O crime organizado no Rio de Janeiro volta suas armas para a fé dos moradores dos subúrbios e comunidades.
"Eles se intitulavam ‘Soldados de Cristo’ e fizeram uma reunião, chamaram todo mundo num espaço, num quarto, todos muito bem armados, e falaram que, a partir daquele dia não poderia mais tocar, não poderia mais utilizar branco, não poderia sequer você acender uma vela na sua casa para algum orixá."
Quando se ouvem relatos como esses, o grande desafio é: como chegar a essas pessoas? De que forma entrar em lugares onde nem a polícia entra? E não são áreas distantes, isoladas de tudo. Fica bem próximo à porta de entrada do nosso país pra centenas de milhares de turistas que visitam o Brasil: o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. A 8 km do aeroporto, existe uma favela, controlada há anos pela mesma facção criminosa. Denúncias que nós recebemos nos levam naquela direção: o Morro do Dendê.
Até junho de 2019, o morro era comandado pelo traficante mais procurado do Rio: Fernando Gomes Freitas, o Fernandinho Guarabu.
Guarabu se dizia um homem convertido pela religião.
“Se ele fosse de fato convertido, ele teria seguido a doutrina de Jesus”, diz Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio. “A filosofia cristã é linda. O que prega a religião evangélica é lindo, perfeito. Se eles fossem realmente convertidos à religião, você acha que eles estariam traficando? Você acha que eles estariam mandando matar pessoas?“
Sob as ordens do tráfico, a intolerância à diversidade religiosa tomava dimensões até então desconhecidas.
'Lei Marcial'
Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, destaca: "Uma proibição declarada e de expulsão. Você tem uma lei marcial, vamos assim dizer, você não pode tocar atabaque, não pode, é, fazer festa, primeiro, começa com isso. Inclusive, até mesmo as pessoas que colocam roupa branca na corda, ou se saía de branco na rua, eram ameaçados".
Em 2019, Guarabu e outros cinco homens foram mortos em confronto com a polícia.
Paulo Storani, antropólogo e ex-instrutor do Bope, ressalta: “A gente está olhando para trás e vendo onde isso teve origem, como aconteceu e como permitiu que chegássemos ao ponto que chegamos hoje”.
Ao longo dos anos, os traficantes se armaram com fuzis e passaram a comandar não só a venda de drogas. Assim como os milicianos, hoje controlam a venda de gás, os serviços de TV a cabo e internet, a circulação de motos e vans.
Relatos
Por meio plataformas digitais, o Jornal da Band começou a ouvir os primeiros relatos de vítimas. São fiéis, pais e mães de santos do Morro do Dendê e também de outras comunidades do Rio e região metropolitana.
"O Terceiro Comando Puro se incomoda com a prática de cultos religiosos de origem africana”, diz uma vítima. “E não só o meu terreiro, mas como praticamente todos os terreiros da região foram expulsos e, enfim, foram proibidos de praticar qualquer tipo de ato."
Em outra comunidade, a perseguição se expandiu a fiéis da religião católica. Para ouvir os moradores de lá, a Rádio Bandnews FM recebeu denúncias de ouvintes de que em algumas paróquias do rio e baixada, as procissões do domingo de ramos foram proibidas, não aconteceram por causa de uma determinação imposta por traficantes.
“Isso aí que vocês estão falando é pura verdade”, diz uma das mensagens. “O bandido peixão proibiu qualquer eventualidade desse tipo aqui na Cidade Alta."
- Reportagem: Vinicius Dônola
- Produção: Carlos Brigs e Pedro Cardoso
- Edição: Adriana Alves e Eduardo Sorrentino
- Coordenação: Sérgio Gabriel
- Direção: Fernando Mattar