Vinte e dois mortos e cerca de 150 feridos. Este foi o saldo do ataque terrorista ocorrido em Bagdá, no Iraque, em 19 de agosto de 2003. Em ação reivindicada pela organização extremista Al Qaeda, um caminhão-bomba explodiu o Hotel Canal, que funcionava como sede da Organização das Nações Unidas (ONU) na cidade há mais de 10 anos. Entre os mortos, o brasileiro Sergio Vieira de Mello (1948-2003), o primeiro brasileiro a chegar ao alto escalão da entidade.
Funcionário da ONU desde 1969, Mello tinha uma carreira de sucesso. Quando morreu, era o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. E era apontado, por muitos, como o sucessor natural de Kofi Annan (1938-2018), que foi secretário-geral da organização de 1997 a 2006. O próprio Annan costumava dizer que o brasileiro era "a pessoa certa para resolver qualquer problema".
Foi essa reputação que o levou a trabalhar em Bagdá. Em maio de 2003, Annan delegou a Mello a missão de atuar no Iraque porque o país vivia um sangrento conflito após ter seu território ocupado por uma coalizão ocidental liderada pelos Estados Unidos.
"Funcionário de carreira de uma organização internacional de caráter universal, ele dedicou sua vida às tarefas de pacificação, de estabilização e de reconstrução de nações abaladas pelo flagelo da guerra, da destruição e da pobreza", analisa o jurista e cientista político Enrique Natalino.
"Em sua trajetória de mais de três décadas a serviço da ONU, notabilizou-se por uma combinação rara de capacidade executiva, visão humanista e talento agregador nas complexas missões que desempenhou em países tão distintos como Bangladesh, Sudão, Moçambique, Bósnia, Camboja, Peru, Timor Leste e Iraque", acrescenta o pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Timor Leste
Conforme declararam depois lideranças da Al Qaeda, não foi o trabalho em busca da paz no Iraque que deixou Mello no alvo dos terroristas. O que havia despertado a ira dos extremistas foi o trabalho realizado pelo brasileiro no Timor Leste, entre 1999 e 2002.
Ele teve papel-chave no processo de independência do país do sudeste asiático, atuando como administrador de transição da ONU e selando a emancipação definitiva da Indonésia.
Na visão da Al Qaeda, Mello se portou como um "cruzado" contemporâneo, libertando um território (Timor Leste) que integrava um país majoritariamente muçulmano (Indonésia, com quase 90% da população adepta da fé islâmica).
Ex-embaixadora dos Estados Unidos na ONU, a jornalista e diplomata Samantha Power conta em seu livro O Homem Que Queria Salvar o Mundo que Mello não morreu no momento da explosão do QG da ONU — ele ficou preso nos escombros por mais de três horas, tempo em que se comunicou com a equipe de resgate por um buraco entre os destroços do prédio. Nesse meio-tempo, diz o livro, o funcionário responsável pela segurança do local chegou a telefonar, do celular, para a sede da entidade em Nova York, reportando a gravidade da situação.
Direitos humanos e assistência humanitária
Nascido no Rio, ele era filho da professora Gilda dos Santos e do diplomata Arnaldo Vieira de Mello, cassado pela ditadura militar. Formou-se em filosofia na Universidade de Paris I, onde mais tarde voltaria para defender seu doutorado. Ingressou na ONU aos 21 anos.
Muitas vezes Mello é classificado como diplomata, mas aqui é preciso uma ressalva. "Ele atuava no mundo diplomático, mas não na qualidade de um representante de Estado", explica Luís Fernando Baracho, professor de direito internacional e de relações internacionais da Universidade São Judas Tadeu e um dos editores do blog Fora da Cadência — sobre política internacional. "Ele era funcionário de uma organização internacional e isso dava a ele uma perspectiva muito própria de alguém que busca coordenar um sistema de cooperação sem o viés de otimizar o interesse nacional."
Para o cientista político Christopher Mendonça, professor na Ibmec de Belo Horizonte, entre as qualidades mais importantes de Mello estava a abertura ao diálogo. "Ele se mostrava um condutor hábil de negociações improváveis. A diplomacia era, definitivamente, seu grande dom", afirma.
Segundo análise de Baracho, Mello conseguiu, em seus anos de ONU, desempenhar papéis importantes em duas das três áreas estratégicas da organização: direitos humanos e assistência humanitária — a outra é o meio ambiente. E o brasileiro atuava na linha de frente, muitas vezes indo a zonas de conflito.
Natalino diz que Mello foi "um homem público experiente que buscava aplainar os caminhos para o entendimento entre os povos" e alguém que "dedicou sua vida à tarefa de convencer seus interlocutores em matéria de guerra e paz".
"Avesso de um burocrata tradicional de organismos multilaterais, era um diplomata de campo e um homem de ação que tinha especial predileção por tarefas que exigiam desenvoltura no exercício da liderança, na prática do diálogo e no equacionamento de interesses de múltiplos atores em cenários tão complexos como o Camboja, a Bósnia, o Timor Leste e o Iraque", comenta.
O cientista político avalia que em todas as suas missões, Mello "imprimiu seu brilhantismo, seu talento executivo e sua incansável crença no sistema multilateral das Nações Unidas como baluarte ético em um mundo marcado pelo entrechoque de interesses interestatais".
Sucessor de Annan
Todas essas qualidades profissionais e o fato de estar chefiando um alto comissariado da ONU faziam de seu nome uma aposta forte dentre os que se apresentavam para comandar a própria organização. Natalino ressalta que sua formação, sua visão universalista, sua vasta experiência de campo e seu conhecimento do aparato burocrático, aliados à "coragem de dialogar com todos", formavam completas "credenciais para ocupar o cargo de secretário-geral das Nações Unidas".
Mendonça lembra também que Mello e Annan atuavam muito próximos. "A amizade desses dois marcou um período importante de atuação da ONU em situações de completa calamidade e demonstrou a importância da organização para o cenário internacional", ressalta.
"Mello era um dos braços direitos de Annan e foi nessa condição que foi enviado ao Iraque para a difícil missão de auxiliar no processo de reconstrução do país. Mesmo não sendo um diplomata representante de um Estado nacional, Mello foi um estadista, na melhor acepção do termo", comenta Natalino.
"Foi um homem público com extraordinária capacidade de combinação de idealismo e realismo, um verdadeiro funcionário a serviço das causas da humanidade", prossegue. "Era um idealista sem ilusões e um realista que agiu, pensou e morreu por amor ao mundo."
Ao longo de sua carreira, o brasileiro se inspirava no modo de atuar do sueco Dag Hammarskjöld (1905-1961), que foi secretário-geral da ONU e foi laureado com o Nobel da Paz, e se tornou conhecido pela firmeza com que defendia os princípios da imparcialidade e da independência. Curiosamente, Hammarskjöld também morreu em serviço: um controverso acidente aéreo quando atuava na pacificação do Congo.
Autor: Edison Veiga