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Dos carnavais luxuosos ao crime: como Jogo do Bicho se tornou disputa sangrenta

Apostas deram dinheiro e poder aos bicheiros e a brincadeira se tornou esquema envolvendo mortes, tráfico de drogas, corrupção e briga por territórios

Por Fernando David

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No Jogo do Bicho o pavão — 19, é um pássaro até tranquilo, mas com fama de exibido por abrir a cauda para chamar atenção. No habitat natural dos bicheiros, a Sapucaí, os patronos se comportam de jeito parecido ao da ave das penas ornamentais. Foi graças aos bicheiros que o Carnaval no Rio de Janeiro se tornou luxuoso e muitas vezes, deslumbrante. 

Nos anos 1970, a relação entre o Carnaval e o Jogo do Bicho começa a se estreitar. O historiador Luiz Antonio Simas aponta que tudo começa a ficar mais intenso com Anísio Abraão David. "Ele com a Beija-Flor, Castor de Andrade com a Mocidade Independente de Padre Miguel, os Drummond com a Imperatriz Leopoldinense", diz. 

Para Neguinho da Beija-Flor, a chegada dos bicheiros mudou tudo no Carnaval. "Com a chegada deles, o Carnaval ficou super organizado", afirma.

Dos bicheiros mais próximos do Carnaval, Castor de Andrade foi um dos mais importantes. Um dos fundadores da Cúpula do Jogo do Bicho, ele também foi importante para o pacto de não-agressão que loteou o Rio de Janeiro entre os principais bicheiros do estado e também participou da Liga Independente das Escolas de Samba, a LIESA. Castor transformou a Mocidade Independente de Padre Miguel de coadjuvante a protagonista do Carnaval carioca. 

"A LIESA é o coroamento do acordo de 1974, ela consegue privatizar todos os lucros e tornar públicos todos os custos do carnaval", explica o pesquisador Felipe Magalhães, da UFFRJ. 

Mas apesar das escolas de samba serem fontes de dinheiro, a aproximação do Jogo do Bicho com as agremiações não ocorreu por motivação financeira, como explica o delegado Vinícius George. "O grande objetivo ali foi a busca de legitimação social que a gente chama de 'lavagem de imagem' e obtiveram êxito com benefício do poder público. Foi a prefeitura do Rio que entregou o Carnaval aos bicheiros", diz. 

Da simples contravenção às páginas policiais

Quando o pavão abre demais a cauda, chama a atenção dos predadores. No auge da popularidade, os bicheiros da cúpula foram presos e condenados em 1993. A juíza Denise Frossard condenou os principais bicheiros por participação em 53 homicídios. As investigações revelaram, ainda, participação no tráfico de armas, drogas, lavagem de dinheiro e pagamento de propina às autoridades. 

O Jogo do Bicho, já não tão lucrativo, virou fachada para o crime organizado. Felipe Magalhães aponta que as milícias são filhas do Jogo do Bicho. "Tem uma ação paternal dos banqueiros com os milicianos. são duas empresas Independentes, mas que se comunicam se articulam em vários aspectos", indica. 

Carolina Grillo, socióloga da UFF, aponta que os lucros dos bicheiros aumentou com a diversidade dos crimes. "A partir desse momento a lucratividade desse mercado sobe. junto com o aumento dos lucros, tem-se também um acirramento de disputas, é claro vinculada à morte de algumas lideranças importantes", diz. 

Uma das guerras sangrentas pelo controle do Jogo do Bicho

Com a morte de Castor de Andrade em 1997, uma guerra entre os herdeiros foi desencadeada no Rio de Janeiro. O conflito já vitimou o filho de Castor, Paulinho e o genro, Fernando Ignácio, assassinados supostamente a mando do sobrinho de Castor, Rogério de Andrade. 

Rogério chegou a ser condenado, mas foi inocentado duas vezes pelo Supremo Tribunal Federal. Ele nega envolvimento nos crimes. 

Jogo do Bicho será legalizado?

Após causar centenas de mortes, agora o Jogo do Bicho pode ser legalizado. Quem estuda o assunto, teme que dê zebra. "É preciso ter cautela a respeito de como isso será feito. É complicado que famílias que tenham histórico de violência continuem atuando e, dessa vez, no mercado legítimo", explica Carolina Grillo. 

Felipe Magalhães aponta alguns problemas da legalização do Jogo do Bicho. "Quem é o fiscal do trabalho? Quem vai fiscalizar um ponto de bicho? Para descobrir se as relações trabalhistas ali estão sendo estabelecidas formalmente, se os impostos estão sendo recolhidos? Legalizar ou não o jogo do bicho não faz a menor diferença", pontua o pesquisador. 

O delegado Vinícius George é favorável à regularização. "É um tema extremamente complexo, difícil, mas depois de décadas sendo contra isso, acho que a tentativa é válida. Com certeza a hipocrisia acaba, a corrupção vira tributo e a esperança é que não tenha mais essas mortes. Tomara que sim, tentativa e erro", indica.

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