"Aposta", "jogada de pôquer", "decisão arriscada", "golpe teatral","opção ousada": esses foram alguns adjetivos usados pela imprensa francesa em reação ao anúncio do presidente do país, Emmanuel Macron, neste domingo (09/06), que decidira dissolver a Assembleia Nacional e convocar novas eleições legislativas.
Macron anunciou sua decisão pouco mais de uma hora após os primeiros resultados das eleições para o Parlamento Europeu, que marcaram uma derrota humilhante para seu partido, o Renascimento, perante a legenda ultradireitista Reunião Nacional (RN), liderada por Marine Le Pen. Segundo as projeções, ela e seus correligionários obtiveram 31,5% dos votos, mais do que o dobro do 15,2% da coalizão pró-União Europeia de Macron.
"E a noite eleitoral teve uma reviravolta dramática. Ao anunciar a dissolução da Assembleia Nacional no domingo, na esteira dos primeiros resultados das eleições europeias, Emmanuel Macron subitamente mergulhou o cenário político e a nação no desconhecido", sintetizou o jornal Le Figaro após o anúncio.
Na vizinha Alemanha, liberais da mesma tendência de Macron e partidos governistas também registraram encolhimento entre o eleitorado, mas foi na França que o recado de eleitores insatisfeitos e o avanço da ultradireita foi mais sentido. Ao contrário de Macron, porém, o chanceler federal da Alemanha, Olaf Scholz, descartou por enquanto a possibilidade de convocar novas eleições.
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"Decidi devolver a vocês a escolha do nosso futuro parlamentar através do voto. Portanto, estou dissolvendo a Assembleia Nacional", disse Macron em pronunciamento: "A decisão é séria e difícil, mas é, acima de tudo, um ato de confiança – confiança em vocês, meus caros compatriotas."
Enfatizando que não pode "fingir que nada aconteceu", o chefe de Estado incentivou os cidadãos a "votarem maciçamente" na eleição, pois "a França precisa de uma maioria clara".
Segundo jornais franceses, Macron baseou sua estratégia de convocar novas eleições em discussões com um círculo restrito de ministros e aliados, o que contribuiu para o efeito surpresa, até mesmo entre os apoiadores.
Entre partidos rivais, boa parte da reação foi negativa. "Temos um louco à frente do Estado", reagiu o porta-voz do partido de esquerda A França Insubmissa (LFI), François Ruffin. "Emmanuel Macron falhou, e não vai se recuperar", disse o líder do partido de direita conservadora Republicanos, Eric Ciotti.
Já entre o energizado partido de Le Pen a reação pública foi de celebrar a convocação de novas eleições. No entanto, segundo a imprensa francesa, isso não passou de uma tática de disfarce, já que os membros da RN não estavam preparados para tal convocação num prazo tão exíguo.
A nova eleição deve se realizar em dois turnos, em 30 de junho e 7 de julho. A votação não afeta a permanência de Macron no cargo: ele segue presidente até 2027.
Situação análoga à de Chirac, em 1997
"A dissolução nunca foi feita por conveniência do presidente, mas para resolver uma crise política", disse em 1996 o então presidente francês Jacques Chirac. Tal frase poderia se aplicar ao caso do atual governo Macron.
No sistema semi-presidencialista da França, o presidente depende de um primeiro-ministro indicado pelo Parlamento para assegurar a governabilidade. Macron foi reeleito para a Presidência em abril de 2022, mas acabou perdendo sua maioria parlamentar no pleito legislativo de junho do mesmo ano.
Desde então, ele tem enfrentado dificuldades para aprovar leis e projetos na Assembleia Nacional, tendo que recorrer a mecanismos controversos no meio político francês, como decretos e ordens executivas, para superar a falta de uma maioria.
Com pouco menos de três anos de mandato presidencial pela frente, o prazo para que Macron tentasse romper esse impasse vinha ficando cada vez mais estreito. É um cenário oposto ao do alemão Scholz, por exemplo: apesar de também ter saído chamuscado nas eleições europeias, o social-democrata ainda conta com uma maioria estável no Bundestag.
