‘Impotência e medo’: como a tragédia no Rio Grande do Sul afeta a saúde mental?

Psicólogas avaliam que falta de amparo e incertezas com possíveis casos como o do estado causam temor na população

Por Luiza Lemos

‘Impotência e medo’: como a tragédia no Rio Grande do Sul afeta a saúde mental?
Medo de futuras catástrofes climáticas causa piora na saúde mental
REUTERS/Diego Vara

A tragédia que atinge o estado do Rio Grande do Sul, que devastou o estado e segue afetando boa parte da população gaúcha, não causou apenas danos materiais. As imagens do rastro de destruição em ao menos 460 municípios, os relatos de quem perdeu tudo e as incertezas com o futuro da região causam preocupação e até piora na saúde mental de pessoas que assistiram de longe a situação crítica.

Segundo a última pesquisa do Instituto Locomotiva com a PWC, a preocupação com alagamentos e enchentes chega em todas as classes sociais e econômicas no Brasil. O levantamento mostra inclusive que 49% dos brasileiros já enfrentaram um alagamento. Além disso, 74% dos participantes da pesquisa alegam que têm medo de novas enchentes. 

Assistir às imagens do sul e relembrar a própria história com uma inundação fez a monitora social Edine Costa ter medo e sentimento de impotência em não poder ajudar mais o povo gaúcho. “Em 2022 passei por alagamentos e deslizamentos em Franco da Rocha, onde trabalhava no CRAS como orientadora social. Famílias relatavam como era encontrar pessoas soterradas, pesadelos, e essa experiência me mudou”, conta. 

Sinto agora medo e impotência, ouvi e vi muito do que me afetou. Já é difícil trabalhar na assistência social, muitas vezes depositam uma expectativa grande, como se tivéssemos como mudar a vida de alguém magicamente. Então me sinto culpada por não conseguir salvar o mundo - lamentou Edine Costa

Questionamentos e medos como o de Edine se tornaram mais frequentes entre os pacientes da psicóloga Priscilla Pereira Nunes, que atende pessoas de todo o Brasil em casa, no Rio Grande do Sul. Ela, no momento, se divide entre viver a catástrofe no próprio estado e auxiliar pacientes com medo de passar pelo mesmo. 

“No começo da tragédia, atendi mais quem tinha relação com o Rio Grande do Sul ou é de lá. Mas, quanto mais os dias foram passando, os relatos iam aumentando das pessoas de outras regiões, com um misto de sentimentos”, indica. 

A psicóloga conta que os relatos de sofrimentos e angústias com enchentes e alagamentos chegam também pelo medo de perder tudo em uma possível tragédia semelhante a do estado. “Muitas pessoas retomam lembranças de já terem vivenciado situações parecidas, e aí chegam reclamações sobre a falta de amparo por parte do governo, queixas sobre um sentimento muito forte de instabilidade econômica, sobre a desigualdade social e sobre as injustiças frequentes”, pontua. 

Natália Silva, responsável pelo Grupo Reinserir, também sentiu que as enchentes afetaram pacientes de outros estados e regiões. Segundo a profissional, os medos referentes a inundações são comuns, mas com a situação no Rio Grande do Sul, eles aumentaram. 

Parece que triplicam os medos e eles viram gatilhos, principalmente por lembranças do passado, caso a pessoa tenha vivido este tipo de situação, além dos riscos atuais e o medo por um futuro não tão distante, com muita incerteza - pontua a psicóloga. 

Pessoas vindas da periferia são mais vulneráveis à piora na saúde mental

Maioria dos brasileiros já passou por enchentes e teme novas tragédias | REUTERS/Adriano Machado

As mudanças climáticas e catástrofes como a do Rio Grande do Sul afetam mais a população mais pobre, causando a desigualdade climática. As psicólogas pontuam que, muitas vezes, o medo vem também de uma realidade já vivida, já que muitos dos pacientes saíram de situações de vulnerabilidade.

Muitos não estão mais nas periferias, mas vieram de lá e esse tipo de situação sempre foi constante. Apesar de saírem, os parentes seguem lá, os amigos também, então o medo constante é pelos seus - indica Natália Silva. 

Priscilla Nunes pontua que a insegurança financeira também influencia. “Quem já passou por insegurança habitacional, com menor renda, já são afetadas economicamente e, consequentemente, psicologicamente. Há relatos de pessoas que foram demitidas por faltarem ao trabalho por conta da enchente. Então quem já vivia de forma insegura, pode experienciar mais desamparo. Os sofrimentos vão se somando”, afirma Priscilla. 

Segundo Natália, essa sensação de descontrole é somada à falta em outros âmbitos da vida. “As pessoas começam a pensar nos empregos, na ausência deles, dos salários baixos, como a vida está precarizada, na saúde, na assistência, na fome, na moradia. Então essa sensação de instabilidade faz com que as pessoas comecem a se questionar em outros cenários difíceis e o sentimento de desamparo perante o Estado", diz. 

Ver imagens da catástrofe pode acionar gatilhos emocionais

A cobertura jornalística de catástrofes como a do Rio Grande do Sul dá a importância necessária de atender aos gaúchos e traz luz a problemas de políticas de prevenção e de ação contra enchentes. Mas, para parte do público, assistir às imagens pode trazer sentimentos ruins – principalmente a quem viveu algo semelhante ou tem medo de novas catástrofes climáticas. 

Segundo Priscilla Pereira Nunes, as principais sensações que os pacientes citam são de impotência, desamparo, ansiedade, medo, angústia e desesperança. Natália Silva, por sua vez, indica também que há quem sofra apenas pela possibilidade de uma catástrofe. 

“Nos deparamos com pacientes que assistem e até preveem o caos que está para acontecer, que isso também vai nos afetar, e escuto relatos de gente já querendo se preparar. Há quem monte kits de primeiros-socorros, com cordas, velas e isso já gera uma grande ansiedade, um estado constante de alerta”, pontua. 

Priscila afirma que é necessário se conectar com a realidade do estado, mas é preciso se proteger. “Assistir apenas às imagens dificilmente ajudará a cuidar do que houve, então, se for possível, ajude apenas conforme as possibilidades de cada um”, indica a psicóloga. 

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