Fenômeno das bets: uma perigosa epidemia global

Crescimento vertiginoso das apostas online e seus efeitos deletérios para parte da população não são um problema exclusivamente brasileiro. Vários países enfrentam situação semelhante e debatem regras mais rigorosas.

Por Deutsche Welle

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Com certo atraso, o Brasil se deu conta do potencial de dano que as apostas esportivas online – as bets – podem causar, em especial a homens jovens: vício, dívidas, problemas familiares e menos dinheiro para educação e alimentação são alguns dos efeitos colaterais.

Principais patrocinadoras de 15 dos 20 times de futebol da primeira divisão, as bets são onipresentes no esporte favorito do brasileiro e acessíveis do celular, no conforto de casa. Legalizadas desde 2018, o governo anunciou sua regulamentação apenas em setembro, quando o país já estava atrás apenas de Estados Unidos e Inglaterra em faturamento do setor, segundo a empresa de análise Comscore.

Mas o crescimento vertiginoso das bets e seus efeitos deletérios para parte da população não são um problema exclusivamente brasileiro. Outros países vêm registrando fenômeno semelhante e, em diferentes ritmos, debatendo e adotando regras mais rigorosas. Pesquisas recentes também trouxeram mais clareza sobre seu impacto na saúde financeira e mental da população.

Estados Unidos, o maior mercado

Tal como no Brasil, as bets foram legalizadas nos Estados Unidos em 2018 – mas, em vez de uma alteração legislativa aprovada pelo Congresso, no caso dos americanos o pivô da mudança foi uma decisão da Suprema Corte: a maioria dos ministros concluiu que uma norma federal de 1992 que proibia as apostas esportivas extrapolava as competências do governo federal, e garantiu aos estados o direito de regular sobre o tema.

Hoje as bets são legalizadas em 38 dos 50 estados do país. Uma estimativa do banco Goldman Sachs apontou que, apenas em outubro de 2023, os americanos desembolsaram mais de 1 bilhão de dólares em apostas esportivas online – e a projeção é o setor seguir crescendo até alcançar 45 bilhões de dólares por ano.

Além dos bancos, as bets também chamaram a atenção de pesquisadores que vêm se debruçando sobre seus efeitos nas finanças dos americanos. Um estudo realizado por Brett Hollenbeck, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, e Poet Larsen e David Proserpio, da Universidade do Sul da Califórnia, publicado em preprint em agosto e ainda não revisado por pares, concluiu que nos estados que legalizaram as bets a saúde financeira dos moradores piorou mais do que nos estados onde elas seguiam proibidas.

Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores consultaram uma base de dados financeiros anonimizados de cerca de 7 milhões de americanos, com informações de 2004 até hoje, e compararam a evolução de variáveis como saúde financeira, débito excessivo e acesso a crédito. A metodologia incluiu uma checagem que afastou a hipótese de que estados que legalizaram as bets o fizeram devido a problemas orçamentários, o que poderia também influenciar a saúde financeira dos cidadãos.

A pesquisa encontrou uma diferença estatisticamente significante para pior na pontuação de crédito, na taxa de insolvência e na cobrança de dívidas nos estados que legalizaram as bets, em comparação com os demais. Os resultados também mostraram que, onde as apostas online são legalizadas, a piora foi mais acentuada entre homens jovens moradores de municípios mais pobres.

Atentos à evolução do fenômeno, o deputado federal Paul Tonko e o senador Richard Blumenthal, ambos do Partido Democrata, apresentaram em setembro um projeto de lei para estabelecer, no âmbito federal, padrões mínimos para a atuação das bets. Entre as medidas propostas, está a proibição de patrocinar atletas universitários e o uso de cartão de crédito para fazer apostas.

Alemanha discute restrição à publicidade

Na Alemanha, a legalização das apostas esportivas online ocorreu no final de 2020 – e elas estão ganhando espaço. Em 2022, registraram uma receita, já descontado o pagamento dos prêmios, de 1,4 bilhão de euros – atrás apenas das tradicionais máquinas de jogos em estabelecimentos gastronômicos e salões (4,8 bilhões de euros) e da loteria (4,1 bilhão de euros).

