Nos últimos 10 anos as discussões sobre as responsabilidades das redes sociais sobre a disseminação de notícias falsas, as conhecidas ‘fake news’, estão cada vez mais intensas.
Atualmente, indivíduos que cometem crimes digitais podem ser presos por crimes previstos no Código Penal, mas as redes sociais, por outro lado, não são responsabilizadas.
A “PL das Fake News” não teve consenso entre os parlamentares e está parada no Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), criou em junho um grupo de trabalho que vai analisar o Projeto de Lei 2630/20, que pretende regulamentar as redes sociais e combater as chamadas fake news.
Lira havia dito que a discussão do projeto superou barreiras partidárias e ideológicas por ação das big techs, que não queriam debater o tema de maneira razoável. O texto chegou a ser apresentado de maneira fatiado, em vários projetos distintos, mas nunca houve consenso na Casa.
Caso Fabiane Maria de Jesus: Fake news no Facebook causou a morte da dona de casa
Em 2014, a discussão sobre a relação entre as big techs e notícias falsas ganhou maior relevância no Brasil, após a morte trágica de Fabiane Maria de Jesus, aos 33 anos, no Guarujá, cidade no litoral de São Paulo.
Ela foi confundida com uma suposta ‘bruxa sequestradora de crianças’ após um post de uma página no Facebook.
A dona de casa foi linchada por populares na comunidade de Morrinhos e teve o espancamento gravado e compartilhado nas redes sociais. Apesar de ter sido resgatada ainda com vida, Fabiane morreu dois dias depois do crime.
Fabiane, evangélica, mãe de duas filhas e casada, foi confundida com uma suposta bruxa, cujo retrato falado foi compartilhado na página ‘Guarujá Alerta’, que à época tinha 56 mil seguidores no Facebook. A tal suspeita era acusada de sequestrar crianças para fazer magia negra.
O linchamento, cometido por dezenas de pessoas na comunidade, terminou com a condenação de apenas cinco pessoas reconhecidas nos vídeos compartilhados nas redes sociais e um processo pedindo a indenização de R$ 36 milhões contra o Facebook.
Com o auxílio da ferramenta Pinpoint, do Google, a reportagem da Band analisou documentos processuais sobre o linchamento e morte da dona de casa confundida com uma falsa bruxa no Guarujá, litoral de São Paulo.
Denúncia falsa motivou pânico e linchamento
A publicação que terminou com a morte de Fabiane era viral entre os mais de 56 mil perfis que curtiam a página ‘Guarujá Alerta’, no Facebook, dias antes do linchamento fatal.
O perfil fez um post, junto de uma foto com um suposto retrato falado e uma foto de uma mulher loira, alertando pais da região que uma mulher estaria raptando crianças para realizar atos de magia negra.
O tal retrato falado era, na verdade, de um crime cometido em 2012 no Rio de Janeiro e a mulher loira não tinha nada relacionado com ambos os crimes.
Enquanto a publicação viralizava entre os moradores do Guarujá, Fabiane tinha uma vida normal: cuidava das duas filhas ao lado do marido, Jailson, frequentava cursos e a igreja evangélica na comunidade onde moravam.
No fatídico dia 3 de maio de 2014, Fabiane, que havia recém cortado e descolorido os cabelos, saiu de casa para buscar a Bíblia que havia deixado na igreja.
Após buscar o livro sagrado, a dona de casa foi até um mercado e comprou bananas. Nos depoimentos, não se tem certeza de como as agressões começaram, mas relatos e depoimentos afirmam que tudo começou quando Fabiane ofereceu uma banana para uma criança na rua.
Ao oferecer a fruta, populares teriam a apontado como a ‘bruxa do Guarujá’ e começado as agressões. Fabiane, mesmo alegando inocência e pedindo ajuda, foi agredida com socos, chutes, pauladas e outros tipos de agressão. Alguns que estavam testemunhando o espancamento, por sua vez, decidiram filmar o linchamento e publicar no Facebook.
Fabiane foi agredida, amarrada e arrastada até os fundos da comunidade Morrinhos, onde, por fim, foi jogada em uma região de mangue, desfalecida. Alguns dos agressores chegaram a tentar colocar fogo no colchão onde a dona de casa foi jogada, mas como ele estava molhado, não pegou fogo.
O linchamento só parou após a Polícia Militar chegar ao local e resgatar Fabiane, que foi internada no Hospital Santo Amaro, mas morreu dois dias depois.
Das centenas de envolvidos, cinco foram identificados e presos
Como o linchamento foi gravado e publicado nas redes sociais, a Polícia Civil utilizou as imagens nas diligências para tentar identificar e prender os envolvidos no espancamento de Fabiane.
À época, a Polícia Militar estimava que 200 pessoas haviam participado do linchamento, mas apenas cinco foram identificados, presos e condenados.
Um dos cinco presos pelo linchamento na época foi Jair Batista dos Santos, flagrado jogando Fabiane de uma ponte, em uma área de mangue.
Em depoimento, ele afirmou que viu a confusão quando Fabiane já estava bastante machucada a jogou para tentar ajudá-la, já que os agressores ameaçavam incendiar o corpo da dona de casa e ameaçado agredi-lo.
