Na guerra civil na Etiópia, os crimes mais brutais acontecem longe dos campos de batalha. São poucos os sobreviventes que têm coragem de falar sobre o que passaram.
Três mulheres são regra e exceção na guerra civil na Etiópia. Como tantas jovens, sofreram um dos crimes mais bárbaros e, ainda assim, um dos mais comuns, desse conflito: os estupros coletivos. Cada uma delas tem uma história sombria para relatar de como foram abusadas por um incontável número de soldados.
Apesar de vítimas tão recorrentes, são poucas as mulheres como Mariam que tem coragem de contar o que aconteceu.
“Eram vários soldados. Eles começaram a me estuprar e eu não lembro mais o que aconteceu. Por três dias, eu não conseguia falar ou andar até que me levaram para o hospital”, relembra.
É para uma pequena casa no complexo hospitalar da Universidade de Mekelle, a capital da província do Tigré, que são trazidas mulheres como Mariam.
“Tudo isso parece um pesadelo, mas um pesadelo muito longo”, lamenta Mussie Atsbaha, diretor do hospital. Ele trabalha no local há uma década. Mas não aguenta mais lidar com as vítimas dos estupros. Chegou ao limite.
“Quando voce vê mulheres que foram estupradas por tantos homens, antes de voce falar com elas, elas precisam ser carregadas para o quarto, elas não podem nem andar”. Ele se emociona ao lembrar das vítimas.
No centro de assistência às vitimas, as medicas e assistentes sociais tentam oferecer conforto e mitigar os danos. Fazem testes de gravidez. E o maior temor de todas elas é descobrir descobrir se as vítimas foram infectadas pelo HIV, o vírus da AIDS, um problema ainda crônico na África Subsaariana.
"Os sobreviventes contam que nas suas vilas há muitas mulheres que foram estupradas, mas elas não conseguem vir por várias razões: razões culturais, econômicas. Quase sempre elas contam que foram estupradas por militares, e tem medo de serem mortas ou presas se contarem o que aconteceu", explica a assistente social Mihira Redae.
Com quase todas as mulheres ouvidas no Tigré, as acusações sempre se voltam aos soldados da Eritréia, um dos países mais atrasados e fechados do continente. Não à toa, o país é conhecido como a “Coreia do Norte da África”.
Desde o início dessa guerra, há relatos da presença e de atrocidades cometidas por esse soldados, apesar das negativas iniciais do governo etíope de que havia tropas da Eritréia no Tigré.
Durante as duas semanas de Yan Boechat na região, ele encontrou esses soldados repetidas vezes. Com câmeras discretas, ele registrou a movimentação das tropas.
“Bem aqui a nossa frente tem um grupo de soldados da Eritreia. Oficialmente eles não estão aqui. Mas os relatos que a gente ouve, das agressividades, sempre vem deles. Estão bem aqui na nossa frente, mas eu não posso filmar que há o riscoo de que eles venham pegar nosso equipamento, enfim”, relata o repórter do Jornal da Band.
A guerra criou um fluxo migratório intenso entre a Etiópia e o Sudão, como a Band mostrou na série “Rota de Fuga”. O maior contigente de deslocados, no entanto, ocorre dentro da própria região do Tigré. De acordo com estimativas da ONU, enquanto cerca de 70 mil pessoas fugiram para o país vizinho, aqui o numero de desalojados supera a casa dos 2 milhões.
A maior parte deles, pequenos agricultores, como Belay Abera.
“Eu já estava com a terra preparada para plantar os grãos, minha terra é boa, eu deveria começar a colher nos próximos meses, mas deixamos tudo para trás”, lamenta.
Belay agora vive apinhado na sala de aula de uma escola convertida em campo de deslocados internos. Nos campos, já não há mais ninguém e a terra deixou de ser cultivada, o que fez a ONU emitir um alerta de que a Etiópia pode estar entrando em uma crise alimentar semelhante a que ocorreu na década de 1980.
“Desde ontem, não comemos nada, estamos com fome. Meu último alimento foi o café da manhã de ontem”, relata um jovem refugiado.
Em um campo em Mekelle, mulheres e crianças me contam que passam até dois dias sem comer nada. Na cidade de Shire, milhares de famílias estão sendo expulsas dos alojamentos da Universidade. O governo central da Etiópia decidiu que eles precisam sair daqui para que as aulas sejam retomadas, em uma campanha para tentar mostrar ao mundo que tudo segue normal e que a guerra já acabou.
"Eles vinham dizendo que teríamos que sair, mas agora os soldados chegaram e disseram que vão atirar em quem não for embora", diz outra refugiada.
Diante de ameaça tão contundente, todos decidiram partir, carregando o pouco que têm.
Na reportagem especial desta quarta, vamos conhecer Aksum, a cidade sagrada onde os Etíopes acreditam estar os dez mandamentos dados por Deus a Moisés, palco de um dos maiores massacres dessa guerra.