Os dados estão no relatório Atlas dos Jogos de Azar 2023, elaborado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Interdisciplinar sobre Vícios e Drogas em Hamburgo (ISD), do Centro Alemão para Questões do Vício em Hamm (DHS) e da Universidade de Bremen, financiados pelo Ministério da Saúde.

A pesquisa define as apostas esportivas online como "a modalidade mais fácil de jogo de azar" e destaca seu rápido crescimento. Enquanto isso, o país debate se deve proibir a veiculação de publicidade de bets. Na temporada 2022/2023, 17 dos 18 times de futebol da Bundesliga recebiam patrocínio de empresas do setor, segundo o relatório.

Deputados do Partido Social-Democrata (SPD) e do Partido Verde vêm defendendo a proibição da publicidade, também apoiada por mais de 70% dos alemães, segundo uma pesquisa de opinião realizada em dezembro de 2022. O país tem hoje uma legislação relativamente liberal sobre o tema, e permite que as bets patrocinem times e veiculem propaganda em outdoors, na internet e na televisão, condutas proibidas, por exemplo, na Bélgica e na Itália.

Em 2021, uma pesquisa identificou que 8% dos homens que moram na Alemanha haviam feito apostas esportivas, enquanto apenas 2% das mulheres. Os homens de 21 a 35 anos e pessoas com um histórico de imigração são as mais afetadas pelo vício. Segundo o relatório, entre os que fazem apostas esportivas ao vivo, 29,7% têm algum grau de vício, sendo 6,1% vício grave.

Consideradas todas as modalidades de jogos de azar legalizadas, o governo arrecadou 5,2 bilhões de euro com a atividade em 2021 – mais que o dobro do coletado com a venda de bebidas alcoólicas. O relatório também estimou que há 4,6 milhões de adultos viciados ou sob risco iminente de se viciar em jogos na Alemanha. Os viciados – que somam 1,3 milhão de pessoas – gastam em média 800 euros por mês em apostas, e os sob risco iminente de vício, que são 3,3 milhões, em média 206 euros por mês.

A regulação do setor inclui uma base de dados centralizada que cadastra pessoas que ficam impedidas de fazer opostas online – o próprio apostador, seus familiares ou empresas podem fazer pedidos para o cadastro. No final de 2023, havia mais de 200 mil pessoas cadastradas nessa base de dados, a maioria por iniciativa do próprio apostador, segundo o jornal Die Zeit.

Na Argentina, moda entre os jovens

O país vizinho ao Brasil também lida com problema parecido. Na Argentina, pelo menos 17 províncias têm normas que permitem as apostas online, inclusive Buenos Aires, desde dezembro de 2018, segundo o site Chequeado.

Uma pesquisa online realizada de maio a julho deste ano por uma rede de universidades, com 7.810 adolescentes e jovens de 15 a 29 anos, identificou que 22% deles já tinham feito apostas online no passado, e 16% seguiam fazendo.

Entre os que já haviam apostado ou estavam apostando, 58,7% disseram gastar menos de uma hora por dia horas na atividade, e 12,7% deles relataram ficar mais de quatro horas por dia fazendo apostas online. No mesmo universo, 27,5% disseram que já haviam sentido ansiedade ou estresse por não ter conseguido realizar uma aposta online, e 25% gastaram nas bets dinheiro destinado a outra finalidade.

Entre os adolescentes e jovens homens que haviam apostado ou estavam apostando, o gasto médio mensal equivalia a R$ 120 e, entre as mulheres, a R$ 61.

