava em aberto. Começaria um vaivém. Na madrugada, foi a vez de as redes declararem Bush como vencedor. Gore chegou a parabenizar o adversário.

Porém mais tarde, com a contagem acirrada, o estado pareceu novamente ficar "em aberto" e Gore voltou atrás na concessão da derrota. Uma recontagem foi iniciada.

E logo a confusão inicial se tornou uma longa novela. Em 10 de novembro, as autoridades eleitorais da Flórida, estado que à época era governador por Jeb Bush, irmão de George W., apontaram que o republicano havia ficado à frente por meros 327 votos – num universo de 6 milhões de eleitores.

Mas a declaração oficial do resultado acabaria se arrastando por 37 dias, sendo marcada por mais pedidos de recontagens, intervenção do Judiciário, denúncias de irregularidades no sistema de registro de eleitores e votação de vários condados da Flórida.

No final, a Suprema Corte dos EUA interveio e ordenou que a recontagem na Flórida fosse interrompida, efetivamente concedendo os 25 votos da Flórida e à Presidência para Bush. Na contagem final, com a adição de outros estados retardatários, Gore somou 266 votos no Colégio Eleitoral. Já Bush, graças à intervenção da Suprema Corte, conseguiu 271.

2016: Hillary Clinton x Donald Trump

Parecia uma eleição previsível, apesar da campanha tumultuada. A democrata Hillary Clinton, ex-secretária de Estado e esposa do ex-presidente Bill Clinton, era apontada na maioria das pesquisas como a favorita para vencer o pleito – tanto no voto popular quanto no Colégio Eleitoral.

Hillary tinha como adversário Donald Trump, um outsider que meses antes havia tomado de assalto a indicação do Partido Republicano, derrotando um a um rivais internos até assegurar a candidatura.

No dia da eleição, algumas pesquisas apontavam que Hillary tinha até 90% de chance de vencer a eleição. No entanto, Trump surpreendeu, vencendo em uma série de estados decisivos que pareciam garantidos para Hillary, especialmente no "cinturão da ferrugem", uma região desindustrializada dos EUA que tradicionalmente pendia para os democratas.

Ao todo, Trump venceu em seis estados que haviam votado nos democratas em 2012. Foi o empurrão decisivo que o levou a conquistar 304 votos no Colégio Eleitoral, contra 227 de Hillary. A democrata, no entanto, ficou bem à frente de Trump no voto popular. Na contagem final, Hillary somou 65,8 milhões de votos (48,2%), enquanto Trump obteve 62,9 milhões (46,1%).

A vitória surpreendente de Trump não gerou contestações judiciais como em 2000, mas acabaria levantando questionamentos sobre a precisão de pesquisas eleitorais, excesso de confiança entre os democratas e investigações sobre suspeitas de interferência por parte da Rússia na campanha.

Autor: Jean-Philip Struck

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