O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (18/12) um julgamento que definirá regras sobre um dos temas mais complexos da atualidade: como as redes sociais devem moderar o conteúdo compartilhado por seus usuários, tendo em vista as normas do Estado democrático de direito.
A Corte inicialmente não queria assumir essa tarefa para si, mas foi impelida após o Congresso engavetar em junho o projeto de lei que criava a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O texto tramita sob o número 2630/20 e ficou conhecido como "projeto de lei das fake news".
Estão em pauta dois recursos judiciais que questionam o artigo 19 do Marco Civil da Internet. O dispositivo estabelece que plataformas, provedores e sites só podem ser responsabilizados civilmente por conteúdo criado por usuário caso se neguem a obedecer a uma ordem judicial de remoção.
O julgamento começou em 28 de novembro e já votaram os ministros Dias Toffoli, relator de um dos casos, e Luiz Fux, relator do outro processo. Falta ainda a manifestação de nove ministros, mas especialistas em regulação da internet, além das próprias empresas, já estão preocupados.
Ambos os ministros votaram para declarar o artigo 19 inconstitucional. Toffoli propôs um sistema segundo o qual as empresas de internet poderiam ser responsabilizadas, mesmo que não tivessem sido notificadas antes, por diversos tipos de conteúdo citados em seu voto – entre eles, "oposição a medidas sanitárias" e "divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que levem à incitação à violência física".
Já Fux propôs que as empresas de internet sejam obrigadas a remover conteúdos ofensivos à honra ou à imagem e à privacidade assim que forem notificadas pelo interessado, sem necessidade de ordem judicial.
A DW perguntou a quatro especialistas brasileiros como eles avaliam o início do julgamento e seus possíveis efeitos para o funcionamento da internet no Brasil.
"Plataformas terão poder ainda maior de definir o que circula ou não"
Bia Barbosa representante da Coalizão Direitos na Rede no Comitê Gestor da Internet no Brasil, considera compreensível que o Judiciário, diante da omissão do Legislativo, indique que é preciso mudar algo no ambiente das redes sociais no país, mas avalia que a emenda pode sair pior que o soneto.
Ela diz que declarar o artigo 19 inconstitucional iria retirar uma proteção dos usuários contra a remoção indiscriminada de conteúdos, gerar mais "censura privada" e "dar às empresas um poder ainda maior de definir o que circula ou não na internet".
"Isso vai alcançar conteúdos que são lícitos mas que podem incomodar pessoas. E essas pessoas, ao ficarem incomodadas, vão notificar as plataformas e elas terão que derrubar os conteúdos, sob o risco de serem corresponsabilizadas civilmente, inclusive conteúdos jornalísticos", diz.
"Celebridades, autoridades, pessoas do Legislativo e do próprio Judiciário, ao se sentirem incomodadas ou ofendidas, vão notificar as plataformas alegando injúria, calúnia ou difamação. E elas vão preventivamente removê-los."
Barbosa ressalta que a liberdade de expressão não é um direito absoluto em sociedades democráticas e defende mudanças – não para responsabilizar as plataformas por conteúdos individuais, mas de uma forma sistêmica, pelos riscos que seu modelo de negócios e arquitetura de funcionamento acarretam para direitos e garantias.
A responsabilização por riscos sistêmicos das plataformas foi a solução adotada na norma da União Europeia (UE) sobre o tema, o DSA (Digital Service Act), e estava prevista no projeto de lei 2630/20 que tramitou no Congresso brasileiro.
"Nesse caso, a plataforma não seria civilmente responsável se um conteúdo incentivando golpe de Estado ou promovendo discurso de ódio circular. Mas se centenas ou milhares de conteúdos incitando um golpe de Estado continuarem circulando, ela é responsável – pois não agiu para mitigar os riscos sistêmicos e impedir esse tipo de discurso de maneira massificada em seu ambiente", explica.
Ela pontua mais um risco. O artigo 19 do Marco Civil da Internet se refere a provedores de aplicação como um todo na internet, incluindo serviços de hospedagem de site ou o NIC.br, que administra o registro de domínios .br. Se o artigo 19 for derrubado em sua totalidade, esses serviços poderão passar a ser responsabilizados pelo conteúdo dos sites que hospedam ou que registraram.
"O melhor caminho agora seria o STF ampliar parcialmente a responsabilidade das redes sociais, mas sem alterar o regime dos intermediários neutros. Em paralelo, precisamos de leis específicas que dialoguem e complementem o Marco Civil da Internet, e não jogar fora o bebê junto com a água da banheira", afirma.