A pesquisa recebeu também mais de 4 mil relatos dos entrevistados. Alguns mencionaram sofrerem bullying de colegas por não terem "coragem" de fazer apostas online, conhecerem pessoas que furtaram recursos de familiares para apostar e outras que perderam amigos ou que apanharam na escola devido a pedidos de empréstimo de dinheiro para sustentar as bets. Entre os que apostam, há relatos de desespero, mau humor e acessos de fúria relacionados à atividade.

A adoção de controles mais rígidos para acessar os sites de aposta teve o apoio de 41,8% dos participantes, e 71,7% apoiariam uma campanha de prevenção direcionada a jovens.

O professor Martín Romeo, diretor da pesquisa, afirmou ao jornal La Nación que os adolescentes e jovens de renda média baixa, moradores de lares ligeiramente acima da linha de pobreza, apostam em média três vezes mais do que a média geral da amostra. Sua hipótese é que eles procuram compensar a renda insuficiente do trabalho por meio das apostas. "Não é que eles apostem porque não têm nada para fazer", diz.

Em 8 de outubro, uma operação policial em Buenos Aires desarticulou uma organização envolvida em apostas online ilegais, e bloqueou mais de 1.800 sites de apostas não autorizados.

Restrições em outros países

Uma pesquisa liderada por Repairer Etuk, da Universidade de Nevada (EUA), publicada em setembro de 2022 no Journal of Behavioral Addictions, fez uma revisão de 65 artigos científicos sobre apostas esportivas em 12 países e identificou que elas são associadas com um nível mais elevado de comportamentos problemáticos.

Entre os países avaliados, China e Coreia do Sul foram os que adotaram nos últimos anos as restrições mais rigorosas contra as bets. Na China, o país vivenciou um rápido crescimento das apostas online entre 2005 e 2014, até serem proibidas em 2015 – hoje, apenas algumas modalidades de loteria esportiva controladas pelo governo são permitidas. Na Coreia do Sul, apenas uma empresa tem a licença para oferecer apostas esportivas em lojas físicas e online.

No campo da publicidade, a Espanha restringiu em agosto de 2021 o horário de veiculação de propagandas sobre bets esportivas para o período de 1h a 5h da madrugada, e proibiu o patrocínio de times e torneios no país – na primeira divisão, antes do veto, 19 dos 20 clubes recebiam patrocínio de sites de apostas. No Reino Unido, as empresas de apostas estarão proibidas de serem as patrocinadoras principais de clubes da Premier League a partir da temporada de 2026/2027.

Jovens com renda baixa são mais vulneráveis

Diversas pesquisas já demostraram que jovens e pessoas com menor renda são mais vulneráveis aos efeitos adversos das apostas na sua saúde financeira. A psiquiatra Nicole Rezende, colaboradora do Programa Ambulatorial Integrado de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da USP (Pro-Amiti), afirma à DW que isso ocorre por diversos fatores.

"É como se fosse um quebra-cabeça. Pessoas mais vulneráveis emocionalmente, com histórico de trauma ou de problemas de saúde mental, podem utilizar o jogo como uma forma de obter prazer. E se já existe uma vulnerabilidade de uso de substância, a chance de evoluir para um comportamento compulsivo é maior", diz.

Ela pontua que o acesso às bets, principalmente para os adolescentes, foi muito propagandeado via redes sociais com um discurso de que "seria uma possiblidade para aumentar a renda, uma solução rápida para dificuldades financeiras". Nesse cenário, jovens carentes, sem supervisão parental ou rede de apoio, ficam mais expostos.

"O jovem com menos instrução pode ter a crença que aquilo vai resolver a vida. Diferentemente dos indivíduos que já estão mais estáveis, com alguma segurança financeira, empregado ou cursando uma faculdade, com mais repertório", diz.

O fato de as apostas estarem disponíveis no celular potencializa o potencial aditivo: "Quanto mais acessível e normalizado um comportamento é dentro de uma cultura, mais o indivíduo fica à vontade para iniciar e se engajar. E, na maioria das vezes, ninguém está checando o que a pessoa está fazendo ali no celular."

Autor: Bruno Lupion

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