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Falta de acolhimento e desinformação inspiram mães a lutarem pelos direitos LGBT

Além dos desafios naturais da maternidade, enfrentar um mundo preconceituoso pelos filhos fez mulheres criarem movimentos em prol da comunidade

Por Luiza Lemos

Falta de acolhimento e desinformação inspiram mães a lutarem pelos direitos LGBT
Reprodução/Arquivo pessoal

Quando Thamirys Nunes percebeu que a filha Agatha, uma menina transgênero de nove anos, não se encaixava nos padrões de gênero masculino, ela se sentiu solitária. Na época que a filha declarou, com quatro anos, que “preferia morrer a ser um menino”, a mãe não foi acolhida por amigos e familiares em meio aos anseios e medos de lidar com uma situação que nunca havia vivenciado antes.  

“A gente olha para os lados e se vê sozinha, não vê ninguém passando pelo mesmo, não tem referência”, conta. “Me respeitaram, mas ninguém me entendeu, ouviu minhas inseguranças. Não tinha quem me entendesse. Eu estava vivendo o momento mais difícil da minha vida, vi meu filho ‘morrer’ e não era dentro de um caixão, era dentro de uma saia de tutu, e ninguém entendia o que eu passava, então faltou muito abraço, escuta.” 

Após o processo solitário, ela decidiu relatar tudo em um livro e, pouco tempo depois, fundou a ONG ‘Minha Criança Trans’. Atualmente, ela está ao lado de outras 600 mulheres que passam pelo processo de transição de gênero dos filhos e aprendem e desenvolvem juntas os melhores meios para apoiá-los. 

A gente se acolhe, eu escuto, entendo, vou saber quem é a pessoa, a história. Temos grupos de apoio e priorizamos a criança trans, a vivência trans - Thamirys Nunes.  

Para ela, a falta de informação sobre identidade de gênero e direitos de pessoas LGBTQIAP+ a fez passar por situações que ela só entendeu mais tarde que eram violentas. 

“Conhecimento e informação são formas de proteção, é o mais potente. Se eu soubesse o que sei hoje, que direitos minha filha tem, eu teria feito mais por ela, teria até denunciado a psicóloga que quis culpar eu e o pai na época que notei que ela não se identificava com o gênero imposto. Saber os direitos e as obrigações das pessoas abre o mundo”, pontua.  


A psicóloga do Grupo Reinserir, Nárrina Ramos, concorda e acredita que os pais de pessoas LGBTQIAP+ podem e devem, além de cuidar, lutar por um mundo mais seguro. “Mesmo com o ‘susto’, é importante que a família esteja comprometida com a proteção e a segurança dos filhos. Ao compreender que muito do que temos por ‘natural’ é, na verdade, socialmente construído, eles podem desenvolver as habilidades necessárias para cuidar daquela pessoa e também de lutarem, socialmente, pela segurança deles”, aponta.

Do preconceito ao ativismo pelos filhos

Ao descobrir que a filha de então 19 anos era lésbica, a primeira reação de Gi Carvalho foi de distanciamento. Ela, que pensava ser uma pessoa que respeitava a comunidade LGBTQIA+, se viu tendo uma reação diferente da que pensaria ter. “Minha filha sofreu as primeiras violências da própria mãe. Fui violenta com ela, fui logo a mãe preconceituosa”, conta. 

Hoje presidente da ONG ‘Mães da Resistência’, que acolhe e dá apoio a mães de pessoas LGBT, Gi diz que deixou os preconceitos ao ser repreendida pela irmã. À época, a filha estudava na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Ela morava em Pernambuco e a irmã, em Porto Alegre. Ao visitar a irmã após a discussão com a filha, Gi diz ter vivido ‘outra virada de chave’. 


“Ela disse estar decepcionada comigo. Ali vi que tinha algo errado em mim, voltei para casa e, ao contar para a minha mãe, ela sugeriu que fossemos atrás de um psicólogo. Perguntei: ‘Para ajudar ela?’ E minha mãe, aos 70 anos: ‘Não, para nós duas entendemos as coisas direito’. Ela estava muito mais à frente do que eu”, afirma. 

Após as situações familiares, Gi ainda demorou a assimilar a situação da filha e chegou até a se distanciar dela. “Quando percebi que estava distanciando minha filha de mim, resolvi buscar ajuda e fui estudar, entender todos os movimentos sociais. Fui para dentro da organização e comecei a aprender, até saber que precisava ser ativista”, conta. 

