Obras no país da Copa deixam 2 mil nepaleses mortos e famílias sem receber nada

Mais de 6 mil operários morreram durante a construção dos estádios. Jornal da Band foi ao Nepal mostrar por que dois mil camponeses foram ao Catar em busca de trabalho

Por Yan Boechat

As obras da Copa no Catar escondem uma estatística assustadora: pelo menos seis mil trabalhadores morreram na última década. Dois mil deles eram nepaleses. O repórter Yan Boechat foi ao Nepal e viu de perto o drama das famílias das vítimas, que quase não recebem satisfação pelas mortes. Muito menos, indenização. 

Hiral Al Pasman chora a morte do filho. “Eles não nos disseram o que houve com meu filho até agora. A empresa não nos disse nada. Os amigos dele que nos ligaram um dia e nos disseram que ele estava morto."

O pai explica que o filho saiu do Nepal para trabalhar nas obras da Copa do Mundo do Catar. 

"Ele esteve no Catar por quase quatro anos, só veio nos visitar por duas vezes nesses quatro anos. Da última vez em que esteve aqui ele estava bem e saudável, não havia nada de errado com ele, estava bem."

Bir Bahadur Pasman morreu aos 25 anos em um canteiro de obras em Doha, a capital do Catar e sede da Copa do Mundo. Oficialmente, a causa da morte foi asfixia por enforcamento. Mas a família não acredita que o jovem cheio de sonhos tenha tirado a própria vida. 

O pai está desolado. "Eu não sei quem culpar. Eu suspeito que seus colegas ou a empresa fizeram algo com ele."

As mulheres não choram apenas pelo passado. Choram, principalmente, pelo futuro incerto que a morte do rapaz jogou sobre essa família pobre das terras baixas do Nepal. 

"Eu me pergunto como eu vou casar minha filha”, diz Hilal Al Pasman. “Ainda tenho qu cuidar da minha nora, minha neta, minha mulher. Eu não sei como eu vou conseguir sustentar a todos."

O drama dos Pasman há muito deixou de ser um simples caso isolado no Nepal. Histórias de famílias que perderam entes queridos nos canteiros de obras no Qatar são uma constante há pelo menos 20 anos. 

E, desde que a monarquia do Golfo Pérsico ganhou o direito de sediar a Copa do Mundo de 2022, o número de operários mortos nos canteiros de obras atingiu índices alarmantes. Antes de 2010 as mortes eram contadas, quando muito, as dezenas a cada ano. Agora, são centenas registradas ano a ano. A estimativa é do Governo do Nepal.

Só entre 2011, ano em que as obras para a Copa começaram, e 2022, mais de 2 mil operários nepaleses morreram no Catar. Um levantamento do Jornal inglês The Guardian, mostra que se incluídos bengalis, cingaleses, paquistaneses e indianos, esse número supera a casa dos seis mil operários mortos no Catar na última década. 

Deepak Dhakal, vice-secretário do Comitê de Trabalho Externo do governo do Nepal, explica: "Infelizmente esses não são os números reais. Nós não temos os números reais de mortos porque aqui nós só temos os registros das famílias dos mortos no Catar que vem buscar auxílio. Muitos não vem".

Dhakal calcula que o número verdadeiro de operários mortos nos canteiros de obra passa de quatro mil. 

O Nepal faz fronteira com a China e a Índia. É lá que fica o Monte Everest, a montanha mais alta do mundo. O hinduísmo é a religião da maior parte do povo nepalês.

"Aqui nessa região do Nepal, a única atividade econômica disponível são os campos de arroz. Todo mundo trabalha aqui e não há trabalho para todo mundo. Mesmo para a maior parte das pessoas, a produção de arroz não é feita em terra próprias, eles trabalham na terra de terceiros e não recebem sequer salário para isso. Recebem como pagamento, arroz."

Aslani Yadav, uma jovem e envelhecida mulher de 41 anos, tem uma vida dura. No Nepal, cabem às mulheres praticamente todas as tarefas domésticas, desde ordenhar a búfala que garante parte do sustento da família até cortar a grama que vai alimentar o animal. Por anos, o marido dela trabalhou nos arrozais dessa parte do Nepal que faz fronteira com a Índia. 

"Por um dia de trabalho, ele recebia de quatro a cinco quilos de arroz"

O arroz, moeda corrente entre os camponeses pobres, nunca valeu muito no Nepal. E o marido de Aslani, Muneshwor Yadav, decidiu que iria seguir os passos dos amigos do vilarejo. Procurou uma das tantas empresas de recrutamento que atuam no Nepal e virou operário no Catar.

Aslani diz: "Nossos filhos estavam pequenos, na idade de ir para a escola. Então ele decidiu ir para o Catar para ganhar dinheiro para poder mandá-los para a escola."

Foi um dinheiro muito difícil de ganhar. "Ele subia em construções altas, lá no topo, ele trabalhava lá em cima. Tinha que levar os materiais de construção lá para cima."

Aslani e o marido, assim como muitos de sua geração, nunca estudaram. Nos primeiros anos do trabalho na construção civil, as coisas melhoraram. Construíram essa casa, mandaram as crianças para a escola e compraram um pedaço de terra. Mas, desde a morte repentina de Muneshwor no Catar, também sem muita explicação à família, tudo está desaparecendo. 

"Depois da morte do meu marido não temos mais renda. Eu vendi um pedaço da terra que compramos. Estamos sobrevivendo disso, mas o dinheiro está acabando."

Ela, como quase todos no Nepal, não receberam nenhum tipo de compensação pela morte de seus entes queridos nas obras. 

Tanto o governo do Catar quanto a Fifa afirmam que desde que as primeiras denúncias de maus-tratos aos operários estrangeiros nas obras da Copa surgiram, importantes reformas foram feitas na legislação trabalhista. De acordo com os organizadores do Mundial, a fiscalização aumentou e a qualidade de alojamento e o respeito pelas horas trabalhadas tem sido observados. 

Apesar disso, o governo do Nepal viu os números oficiais de operários mortos no Catar quebrar recordes históricos. Entre julho de 2021 e junho deste ano, 296 nepaleses morreram trabalhando na sede da Copa do Mundo de futebol. 

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