Essa é a primeira vez desde 1997 que um presidente francês dissolve a Assembleia Nacional na França. O último episódio havia ocorrido sob Jacques Chirac. No caso de Chirac, a dissolução acabou se revelando um desastre para seu grupo político, pois a oposição de esquerda venceu o pleito.
Isolado, o conservador Chirac teve que conviver com um primeiro-ministro socialista, numa situação chamada "coabitação" na França, quando os chefes de Estado e de governo são de grupos rivais.
Cálculo inspirado em De Gaulle?
Apesar do mau precedente histórico de Chirac, Macron pareceu mirar no exemplo de outro presidente: o general Charles de Gaulle. Fundador da atual República francesa, ele fez uso da dissolução da Assembleia Nacional em duas ocasiões, em 1962 e 1968. Em ambas foi bem-sucedido.
Na última, o que parecia uma aposta particularmente arriscada – a eleição foi convocada num momento de profunda crise e de impopularidade para o governo na esteira dos protestos de maio de 1968 – acabou se revelando um triunfo: De Gaulle conseguiu assegurar uma super maioria parlamentar com uma campanha de mensagem simples, baseada num discurso de lei e ordem recheado de críticas contra a esquerda.
Além disso, o general se beneficiou da desorganização e desunião entre os partidos rivais, que não conseguiram resolver suas diferenças antes do início da campanha relâmpago de 1968.
Parte da imprensa francesa sugere que o cálculo de Macron leva em conta uma avaliação semelhante. As dificuldades do presidente na Assembleia Nacional não se devem apenas à bancada da ultradireita de Le Pen, que detém apenas 88 dos 577 deputados, mas também a uma aliança de esquerda liderada pelo populista Jean-Luc Mélenchon, que conta com 75 deputados. No momento, o grupo de esquerda está tomado por divisões internas, que se agravaram por diferenças de posicionamento em temas como a guerra entre Israel e o Hamas.
Mas é contra a ultradireita que a campanha de Macron deve se centrar, como ocorreu nas eleições presidenciais de 2017 e 2022, quando Macron se beneficiou do voto de eleitores que rejeitavam o extremismo de Le Pen.
Mujtaba Rahman, diretor para a Europa da consultoria Eurasia Group, avaliou que a estratégia de Macron foi oferecer aos eleitores uma "escolha difícil": a manutenção do status quo ou um primeiro-ministro de extrema-direita.
"É um cálculo astuto ou uma aposta louca? Provavelmente é um pouco de ambos. A esperança de Macron é que os argumentos que falharam na campanha eleitoral da UE – apoio à Ucrânia contra a Rússia; a sobrevivência da UE; as confusas e incoerentes políticas de Le Pen para a economia e a União Europeia, etc. – vão ressoar entres eleitores quando os seus interesses diretos estiverem em risco", afirmou Rahman na rede X.
Susto ou trunfo para RN de Le Pen?
Para a RN de Le Pen, as eleições legislativas francesas também costumam ser uma maratona árdua. Historicamente, o partido se sai melhor em termos percentuais nas eleições europeias, que são disputadas num sistema de lista eleitoral fechada e votação nacional. É nesse sistema europeu que os eleitores muitas vezes depositam votos de protesto.
Já o complexo sistema eleitoral francês prevê 577 disputas locais em dois turnos, com todas as suas particularidades regionais, para eleger os membros da Assembleia Nacional.
Na eleição legislativa de 2022, a RN conseguiu o melhor resultado da sua história e se tornou o principal partido de oposição. No entanto, alguns veículos da imprensa francesa apontaram no domingo que o partido ainda não está preparado para montar máquinas eleitorais em todos os 577 distritos, e que por enquanto só conta 300 candidatos prontos para a disputa.
Apesar disso, alguns observadores consideram real o temor de que o partido de Le Pen cresça ainda mais. Num desses cenários, a Assembleia Nacional ficaria ainda mais travada, com o aumento de deputados hostis ao governo. Já no pior cenário para Macron, a RN poderia se tornar a principal força da Assembleia Nacional – e consequentemente indicar o primeiro-ministro. Nesse caso, Macron seria um novo Chirac, em vez de um De Gaulle de 1968, e ainda por cima com um governo de ultradireita.
Autor: Jean-Philip Struck