A mãe diz que só foi entender que deveria defender os direitos da filha como pessoa LGBT ao testemunhar por telefone, a mais de 4 mil km de distância, uma perseguição e violência que ela sofreu. “Minha filha atravessava uma praça com a namorada e um amigo gay. Eles foram perseguidos e, ao entrarem em um bar para se abrigar, apedrejaram o local. Acompanhei tudo por telefone, de madrugada em casa, em Pernambuco.”

Após toda a perseguição, os agressores ainda derrubaram o muro da casa onde as duas moravam. “Eu ouvi tudo, entrei em pânico e percebi naquele momento que precisava fazer algo a mais, não dava para ficar de braços cruzados. Denunciei nas redes sociais e fui atrás de organizações, ali entendi que deveria ser ativista”, afirma. 

Foi nessa hora que pensei: ‘Se eu não conseguir fazer alguma coisa para transformar esse mundo, vou perder minha filha. Vi que se nem calada terei paz, vou atrás de ter razão. Hoje penso além de casa, do útero, penso em tudo - Gi Carvalho

Depois de passar por uma organização como coordenadora, Gi criou em 2021 a própria ONG, para dar maior assistência para mães de pessoas LGBT. “Atualmente estamos presentes em 17 estados, mais o Distrito Federal, para fazer o acolhimento que precisei na época em que descobri que minha filha era lésbica. Hoje temos uma cartilha de letramento, temos grupos de acolhimento, profissionais da saúde que nos ajudam e até advogados voluntários que tiram dúvidas sobre documentação”. 

Acolhimento do Estado facilita acesso a direitos


O apoio de diversos órgãos públicos fez Kely Cavallari levar com mais leveza a transição de gênero do filho Noah, que hoje tem 14 anos. Ela, que atualmente é coordenadora do ‘Mães da Resistência’, conta que, ao saber que o filho não se encaixava nos padrões de gênero impostos, foi atrás de auxílio na rede pública. 

Kely chegou até o AMTIGOS, o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Foi ali que Noah, ela e a família foram acolhidos e tiveram todo o auxílio necessário durante o processo de transição de gênero dele. “Encontramos o instituto e lá começaram o acompanhamento, as explicações e vivências. Ele teve apoio de médicos, psicólogos e fez a mudança para o nome social. Tivemos conversas muito seguras”, conta Kely. 

A conversa com psicólogos nos trouxe para um lugar de entendermos que era preciso apoiar o nosso menino, deixar ele ser quem é. Não precisamos aceitar nada e sim respeitar -  Kely Cavallari

Outra surpresa positiva com o serviço público que Kely teve foi ao trocar o filho de escola, quando a família se mudou de cidade. O menino, que agora estuda em uma escola estadual em Itaquaquecetuba, São Paulo, teve apoio da equipe pedagógica para enfrentar situações de bullying. 

“Eu fui munida de documentação, de tudo, para enfrentar qualquer preconceito. Mas, quando cheguei falando do nome social, que ele era trans, a secretária já o matriculou com o nome social, respeitando ele. Fiquei chocada com a facilidade, com o respeito.”

Kely diz que o filho passou por uma situação de transfobia na mesma escola, mas a equipe pedagógica o apoiou. “A escola chamou os pais do aluno para conversar, o aluno também, a equipe se propôs a apoiar no que precisar. Eles colaboram muito com a gente”, celebra. 

Mas, apesar do acolhimento no Hospital das Clínicas e na escola onde Noah estuda hoje, Kely passou por situações transfóbicas em um posto de saúde gerenciado pelo SUS. “Por incrível que pareça passamos por dificuldade lá, a pessoa que fez a carteirinha do SUS dele insistiu por desrespeito em chamá-lo pelo nome morto, mesmo com nome social. Eu fiquei sem chão, não sabia o que fazer. Aí meus cunhados e minha sogra, que são advogados, fizeram um processo para retificar a carteirinha”, afirma. 

Foi no AMTIGOS que Kely também recebeu o convite para participar da ONG onde é coordenadora e faz o acolhimento de mães que passam pelo mesmo que ela. “Foi um divisor de águas nas nossas vidas, porque o Noah conheceu outras pessoas como ele, eu conheci outras mães como eu. Então o que eu tive no Instituto no Hospital das Clínicas lá atrás replico com outras mães e amigas que chegam na ONG”, pontua. 

Além de lutar pelos direitos do filho, Kely pensa em todos os filhos LGBTQIAPN+. “É algo que virou da minha essência, não dá para olhar casos de preconceito e não fazer nada. Vamos atrás e é algo que me engrandece como pessoa. Sinto que, por isso, tenho mini ativistas pela causa em casa, que brigam pelos próprios direitos”, conclui.

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