"Estaca zero no equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção de direitos"
Não foi por falta de aviso. O Supremo sinalizou em diversos momentos que não gostaria de ser o responsável por decidir sobre o regime de responsabilidade do Marco Civil da Internet antes da aprovação de uma lei sobre o tema, diz Bruna dos Santos, gerente de campanhas global da Digital Action.
Ela pondera que cabe à Corte decidir sobre questões de constitucionalidade de leis. Mas está preocupada com as manifestações de Toffoli e Fux, que ancoraram seus votos na responsabilização civil das plataformas e deixaram de lado o debate sobre como as empresas devem atuar de forma sistêmica na moderação de conteúdos.
Uma eventual declaração de inconstitucionalidade do artigo 19, diz, levará o país à "estaca zero" no equilíbrio entre liberdade de expressão, proteção de outros direitos e cumprimento de ordens judiciais relativas a conteúdos nas plataformas.
"Isso deve fomentar um relacionamento muito contencioso entre usuários, Justiça e as plataformas, já que as últimas se sentiriam quase que obrigadas a retirar mais conteúdos de maneira preventiva", diz Santos. "Os usuários seriam afetados por isso e a Justiça acabaria se vendo forçada a também analisar casos de moderação e pedidos de restituição de posts removidos."
Ela prevê que o aumento de remoções de conteúdos pode em última instância desencorajar o exercício legítimo da liberdade de expressão. E critica o engavetamento no Congresso do projeto de lei 2630/20: "os deputados falharam ao ceder ao lobby das big techs, que veio justamente para impedir a moderação de conteúdos específicos."
"Para todo problema complexo, existe uma solução simples e errada"
Nos últimos dias, o Brasil registrou dois fatos de alta temperatura política: a prisão preventiva do general da reserva Walter Braga Netto, ex-ministro e ex-candidato a vice de Jair Bolsonaro, e a internação às pressas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para realizar um procedimento cirúrgico delicado na cabeça. Ambos motivaram inúmeras mensagens em redes sociais de condenação prévia ou de desejo de morte, a depender da preferência política do usuário.
"Quantas não foram as manifestações em que seria possível que a plataforma entendesse que houve excesso e que seria um conteúdo que deveria ser eliminado, sob pena de ela ser responsabilizada?", imagina Paulo Rená, pesquisador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS).
Ele diz que os ministros do Supremo que já votaram demonstram preocupações legítimas e reais, mas não consideram os problemas que a obrigação de remover conteúdos individuais pode causar – e diz que seria uma "tragédia" se essa posição prevalecer na corte.
"É uma posição muito excessiva, mesmo diante dos grandes e evidentes erros e da evidente omissão que as plataformas já demonstraram", diz. E cita o ditado popular: "Mas para todo problema complexo existe uma solução simples e errada."
Ele também implica o Congresso na atual situação, que "fez muito mal" em não concluir o debate e votação do projeto de lei para regular as redes sociais. "Tínhamos uma previsão bastante complexa e detalhada. Goste-se ou não, era um sistema redondo, com algumas arestas a serem aparadas, mas que seria melhor do que a situação que temos hoje."
"Avaliar os conteúdos na escala e velocidade que se espera não é tão simples"
Quando o Marco Civil da Internet foi sancionado, em 2014, um dos objetivos do artigo 19 era proteger a liberdade de expressão de usuários. Pelo andar do julgamento, o que pode ocorrer é o Brasil voltar a um cenário pré-Marco Civil, com mais remoção de conteúdos legítimos, avalia João Victor Archegas, coordenador de Direito & Tecnologia e GovTech do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS).
"As plataformas muitas vezes não sabem que um determinado conteúdo foi compartilhado. Diferentemente do que os ministros [Fux e Toffoli] parecem acreditar, elas não dispõem da tecnologia para avaliar isso na escala e velocidade que se espera", afirma. "Claro que elas têm algoritmos e inteligência artificial cada vez mais sofisticados – mas, ainda assim, determinar se um conteúdo coloca em risco o Estado democrático de direito não é tão simples."
Para dar conta dos riscos que acompanham a eventual declaração da inconstitucionalidade do artigo 19, ele diz que seria necessário estabelecer uma nova regulação sobre o tema. "É uma discussão legítima, mas isso teria que acontecer dentro do Congresso Nacional, para estudar, avaliar e debater quais serão os efeitos de mudar a norma".
Os votos de Fux e Toffoli, diz, parecem mostrar "ignorância" sobre as consequências de remover a proteção aos usuários do artigo 19 do Marco Civl da Internet. "As plataformas digitais se tornaram alvo de muitas críticas, inclusive legítimas, mas acabam levando a esse lugar comum de que qualquer solução para os problemas na internet é de certa forma atacá-las – mas nem sempre esse é o melhor caminho."
Autor: Bruno Lupion