O segundo preso foi Valmir Dias Barbosa, que foi flagrado dando uma paulada na cabeça de Fabiane. Em depoimento, ele contou saber dos boatos de uma sequestradora de crianças e, segundo ele, teria perdido a cabeça e tinha apenas intenção de bater na vítima, não de matar.
No mesmo depoimento, ele afirmou que “se soubesse que a moça não era a sequestradora, jamais teria a agredido”.
A Polícia Civil também identificou o homem flagrado batendo com a roda de uma bicicleta em Fabiane. Lucas Rogério Fabrício Lopes contou em depoimento que estava saindo de casa quando a viu. Ele então a ergueu e bateu com o pneu por duas vezes no peito da vítima. Foi Lucas que teve a ideia de amarrar Fabiane e arrastá-la para tirá-la do meio da rua.
Lucas confirma também a teoria de que as agressões começaram após Fabiane entregar uma banana para uma criança e a mãe dela a ter confundido com a suposta bruxa. Mesmo com agressões tão brutais, ele afirmou que não tinha intenção de matar ninguém.
Abel Vieira Batalha Júnior, o quarto preso, teria ajudado Lucas a amarrar os braços de Fabiane e a arrastá-la. Ele teria negado participação no espancamento, alegando que apenas a viu caída no chão e que teria sido confundido com outra pessoa que apareceu no vídeo. Lucas, por sua vez, disse que Abel o ajudou nas agressões.
O quinto preso foi Carlos Alex Oliveira de Jesus, que foi identificado dando chutes na cabeça de Fabiane. Testemunhas também viram Carlos arrastando a vítima pela rua, enquanto Valmir desferia pauladas na cabeça dela. Ele admitiu em depoimento que agrediu a dona de casa.
Valmir Dias Barbosa foi condenado a 26 anos e quatro meses de reclusão e os outros quatro a 40 anos de prisão, em regime fechado. Após recursos da defesa, a Justiça fixou as penas em patamar máximo de 30 anos.
Mulher usada em publicação falsa também sofreu com perseguição
Na publicação do ‘Guarujá Alerta’ com a denúncia da suposta bruxa, além do retrato falado, havia também a foto de uma mulher loira. A Polícia Civil conseguiu encontrar a tal mulher, que também não era envolvida com bruxaria.
Dianne Pinheiro Gonçalves precisou se mudar de São Paulo para o Paraná devido às fake news envolvendo uma foto dela. Em depoimento, ela contou que recebeu ameaças de morte pelo celular e pelo Facebook, antes e depois da morte de Fabiane Maria de Jesus.
A também vítima de fake news esteve pela última vez no Guarujá em 2011 e descobriu por uma amiga que uma publicação no Facebook a relacionava ao sequestro de crianças, também pela página ‘Guarujá Alerta’.
Ela chegou a ir em uma delegacia para denunciar o uso indevido da imagem, mas não conseguiu efetuar a denúncia, já que o delegado faltou na época que ela foi atrás do caso.
Facebook não foi responsabilizado pelo post que terminou na morte de Fabiane Maria de Jesus
Além dos responsáveis por espancar a dona de casa, a defesa da família de Fabiane também visa responsabilizar o Facebook, rede social onde a fake news foi veiculada. Na visão da defesa, a plataforma permitiu a publicação da mentira, foi omisso quanto à fiscalização das mentiras disseminadas através da rede sociais e permitiu a transmissão em tempo real do linchamento da vítima.
Na Justiça, a família de Fabiane pede uma indenização por danos morais de R$ 36 milhões, alegando que o Facebook poderia, por meio dos moderadores, retirar a publicação falsa antes da tragédia. “Atualmente eles retiram do ar qualquer discurso de ódio, então eles poderiam na época ter feito o mesmo”, pontua Airton Sinto, representante da defesa da família de Fabiane.
O que trava uma possível indenização é o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que isenta as redes sociais de responsabilização de quaisquer conteúdos veiculados e mantidos nas plataformas.
O artigo indica que é preciso uma específica ordem judicial para exclusão do conteúdo de provedores de internet, websites e aplicativos de redes sociais por danos praticados por terceiros.
Airton afirma que a família já perdeu em primeira e segunda instância e, agora, aguarda um recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal.
“Todos os processos que envolvem responsabilização de big techs e plataformas por prejuízos, estão suspensos para julgar uma questão de repercussão geral, referente ao artigo 19 do Marco Civil da Internet. Porque o STF vai discutir se é constitucional ou não esse artigo”, afirma.
A defesa do Facebook, por sua vez, alega que inexiste obrigação de fiscalização ou monitoramento da plataforma, como também não há nexo entre a conduta e o dano para Fabiane Maria de Jesus ou a família.
Além disso, a defesa alega que “a criação e edição de conteúdo no serviço Facebook é realizada exclusivamente pelos usuários — e não pelo Operador do Facebook, que somente disponibiliza o espaço e as ferramentas para isso” e que tal informação está nos Termos de Serviço da plataforma.